O Diabo do Sertão

Peso oculto


Estava frio e escuro. Uma fina camada de poeira cobria o piso de madeira, enquanto teias de aranha se acumulavam nos cantos. Era possível sentir uma brisa suave, que ressoava no sino gerando um sinistro arranhar metálico. Caminhando lentamente sem entender o cenário no qual estava situado, Augusto topou em algo. Olhando para baixo, viu a obscurecida silhueta do largo banco de madeira da igreja. Ainda entorpecido pelas dúvidas, o policial andou cautelosamente enquanto procurava pelo revólver. Nada achou: o coldre estava vazio. Sentindo um medo agudo atravessar sua espinha, respirou fundo e orou em silêncio.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Finalmente encontrou alguma luz! Quase desaparecida em meio as sombras, uma vela estava acesa atrás do altar. O ambiente inteiro não parecia real: estava mais para uma pintura impressionista do que uma representação fiel da igreja. Ainda assim, o homem não conseguia se desvencilhar de sentimentos como medo, raiva e angústia. Com os punhos cerrados, seguiu a luz e encontrou um bilhete jogado no chão. “Olhe direito”, estava escrito. Segurando a vela, o policial sentiu parte da cera derretida queimar sua pele, mas ignorou a dor e se voltou para a direção dos bancos da igreja. Tendo agora uma luz o acompanhando, caminhou com muito mais agilidade, observando cada um dos bancos. E então se deparou com aquela imagem que fez seu coração pulsar ainda mais forte.

— Priscila! Meninos! — gritou enquanto encarava a sua família atada a um dos bancos do local.

Priscila, André e Clara estavam desacordados, mas aparentemente respiravam. Aproximando-se de sua família, o delegado começou a desatar os nós que mantinham os três amarrados ao banco.

— Eu não faria isso — Marcondes, surgindo das sombras, interrompeu a ação do delegado. — Eu agiria com muita cautela, muita cautela mesmo!

Olhando para o prefeito, Augusto estava coberto de suor e desespero. A figura do político, por outro lado, parecia ter se transformado: não era mais o homem rechonchudo e com poucos cabelos desalinhados, mas um verdadeiro arauto das trevas.

— Marcondes — com desespero na voz, Nunes voltou a tentar desatar os nós —, me ajude com isso!

O prefeito deu uma gargalhada. Aproximando-se do policial, colocou a mão sobre o pescoço do homem. Augusto sentiu a mão tão gelada quanto a morte, eriçando todos os pelos do corpo e intensificando o sentimento de medo.

— Acho que você não entendeu o que está acontecendo aqui — o político falou de maneira mórbida.

— O quê?! — Exaltando-se, Augusto encarou o chefe nos olhos. — O que está acontecendo?

Dando um sorriso, Marcondes Maia retirou do bolso um revólver. Não era uma arma qualquer, mas era a pertencente ao policial. Augusto arregalou os olhos, enquanto o político erguia o instrumento e o apontava na direção da família desmaiada.

— Não! — Augusto gritou, mas não teve tempo.

Puxando o gatilho, o prefeito assistiu com prazer a curta viagem da bala até a cabeça de Priscila, espalhando sangue pelo chão da igreja. Levantando-se com fúria, Augusto avançou para cima do prefeito, que desviou do policial com uma agilidade sobre-humana.

— Quer mais? — Marcondes Maia apontou a arma para André e disparou.

— Não! — Notando que não seria possível parar o prefeito, Augusto avançou para a frente de Clara, sua filha e última sobrevivente da família. — Por favor, deixe ela em paz!

— Deixar em paz?! — Com a arma ainda apontada, o prefeito não escondia seu ódio. — Como deixar alguém da sua família em paz quando você destruiu tudo que eu construí?

— Do que tá falando?

— Olhe! — Marcondes arremessou uma espécie de livro em Augusto.

Abaixando a vista, o policial viu do que se tratava: era seu diário, aquele contendo informações um tanto quanto perigosas para o legado do prefeito.

— Você me destruiu! — O político esbravejava. — Agora eu vou destruir você.

— Não! — Augusto Nunes gritou uma última vez.

