O Diabo do Sertão

Política e outras formas de mentir


Abotoou a camisa e saiu de casa acompanhado pela insegurança. Sentindo que andava sobre uma corda bamba, Augusto Nunes desconfiava de tudo e de todos. Há tempos sem tocar em seu diário, sempre buscava qualquer pista que pudesse entregar o responsável pelo roubo. Já pensou até mesmo em confrontar diretamente o padre. Na verdade, chegou bem perto disso: havia ido para uma das missas do homem e pediu para se confessar. Faria um ultimato no momento da confissão, mas tudo que fez foi emudecer e deixar o padre sem jeito.

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— Às vezes precisamos nos calar para que Deus fale por nós — Miguel quebrou o silêncio naquele dia.

Desde então, o delegado manteve uma rotina fixa: de casa ia para o trabalho, e do trabalho ia para casa. Sem desvios, sem buscas infrutíferas e sem riscos. No fim das contas, passava mais tempo no trabalho do que no lar: com o crime solto por toda a cidade, o homem tinha que ir de um lado ao outro com os policiais para tentar trazer um pouco de paz para Água Funda. Obviamente, o contingente não tinha como lidar com aquele nível de violência, tendo ainda um agravante: os bandidos pareciam ser muito bem articulados, sempre aparecendo onde o contingente policial não conseguia alcançar. Era como se eles fossem liderados por alguém esperto ou algo do tipo.

Com tais acontecimentos, foi natural ver uma Água Funda cada vez mais vazia. As mulheres tinham medo de sair de casa, as crianças eram proibidas de brincar na rua e mesmo os homens estavam sendo muito mais cautelosos do que de costume. O vazio da cidade parecia combinar com o vazio espiritual de Augusto, que sentia-se isolado e perdido. Até mesmo Priscila, sua esposa, parecia distante demais para compreender todas suas atribulações. Quanto as crianças? As coitadas eram novas demais mesmo para aguentar um sofrimento compartilhado. Não, Augusto tinha certeza: tinha que superar tudo aquilo sozinho.

Com isso em mente, saiu naquela noite especialmente fria. As ruas, entretanto, não estavam vazias, mas contavam com largos grupos de pessoas, todas com o mesmo destino: a câmara municipal. Aquele não era um dia comum: estava para ocorrer um debate entre os dois candidatos ao cargo de Prefeito da cidade de Água Funda. De um lado, Marcondes Maia buscava a reeleição, mas sofria diante das crises recentes. Do outro, Breno Farias ascendia como uma nova esperança, ainda que o atual prefeito colocasse certas dúvidas em cima do homem. Em meio a esse tiroteio político, Augusto tinha apenas uma certeza: o povo sempre saía baleado.

Caminhando em meio aos destemidos passantes, atravessou a praça central e a igreja, até finalmente se deparar com a câmara: era um edifício que prezava pela simetria, tendo como estilo arquitetônico o neocolonial, contando ainda com cores claras sem grande contraste. Tinha cerca seis metros de altura, contando com dois andares, tendo ainda três portas que davam acesso a área frontal do prédio. A cada passo que dava, o delegado sentia a aglomeração de vítimas miseráveis da política aumentar. Cada um sedento por novas palavras, novas esperanças. No fim, era só isso que os movia. “Dessa vez vai dar certo”, eles pensavam. Augusto já havia passado dessa fase e ignorava toda e qualquer forma de esperança.

Desvencilhando-se do povo, aproveitou-se de sua elevada estatura para buscar os dois alvos da afeição – ou ódio – popular. Já dentro do prédio, seguiu sem ver Breno ou Marcondes. Entretanto, uma generosa barba branca chamou a sua atenção a alguns metros de distância: Padre Miguel saía de uma das tantas salas do local. “Breno deve estar lá”, o delegado pensou.

Na sala, Breno Farias estava acompanhado de sua esposa, Clara, e sua irmã, Lara. As duas mulheres ajudavam o homem com as vestimentas para o debate. Lara ajeitava a gravata-borboleta escolhida pelo irmão, enquanto Clara se assegurava que o casaco que ele usaria não estava amassado.

— É sério que eu preciso de tudo isso? O povo no rádio não vai ver minhas roupas — ele reclamava enquanto mudava sua postura vez ou outra para auxiliar o trabalho das mulheres.

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— A rádio não, mas tem uma ruma de jornalista aqui hoje — Clara argumentou.

— Sim — Lara concordou. — Você não quer sair todo lascado e desarrumado numa foto, quer?

