Dois Quartos de Vinho

As frias manhãs de outono sempre chegam


As frias manhãs de outono sempre chegam. O homem passou a mão cegamente pelo chão frio a procura do cobertor que antes o esquentava, mas não o encontrou. Ainda sonolento e com a visão desfocada, foi se levantando devagar e olhando em volta; ela havia sumido a única coisa que deixou foi um pequeno pedaço do papel onde se lia, com uma letra um pouco torta, “Sugiro que peça um uber”. Se levantou e foi até o parapeito do terraço. Não, o carro também não estava lá.

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O humorista riu e começou a pensar se aquela mulher tinha alguma fobia de acordar ao seu lado ou se isso fazia parte de seu misterioso jogo de sedução. Depois de ficar algum tempo no mesmo lugar, imerso em seus pensamentos, tentando digerir o que aconteceu na noite anterior, pegou seu celular e ligou para a única pessoa que sentia poder resolver o impasse em que estava.

— Quem ousa interromper o sono do supremo? – A voz de Daniel estava mais sonolenta do que séria.

— Dani, é o Lico. Preciso falar com você.

— Essa conversa pode ser depois do meio dia?

— É sério Dani, tô indo aí.

— Esse é o problema dos melhores amigos, – O outro Barbixa retrucou – acham que podem aparecer na nossa casa às 7h30 da manhã.

— Mais precisamente 7h47 – Elídio riu, encerrando a ligação.

O humorista encontrou certa dificuldade para chegar à casa do amigo. O porteiro estava tão acostumado com a presença dele no prédio, que nem se preocupava mais em perguntar para quem era a visita, só o cumprimentava e avisava Daniel de sua chegada.

— A que devo a honra? – Daniel perguntou cortês ao abrir a porta. O grande par de lentes não disfarçava os olhos vermelhos, seus cabelos estavam desgrenhados e seu hálito denunciava alguns recentes goles de café.

— Vou ignorar essa sua samba-canção, mas só porquê o assunto é sério.

Daniel riu, deu passagem para o amigo entrar e fez sinal para que se sentasse no pequeno sofá azul cobalto.

— Qual o problema? – Perguntou sentando-se a sua frente, em uma poltrona biscoito fino do mesmo tom.

— O problema? O problema é que eu invadi um prédio abandonado como uma maluca, pra passar a noite inteira lá e hoje acordar sozinho, no chão, num bairro que eu nem conhecia. Mas esse não é o problema, o problema é que mesmo depois de tudo isso eu não consigo sentir raiva, não consigo ficar bravo com ela, na verdade cheguei a achar graça.

Daniel o observou por um tempo e continuou.

— Tá, – ele respondeu confuso – agora vamos tentar mais uma vez. Qual o problema?

Sanna ponderou um pouco sua resposta.

— Eu tô apaixonado. - sua expressão era semelhante à de um gato encurralado em total desespero.

— Olha Lico, é que você não faz meu tipo, mas ainda podemos ser amigos.

— Deixa de graça, Daniel, eu tô falando sério. – Elídio se mantinha sério, enquanto o outro ria.

— Desculpa, só não consigo ver onde estar apaixonado é um problema, porém fico muito feliz por finalmente assumir o óbvio.

O outro o observou por alguns segundos, depois abaixou a cabeça e entrelaçou os dedos entre os cabelos ondulados, fitando os próprios pés. Ele carregava uma expressão de cansaço e preocupação. Não era exatamente aquele medo de estar apaixonado, suas apreensões iam muito além disso e talvez nem o próprio entendia o motivo delas.

— Você sabia que uma hora ou outra isso ia acontecer – Daniel continuou – é ótimo estar solteiro, mas também é muito bom ficar com alguém. Sem falar que daqui a pouco as mulheres já vão te chamar de titio, né?

— Falou o quarentão.

— 37 com rostinho de 25, querido. Mas o que eu tô falando é que não tem porque não tentar se ela sente o mesmo.

— Só que eu não sei se ela gosta de mim, ela vive com aquele joguinho dela metida à Sharon Stone.

— Pelo menos ela tem uma bela cruzada de pernas. – O míope se divertiu com a referência dada pelo amigo – Você sabe o que fazer?