Ouviu o som do revólver, mas não viu o resultado. Ao invés disso, abriu os olhos e acordou. Suado, o policial estava deitado em sua cama ao lado de Priscila. Ela estava viva e bem, dormindo como um anjo. Ele, por outro lado, sentia o coração quase explodir dentro de seu peito. Levantando-se lentamente, foi até a janela e viu que ainda estava escuro: era madrugada. Voltou para a cama e abriu o criado-mudo. Ali estava seu revólver, intacto do jeito que deixara. Foi até o quarto das crianças: tanto André quanto Clara dormiam calmamente. “Obrigado, meu Deus”, pensou.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Tendo perdido o sono, foi até a sala e sentou-se no sofá. Estava pensativo. Lembrava-se bem de quando deu falta de seu diário, entretanto, teve certa frieza para agir. Ao invés do desespero previsível, optou por uma atitude um tanto quanto irresponsável: ignorou o problema e imaginou possíveis soluções longe da realidade. “Eu devo ter esquecido no trabalho” ou “devo ter esquecido no banheiro” eram as desculpas mais corriqueiras. Todas essas invenções pareciam mais confortáveis que o pensamento “alguém roubou o meu diário e agora corro sérios riscos”.

Refletindo, lembrou-se que teve um momento em que o desespero bateu: foi uma semana após o desaparecimento. Estava falando com Marcondes sobre a questão da violência na cidade e sobre como o efetivo policial não conseguia dar conta do recado. Ignorando o problema, o prefeito apenas comentou que era estranho ver o policial sem o diário. Naquele dia, Augusto revirou a casa inteira atrás do objeto, mas nada encontrou.

No entanto, mais tempo se passou e nada ocorreu. Nenhuma revelação bombástica ou fim de mundo. Por fim, o delegado acreditou que tinha simplesmente perdido o objeto, um erro corriqueiro e sem gravidade, tendo em vista que o diário provavelmente não caiu nas mãos de ninguém. Estava tudo na paz, afinal. Até que veio o pesadelo, maldito pesadelo.

Inquieto, não aguentou ficar sentado e se levantou. Caminhava de um lado para o outro, como se tentasse colocar a cabeça para funcionar. Não cabendo na cabeça, as ideias escaparam pela boca.

— A gente tem que fugir — falava cada vez mais alto. — Não, não. É só explicar. É só negar. Droga, não sei o que fazer.

Seguia com a falação sem encontrar nenhuma solução que lhe parecesse adequada. Por fim, seu repetitivos passos despertaram Priscila. Caminhando discretamente, ela chegou na sala e assustou o marido com sua presença repentina.

tá bem? — Ela estranhava o suor que inundava o rosto do homem.

— O diário... — ele já havia explicado a história do sumiço para a esposa. — Eu tive um pesadelo e, meu Deus, não aguento mais. Preciso achar esse diário.

— A gente já não falou sobre isso? Eu pensei que você já estivesse tranquilo quanto a isso tudo.

— Eu tava, mas... — Augusto deu uma pausa. Em seus olhos, era possível ver que uma ideia atravessava minha mente. — Já sei, já sei!

— O que foi? — Priscila estranhava cada vez mais o comportamento atípico do marido.

— Foi Maria Beatriz! A menina que trabalhava aqui — concluiu. — Só pode ter sido ela. O sumiço dela, o sumiço do diário. Eu sou burro! Como não notei isso antes?

— Você vai acordar as crianças — a esposa alertou. — Mas Bia? Sério?

— Sim. Por que não? A menina é próxima do padre, que é próximo de Breno. Faz todo o sentido.

— Não, não faz — Priscila ia ficando cada vez mais desagradada com o marido e suas conclusões. — Ela era uma mocinha tão boa. Não consigo ver ela fazendo isso.

— Mas eu consigo!

— Então por que a gente não sabe de nada desse diário ainda? Se eu fosse Breno, já estaria espalhando pelos quatro cantos do mundo.

O levantamento da mulher fez com que Augusto fechasse a boca. De fato, algo naquela conta não fechava, ao menos momentaneamente.

— Faz o seguinte — Priscila sugeriu. — Tenta dormir e se acalmar. Graças a Deus nós estamos bem e em breve esse perrengue todo vai passar.

Com os olhos marejados, o homem tentava incessantemente acreditar naquelas palavras. Por fim, deu um abraço na esposa e decidiu que estava na hora de dormir. A segunda-feira e estava chegando e ela prometia ser bem longa.