— Tá bom, tá bom — o político deu um sorriso amarelo. — Só vamos logo com isso. Não quero ter que ficar três horas nessa arrumação toda.

Sem respondê-lo, as duas mulheres agilizaram o trabalho e rapidamente finalizaram o serviço. No fim das contas, Breno não estava muito diferente de antes. Ainda assim, Clara e Lara podiam jurar que ele estava pelo menos um milhão de vezes mais arrumado. Dando um sorriso puramente social, o político deu um leve beijo em sua esposa e um abraço na irmã.

— Agora me esperem lá com o povo. O debate começa já já. — Breno olhava fixamente para as duas mulheres enquanto elas saíam. Após isso, ele virou o rosto para o lado e encarou quem o encarava há alguns minutos: Augusto Nunes. — E você? O que veio fazer aqui?

Aproximando-se timidamente, o delegado parecia ter encolhido. Com o corpo encurvado e os ombros tomando o espaço do peito, Augusto não era mais um delegado: estava mais para um garotinho encarando um pai agressivo. Estava passivo, submisso.

— Eu... Eu... — caçava palavras que não queriam ser capturadas. — Eu sei o que você sabe, Breno.

— Oi? — A expressão de desentendimento no rosto do político era genuína. — Desculpa, mas eu acho que existem milhares de coisas que eu e você sabemos. Por exemplo: Marcondes vai perder a eleição.

Breno começou a gargalhar, enquanto o delegado se mantinha encolhido.

— O diário — Augusto finalmente falou. — Eu sei que você o tem. Eu só quero que você saiba que ele pode me prejudicar muito, muito mesmo. Marcondes não me perdoaria e o pior: iria querer se vingar da minha família.

Com os olhos arregalados, o político colocou a mão sobre a boca, como se estivesse chocado com a informação.

— Meu Deus do céu! Você está muito lascado, hein? — Breno fez uma pausa apenas para ver o homem engolir em seco. — É uma pena que eu não faço ideia de que diário é esse. Boa sorte para encontroá-lo.

— Eu falando sério! — Exaltando-se, Augusto avançou para cima do candidato e agarrou-o pela gola da camisa. — Não faça nada que vá matar minha família!

— Parece que o delegado tem colhão — Breno deu uma gargalhada enquanto se desvencilhava do homem da lei. — Vamos lá, Augusto: eu e você sabemos que o você é bem melhor que isso. Sem sentimentalismo, tá bem? Eu não faço ideia do que você está falando, mas fique tranquilo: eu jamais faria qualquer coisa que fosse para prejudicar sua família. Também tenho a minha, não é mesmo?

Sentindo o sangue esfriar, Nunes olhou para os lados e viu que dezenas de olhos o acompanhavam com grande desconfiança. Voltando a encarar o político, engoliu em seco e decidiu que estava na hora de deixar aquele lugar.

— Vote certo, vote Breno Farias — o político brincou enquanto o delegado desaparecia no meio da multidão.

Sentindo-se humilhado, Augusto Nunes deixou a câmara para trás. Apenas imaginava que deveria voltar para casa e ficar abraçado com sua família. Uma parte de si ainda pensava na possibilidade de ligar o rádio quando chegasse na residência para acompanhar o debate. Sim, aquele estava sendo um dia histórico: algumas horas atrás, um grupo da rádio da capital apareceu na câmara para fazer a montagem dos equipamentos. Tal fato foi motivo de espanto e curiosidade para muitos: era a primeira vez em Água Funda que um debate recebia tamanha cobertura. No entanto, ao invés de se acomodarem em suas casas, toda tecnologia empregada apenas motivava ainda mais os cidadãos a marcarem presença na câmara. Era possível ver, por exemplo, um grande número de não-votantes, como crianças e mulheres.

Todos curiosos, os pobres de Água Funda olhavam para ambos os lados procurando pelos dois candidatos. Entretanto, naquela altura, Breno Farias já tinha fechado as portas para poder se concentrar especificamente no debate que estava por vir. Olhava anotações, ensaiava frases de efeito e bebia bastante água. Do outro lado, Marcondes Maia recebia um visitante inesperado: Padre Miguel. Influente como era, o religioso não teve dificuldades para conseguir acesso à sala do prefeito. Lá estava o velho fumando um cigarro enquanto era acompanhado de seis homens: os cinco pistoleiros contratados e Valter, que mantinha uma expressão apática.