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— Não sei. Ontem eu tentei me declarar, mas ela desconversou, não sei se é uma boa ideia...

— Vale a segunda tentativa. O máximo que pode receber é um não e não estamos mais no colegial, você pode superar isso.

O outro homem não disse nada, tentava organizar seus pensamentos, chegar a alguma conclusão, descobrir o que deveria fazer a seguir. Ficou cerca de dois minutos na mesma posição então, inesperadamente, se levantou e foi até a porta.

— Ei, onde vai?

— Tenho que resolver algumas coisas, mas agradeço a ajuda. Te amo por isso. – saiu sem dar chance para que o outro respondesse.

Estampada no céu, estava a evidente e vagarosa chegada de um temporal; os trovões ao fundo, serviram para deixar a chegada do homem ainda mais suspeita. Marco não esperava nenhuma visita, muito menos a improvável presença de Elídio em seu apartamento tão cedo.

— Fala chefe.

— E aí, Marcão? Beleza?

O Barbixa entrou e os dois foram em direção à cozinha. Sobre a mesa estavam dois copos, uma cafeteira e uma pequena cesta com pães de queijo recém assados.

— Nossa isso tudo é pra me receber?

O outro deu um sorriso discreto, deixando no ar tudo que o amigo precisava saber.

— Ah, parece que alguém passou a noite em claro com alguma visitinha...

O outro deu de ombros, mas riu junto ao amigo.

— Ela ainda tá aí? Tô atrapalhando alguma coisa?

— Não, tudo bem. Ela já foi embora. E você? O que veio fazer aqui?

— Bom, um tempo atrás, você me disse para te avisar quando me apaixonasse. Então... – Esclareceu enquanto pegava um pão de queijo.

— É ela, né? – Perguntou sério.

— É.

Ficaram em silêncio. Pensativos, os dois procuravam maneiras de pôr fim aquele clima constrangedor, mas nada disseram, não encontravam palavras adequadas à situação.

No fundo, Marco sabia que algum dia essa conversa seria necessária, desde o começo percebeu que o amigo não estava tão indiferente quanto fingia e que mesmo que não quisesse admitir na época, sabia que estava se apaixonando.

— Você já disse pra ela? – Perguntou tentando melhorar a situação.

— Não.

— É melhor falar o quanto antes, ela não vai ficar disponível por muito tempo.

— É, eu sei. Só quis passar aqui primeiro. Tudo bem por você? – O desconforto dele com a situação era notável.

— Você não tem que pensar em mim, tem que fazer o que sentir que deve e esperar que ela diga sim.

— Acho que prefiro ouvir um não. – Comentou sem dar muita importância para as próprias palavras.

— Seria mais fácil, não? Ouvir um não e ser obrigado a seguir sua vida como ela era antes de conhece-la.

— O que sugere que eu faça? – Mais um pão de queijo pescado com os dedos.

— Sugiro que se declare logo, até porque ela já deve saber. – Respondeu com desdém. - E você já tá bem grandinho pra ficar pedindo conselhos amorosos.

— Quer saber? Você tá certo! Nem sei porque tô com esse medo todo, parece até que sou um moleque.

— Natural, é esse o efeito que elas causam.

— É melhor eu ir, antes que acabe com todos os seus pães de queijo.

Os dois se levantaram e Marco o acompanhou até a porta. A conversa não tinha sido das melhores, como o Barbixa havia imaginado, mas sentia que devia a explicação para o amigo e sabia que, em breve, a situação iria melhorar.

Os dois se abraçaram já na soleira da porta, um gesto rígido de imediato, mas que trazia escondido toda consideração que sentiam um pelo outro

— Obrigado. – Sanna agradeceu e seguiu até o elevador.

— Boa sorte. – O outro respondeu um pouco desanimado, porém sincero.

Assim que chegou à calçada do edifício, Elídio Sanna parou e começou a pensar quais seriam seus próximos passos. Se estivéssemos em um filme, esse seria o momento em que nosso personagem colocaria uma das mãos na cintura, acenderia um cigarro e contemplaria a fumaça se esvair em meio ao céu cinzento.