O sol nasceu e o trabalho começou. Na igreja, Breno Farias e Padre Miguel tinham mais um de seus encontros rotineiros. O lugar estava limpo, sem poeira ou teias de aranha. Além disso, era bem iluminado e os dois interlocutores conseguiam enxergar muito bem o rosto um do outro. O político trazia um sorriso na face, mas ainda mantinha um olhar de leve desprezo. O religioso, por outro lado, seguia sério como de costume, ainda que fosse possível perceber um certo otimismo no tom de sua fala.

— Ontem foi a missa que deu menos gente. Normalmente eu ficaria muito triste com isso, mas um dos fiéis me falou o motivo: as pessoas estão com medo de Água Funda. Repare bem: as ruas estão cada vez mais desertas. Cadê as crianças brincando? Os homens trabalhando, as mulheres andando? Isto aqui está se tornando uma cidade-fantasma — o padre explicou. — Mas aí vem a parte boa: os habitantes estão cientes de que a culpa do problema inteiro não é dos “bandidos”, mas de Marcondes. Ele é o pastor que deve proteger o seu rebanho, danem-se os lobos. Você está sendo a nova esperança, Breno.

— Isso é ótimo, padre — Breno respondeu. — Eu também ando ouvindo algumas coisas. Tem gente pedindo pra eu colocar você como vice-prefeito, acredita?

Miguel gargalhou. A ideia lhe parecia um tanto quanto exagerada, mas pensando melhor, o religioso enxergou nela algum fundamento. Querendo ou não, ele era um líder e sabia conduzir pessoas. Além disso, seu forte nome poderia impulsionar a eleição de Breno Farias.

— Que foi? — O rapaz não deixou de reparar no silêncio do padre. — acha que isso realmente faz sentido?

— Eu não seria o primeiro padre a fazer isso, muito menos o último. O que você acha? — Miguel devolveu a questão.

— Acho que não sei, tá bom? — A voz de Breno saiu de forma trêmula, revelando uma certa insegurança ao tratar daquele tema.

— Certamente ajudaria na sua eleição.

— É, tem isso mesmo.

Houve um tenso momento de silêncio. O religioso manteve a calma, mas o político sentiu um leve desvio de compostura. Pigarreando, tentou quebrar um pouco o gelo, algo que não deveria ser difícil diante do calor infernal.

— Enfim, eu queria tratar de outra coisa — o político falou enquanto pensava sobre o que queria tratar.

— Fale-me — Miguel mantinha a serenidade de sempre.

— O diário — Farias finalmente pensou. — Eu tava refletindo e cheguei à conclusão que não faz sentido a gente ficar segurando ele. Afinal de contas, onde ele está? Até tenho umas anotações, mas seria ótimo usá-lo. Veja bem: Marcondes está enfraquecido e as eleições estão próximas. Esse seria o tiro de misericórdia. A vitória seria garantida!

— Eu entendo a sua pressa, Breno. No entanto, não é a hora ideal para isso.

— Por que não?

— O diário é uma arma poderosíssima, mas não se trata apenas de usar a arma, mas de usá-la no momento certo, entende? — Miguel olhava fixamente nos olhos de Breno. — Usamos o diário agora, mas e aí? Passam-se duas semanas e o povo já se esqueceu. É preciso paciência para usar nossos recursos na hora certa. Vamos tentar ganhar essa eleição do jeito certo, está bem? Com campanhas, debates, essas coisas.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— É engraçado ouvir o homem que organizou uma gangue armada dizendo isso, mas eu entendo — o sorriso de Breno já havia se desfeito há muito tempo. — Eu só espero que você saiba o que está fazendo. Não vai perder o diário, vai?

— Ele está muito bem guardado e só duas pessoas sabem dele: eu e João Cego.

— João Cego?! — Breno se exaltou. — Aquele homi que entregou vocês antes? Você é doido, padre?!

— Ah, Breno, você ainda entende muito pouco da natureza humana. Se tem algo que motiva mais do que o amor ou o ódio, esse sentimento é a culpa. E culpa, meu caro, é algo que inunda a alma de João desde o dia que ele nos entregou. Ele não cometerá o mesmo erro novamente, isso eu garanto — Miguel falou calmamente, contrastando ainda mais com a postura do político.

— É bom que você acerte dessa vez, padre. Cansei de ver você errar.

— Cuidado com o que fala, garoto — o religioso elevou a gravidade da voz. — Não pense que é Deus.