— Acha que tentarão atacá-lo aqui? — O religioso questionou enquanto encarava o grande número de homens armados. — É tão medroso assim, Marcondes?

O prefeito soltou uma gargalhada que se misturou com a fumaça que deixava seus pulmões.

— Você é mesmo engraçado, padre — comentou com jocosidade enquanto se levantava da cadeira com dificuldade. — Como andam as missas na sua igreja? Vazias, imagino. A violência é para todos, meu amigo.

— Mas você não consegue nenhum pistoleiro pra proteger as famílias de sua cidade, não é mesmo? — Miguel retrucou.

Mais afastado, um dos pistoleiros deu uma risada abafada. Perdendo a vergonha, ele mostrou os dentes de ouro que colecionava na boca e encarou fixamente os olhos do padre. Por um segundo, Miguel sentiu um severo medo atravessar sua alma. No entanto, manteve-se firme e não hesitou. Olhou de volta para o homem e, com o queixo erguido, falou:

— O dinheiro de vocês — ele apontava para os pistoleiros — vem desses miseráveis que estão aqui hoje. Vocês devem tudo a eles, não a esse homem caindo aos pedaços aí.

— Padre, padre — Marcondes respondeu enquanto o religioso ouvia armas serem sacadas. — Você não vai querer arranjar confusão comigo.

— O quê? Vocês vão me matar aqui?

Tensão e silêncio cresceram juntos. Agindo como um ator digno de prêmios, Valter se portava exatamente como os mercenários contratados pelo seu patrão. Marcondes, por outro lado, examinava o padre de cima a baixo. Havia algo de estranho. O político sabia que o religioso era um homem esperto e de grande talento no que se referia a questões de estratégia. Aquelas provocações, a jocosidade, nada poderia ser em vão. Ainda assim, não era simples descobrir exatamente o que se passava na cabeça do padre. Tentando sanar a dúvida, o prefeito recorreu a um tom mais formal.

— Vamos, padre, ninguém aqui quer perder tempo. E você sabe muito bem que todos esses homens são trabalhadores e cristãos — O homem do dente de ouro deu um sorriso macabro. — Eles jamais matariam um homem de Deus, ou qualquer cristão de alma bondosa. Agora seja explícito: o que você veio fazer aqui? Sem enrolação.

— Sem enrolação? Eu vim impedir que você fale bobagem — a resposta do padre arrancou gargalhadas de Marcondes.

— Bobagem? Que tipo de bobagem eu falaria?

— Essa cidade está a ponto de explodir, Marcondes. Você não sabe, pois mora num castelo de segurança e conforto, mas a verdade é que as pessoas sentem medo, medo acima de tudo. E você sabe muito bem que essa foi uma guerra que você começou. A questão da água, os ataques, a associação com bandidos, os acordos feitos. Não precisa ser um vidente para saber que todas essas coisas estão conectadas e você tem a mão em cada uma delas. A questão é: o senhor realmente está disposto a fazer desta cidade um lugar melhor? Porque se você está, então eu tenho certeza que não porá ainda mais fogo no palheiro. Seja paciente, evite atritos e tente apaziguar as coisas. Água Funda não precisa de mais guerras.

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Olhando fixamente para o religioso, o político sentiu falta do que dizer. Era uma situação rara: em decorrência de seu ofício, estava acostumado a ter palavras na ponta da língua. Entretanto, como responderia aquilo tudo? Eram tantas ideias, acusações e questionamentos nas entrelinhas, que ficava difícil decidir por onde começar. Teve sorte que pôde ouvir uma batida na porta.

— Entre! — Marcondes gritou enquanto Miguel seguia o observando com certo desprezo.

A porta foi aberta e uma mulher adentrou o local cautelosamente. Com uma prancheta em mãos, ela conferiu algo que estava escrito no papel e comparou com o relógio que havia na parede.

— Marcondes Maia? — ela perguntou e viu o gesto de confirmação do homem. — O debate começa em dez minutos.

— Certo, querida. Muito obrigado. Já vou indo — ele a viu deixando rapidamente a sala. — Quanto a você, padre, acompanhe o debate. Tenho certeza que vai amar minhas palavras.

— Eu não vou perder um segundo sequer — Miguel respondeu antes de deixar o covil para trás.

A maior concentração de pessoas podia ser encontrada na área central da câmara municipal. Os cidadãos comuns de Água Funda se apertavam para caber naquele espaço, que havia tido as cadeiras retiradas para comportar mais pessoas. Algumas até se sentiam tentadas a se sentarem no chão, mas logo desistiam da ideia ao constatar que seria impossível acompanhar o debate a partir daquela posição.

Um pouco mais a frente e com muito mais espaço, repórteres e outros profissionais do jornalismo se preparavam para o início do debate. Um senhor de voz grave e bigode fino testava os microfones, enquanto outro grupo de profissionais ficava mais afastado para testar se a transmissão estava ocorrendo com excelência. Não tardou para fazerem o sinal de positivo e, dessa forma, o mediador ao centro gesticular para que os dois candidatos aparecerem.

O público foi à loucura quando os dois nomes da política entraram. Gritos de adoração, xingamentos e perguntas se misturavam de forma quase indistinguível. Era impossível saber quem era o santo, o pilantra ou o falsário. No fim, ambos os candidatos eram espelhos um do outro: olhavam para o público e acenavam com um sorriso bem ensaiado no rosto. Levou um tempo para que o povo fizesse silêncio e o debate pudesse começar.

— Estamos aqui para a realização do momento mais importante para a política de Água Funda este ano — o homem de voz grossa e bigode fino falava como um trovão. — De um lado, temos o atual prefeito e candidato a reeleição, Marcondes Maia. Do outro, Breno Farias, que tenta entrar no mundo da política pela primeira vez. Antes de começarmos no entanto, gostaria de esclarecer algumas regras: a manifestação popular não é proibida, mas pedimos para que não haja excesso. Quanto aos candidatos, tenho certeza que eles se portarão com respeito e aguardarão o momento certo para falar, tudo bem? Ótimo.

Com as regras claras, era de se esperar que o debate ocorresse com civilidade e calmaria. Entretanto, não foi o que houve. Aquela novidade assombrosa para os moradores de Água Funda nãos os deixava descansar. A cada nova fala, acusação ou insinuação, o público se exaltava. De um lado, havia aqueles que tinham eterna gratidão por Marcondes. Gratidão? Sim. Eles eram gratos por todas as dentaduras, obras e gotas d’água que o político os dera um ou vinte anos atrás. Não importava: a gratidão era eterna.

Do outro, havia os insatisfeitos com o atual estado da cidade. Para eles, não havia dentadura ou prêmio que resolvesse o problema. Além do mais, o rostinho bonito de Breno e a sua habilidade com as palavras eram características encantadoras. Propostas? Quem se importava com propostas? O importante mesmo era apostar no carisma, no sorriso, na suposta autenticidade e no personalismo político. Todo gado precisava de seu pastor, e assim seguia o povo de Água Funda.

O debate seguiu previsível: Breno, grande força de oposição, apontava todas as contradições e problemas da administração de Marcondes. A violência, que havia atingido o pico, foi exaustivamente comentada pelo candidato. Ele não esqueceu, no entanto, da questão da água, ou melhor, da falta dela. Lembrou-se muito bem do uso limitado dos poços por parte da população, além da vergonha vivida pelo prefeito quando um desses poços estava infestado de porcarias que tornavam a água não recomendável para consumo humano.

Ainda que ouvisse gritos de apoio ou ódio por parte do público, o prefeito soube se comportar. Apesar do punho cerrado entregar toda sua raiva, falsear sentimentos era uma de suas artes. Dessa forma, escutava com calma os pontos de seu rival e rapidamente rebatia tudo quando chegava sua vez. Falava das contas que não fechavam do estado, da necessidade de proteger a população dela mesma, da dificuldade de lidar com grupos armados sem trazer riscos para o cidadão comum, entre outros. Não se esquecia, porém, de criticar Breno Farias: lembrava que o homem tinha uma família rica que fazia pouco ou nada pela cidade, sendo provavelmente apenas um sanguessuga atrás de mais poder. No fim, o prefeito expôs as críticas do rival como mera demagogia, sem qualquer substância que de fato pudesse ser aproveitada pela população.

No fim das contas, o povo de Água Funda seguia tão dividido quanto antes. Com manifestações de nojo e carinho, a única certeza que imperava era que o resultado da eleição não era tão previsível assim. Foi na hora do encerramento, no entanto, que Breno sentiu que poderia virar o jogo de uma vez por todas.

Após os clichês ditos por Marcondes – toda aquela ideia de mais saúde, segurança e educação que o povo acreditava apenas para acalentar o coração –, havia chegado a hora de Breno Farias proferir as últimas palavras do debate. O tempo era limitado e, numa fração de segundo, milhares de pensamentos e ideias cruzaram a cabeça do novo político. Olhando para as anotações que havia feito, lembrou-se de uma essencial: uma cópia que fizera do que lera no diário de Augusto Nunes.