— Pode deixar, padre — com seriedade, Breno Farias caminhou até a saída da igreja. Por fim, sentiu um certo peso na consciência e recuou. Respirou fundo e encarou o padre nos olhos mais uma vez. — Seguimos juntos, né?

— Pelo bem de Água Funda? — Miguel voltou ao estado de serenidade usual. — Sim.

Serenidade era um sentimento que não existia para Valter. Seguindo com os trabalhos para Marcondes, o homem sentia que a cada segundo que passava ele poderia ser desmascarado. Entretanto, também tinha consciência de que não podia alimentar suspeitas bobas. Seguia fazendo os trabalhos e via o padre o mínimo possível. Quanto ao seu filho? Ele estava recebendo cuidados na casa de Breno Farias, longe de olhos inimigos.

Enquanto isso, o ex-cangaceiro continuava sendo uma espécie de faz-tudo para o prefeito. O homem, inclusive, andava sendo pouco visto. Para piorar, estava sempre acompanhado de uns sujeitos armados e mal encarados, o tipo de gente que Valter nunca gostaria de lidar. Por fim, o “tudo” que Valter fazia podia se resumir a tirar Guilherme das confusões em que ele se metia e ajudar Francisca no que ela precisasse.

Naquele momento, ele estava sentado no espaçoso sofá da sala de Marcondes. Fazia tempo que o político não passava o tempo descansando ali: estava tenso demais com os eventos recentes da cidade. Era violência para todo lado, roubos, incêndios e vandalismo toda hora. Isso, de certa forma, trazia uma certa vantagem: tirava o ex-cangaceiro do radar do político, dando-lhe um pouco de espaço para respirar. Entretanto, sempre acontecia uma coisa ou outra que trazia Valter de volta para seu estado de agonia e desespero. Dessa vez, a preocupação veio com uma intensidade muito maior.

Ao ouvir o bater da madeira, o faz-tudo caminhou rapidamente até a entrada. Abrindo a porta, deparou-se com quem não queria: Levy, o homem de pele queimada. Valter já o conhecia dos tempos de cangaço e eles dois já haviam feito serviços para Marcondes. Entretanto, o homem sabia que o jogo havia virado e que o prefeito agora era um inimigo.

— Le... — a voz de Valter quase não saía.

— Meu bom amigo — Levy atuou muito bem e deu um abraço no homem esguio. — Como tá?

Valter congelou. O que o cangaceiro estaria fazendo ali?

— Eu... — ele continuava tendo dificuldades para falar. — O que...

— Levy! — Marcondes, aparecendo por trás de Valter, interrompeu. — Entre logo, homi.

Estático pela inércia, o ex-cangaceiro foi gentilmente afastado pelo prefeito, que cumprimentou calorosamente o homem de pele queimada.

— Vamos pro escritório — Marcondes conduziu Levy até o outro cômodo da casa.

Valter permaneceu parado, apenas com a porta aberta a sua frente. Não disse nada e também não ouviu mais nada. Em sua mente, um lento processo tentava ligar as pontas, mas falhava miseravelmente. Por fim, desistiu de pensar, fechou a porta e se sentou no sofá. Mais uma vez, o medo voltou a se apossar de seu espírito. “Levy sabe de mim e vai trair a todos nós”, pensou com grande preocupação.

Tinha sorte de estar só: sua inquietude poderia ser vista até pelo mais ingênuo. Seu pé esquerdo batia repetidamente no chão, suas mãos suavam intensamente e sua respiração estava curta. Se um médico o visse, talvez achasse melhor iniciar um procedimento para prevenir um ataque cardíaco ou coisa do tipo.

Olhando para o relógio, o ex-cangaceiro via os ponteiros se moverem lentamente. Encarou a porta da sala e pensou em fugir. “Posso pegar meu cavalo, buscar meu filho e dar o fora daqui”, foi a ideia que primeiro veio a sua mente. Entretanto, questionamentos maiores surgiram logo em seguida: “levar a criança para onde? Sustentar-se com o quê?”. Para Valter, não havia ninguém de confiança, nem mesmo o padre. Os próprios céus podiam testemunhar: o ex-cangaceiro não confiava nem mesmo em si próprio.

Os minutos de agonia e tortura prosseguiram vagarosamente, mas encontraram seu fim. Ao ouvir a porta do escritório se abrindo, Valter teve noção de seu estado e rapidamente se ajeitou. Colocou a máscara de bom faz-tudo e aguardou o surgimento de seu chefe e de Levy. Ouviu a voz de ambos: pareciam felizes, como se tivessem acertado um excelente contrato. Por fim, Marcondes se despediu do cangaceiro. O homem de rosto queimado caminhou e se deparou com o olhar curioso de Valter. O político havia ficado no escritório.

— Valter, Valter — Levy retornou a usar o tom provocativo de costume. — É bom te ver aqui, meu amigo.

— O que ocê tá fazendo aqui? — o homem esguio se utilizou de um tom mais forte, ainda que falasse em um volume baixo. — Explica isso direito!

— A coisa é simples, homi — Levy colocou a mão sobre o ombro do ex-cangaceiro. — Ocê não fala de mim e eu não falo de tu. Combinado? Lembra que eu sei onde seu filhote tá.

Estático, Valter não conseguia emitir uma palavra sequer. Soltando um sorriso jocoso, o cangaceiro abriu a porta.

— Que bom que concordou — comentou antes de sair.

Longe da escalada da traição, Maria Beatriz lia e relia a carta de sua mãe. Na noite passada, quando José retornara para o abrigo, ela sentiu um tremendo alívio. Assim eram as coisas com Zé: ele sempre podia voltar com uma nova confusão. Entretanto, além dele trazer novidades da dona Bárbara, o rapaz ainda carregava uma carta da mulher.

Para muitos aquilo podia parecer apenas um pedaço de papel. Para Bia, no entanto, era um contato com sua mãe após anos de separação. Ela tinha certeza de que a mulher a amava, mas tamanha distância e tempo podem fazer com que certos sentimentos e memórias fiquem entorpecidos. Porém, tudo foi despertado com a leitura da carta. Sem conter emoções, Bia deixou que lágrimas fluíssem enquanto ela lia aquelas palavras de amor e saudade. Na carta, Bárbara não só contava como sentia falta de Bia, como também já tentara escapar das garras do Francês outras vezes, falhando miseravelmente e sendo punida por isso.

— Ela me deixou para que eu não sofresse — foi a conclusão da moça.

Agora, já com o sol sobre as cabeças dos sertanejos, ela seguia relendo as palavras e bebendo um pouco do tão necessário amor materno. Era até mesmo estranho pensar naquilo tudo: há quanto tempo Bárbara teria voltado para Água Funda? Por quanto tempo ficaria? Ela estava tão próxima e ao mesmo tempo tão longe. Bia sabia que não poderia adentrar a casa de prazeres. Primeiro, não deixariam uma garota entrar num ambiente daqueles. Segundo, seria uma ação perigosa. Ela não só poderia vir a ser reconhecida pelo Francês, como também poderia ser atacada pelos clientes. Quem podia saber?

De toda forma, agora ela sentia que uma aproximação era possível. “A minha mãe falou comigo”, ela pensava de forma esperançosa. Ao lado da jovem, ainda deitado na cama, Zé observava com felicidade o olhar emocionado da esposa. Aquilo tudo era muito estranho: não costumava falar com Bia sobre família e coisas do tipo, tendo em vista que os dois tinham um histórico bem sofrido. Ainda assim, ele sentia como se fosse sua obrigação ajudá-la de todas as formas, não importasse o custo. E talvez fosse, por isso mesmo ele estava fazendo.

— A gente tem que salvar minha mãe — Beatriz falou o óbvio.

— Nós vamo, mas com cuidado — José respondeu. — Sua mãe mesmo me disse que o cafetão é um homi ruim de doer. A gente tem que ter cautela.

— Sim, mas e o diário? — Bia se lembrava de cada palavra escrita naquele objeto. — Ele num vai servir pra nada?

Zé de Lima se aproximou de sua esposa e lhe envolveu com os braços.

— O padre deve pensando em tudo. O mais importante é que ocê e o Chico fiquem bem — ele acariciou a barriga da esposa.

— Chico? Quem é esse? — A moça não queria aceitar aquele nome como o do seu filho.

— Nosso fi, .

Nadica de nada!

— E pensa em que nome?

— Moisés se for menino, Alice se for menina — Bia sorriu ao imaginar o rostinho de sua criança.

— Moisés então — José concordou. — E eu prometo, Bia: esse minino vai brincar muito com a avó.

Maria Beatriz sorriu. Mal esperava para a vida de seus sonhos se tornar realidade. Só era uma pena que ela parecia tão distante.