Por um instante, sentiu que aquele era o momento de transformar a política da cidade para sempre. O debate estava sendo transmitido e suas palavras estariam gravadas na eternidade. Olhou para o papel novamente e relembrou aquela história que lera, a história que revelava o que talvez fosse o maior pecado da vida de Marcondes Maia. E se imaginou falando:

— Marcondes está certo, meus amigos — ao dizer isso, Breno podia enxergar olhares surpresos por todos os lados. Ele falava com confiança e sentia como se o tempo não passasse. — Esta cidade precisa de mais saúde, mais segurança e mais educação. Entretanto, eu não acho que ele seja o homem capacitado para isso. O testemunho de Augusto Nunes, nosso delegado, diz exatamente o contrário. Ocorreu há quase vinte anos: Augusto era só um policial qualquer, enquanto Marcondes crescia em sua vida política, antes de virar o dinossauro que é hoje.

Breno podia imaginar o olhar de surpresa do prefeito. Mais do que isso: o candidato mais jovem podia mesmo enxergar a tensão e o medo nos olhos do político mais velho. Entretanto, prosseguiu:

— Marcondes, como vocês sabem, é casado há muito tempo. Na época, sua esposa estava grávida. Entretanto, o prefeito não parecia ter muito apreço pelos votos de fidelidade que fizera. Na verdade, ele era o frequentador de um cabaré bem famoso, conhecido como “Cabaré do Francês”. O Francês, vocês conhecem? Barba cheia, sotaque carregado — o candidato podia se sentir cada vez mais próximo da prefeitura a cada nova palavra dita. — Acontece que Marcondes havia engravidado uma outra mulher além da esposa: uma prostituta. O fruto dessa união luxuriosa nasceu pouco antes do parto de Francisca, a esposa do prefeito. Marcondes, obviamente, usou de sua amizade com o Francês para esconder tal informação. No entanto, ele precisou retomar os serviços do estrangeiro: poucas semanas depois, Francisca entrou em trabalho de parto. Entretanto, como é sabido, ela passou por maus bocados e quase faleceu. O que quase ninguém sabe, é que a criança que estava em seu ventre acabou morrendo. Em um momento de desespero e terror, um jovem Marcondes pediu ajuda do policial novato Augusto Nunes. O prefeito disse que haviam roubado o bebê dele e apontou para onde seria a casa da pobre prostituta.

Àquela altura, as pessoas estariam em polvorosa, talvez saltando pelos lados e tentando invadir o palanque principal. De toda forma, elas seriam impedidas pelos seguranças, tudo isso enquanto Marcondes insistia para que o microfone de Breno Farias fosse cortado.

— O policial então foi lá junto do Francês, que apareceu com alguns pistoleiros — o político sorria enquanto falava de tamanha tragédia. — De fato, lá estava um bebê. Hoje vocês conhecem ele como Guilherme Maia. Augusto Nunes pegou o bebê, mas viu a pobre mãe e pensou em ajudá-la. Entretanto, acovardou-se diante dos pistoleiros e do Francês, que levaram a mulher para longe e desapareceram. O Francês desde então tem uma amizade forte com Marcondes, voltando de tempos em tempos, contando com a proteção política do homem, ainda que seja um verdadeiro arranjador de confusões. É um bandido igual ao prefeito que vocês tem, que roubou o filho de uma pobre mãe e inseriu no próprio seio familiar como se não cometesse nenhum pecado absurdo. Esse é o homem que irá prover saúde, segurança e educação? Eu acho que não!

Dessa forma, estaria declarado o fim de Marcondes Maia. Mas não, não foi assim que ocorreu. Retornando para a realidade, Breno Farias deparou-se com o olhar de Padre Miguel. Havia seriedade e tensão do ar, enquanto os segundos passavam lentamente. Tomando uma decisão irrevogável, o candidato disse:

— Que o bem-estar da população de Água Funda não dependa de quem há tantos anos suga nosso povo. Você que está me ouvindo, cidadão, saiba que eu quero a mudança tanto quanto você. Não podemos repetir os pecados do passado. Uma nova Água Funda deve surgir.

Recebeu aplausos de metade da plateia. A divisão era real e não havia nada decidido. Respirando fundo, guardou os papéis no bolso enquanto ouvia o mediador declarar o debate por encerrado.