Paper Women

Cirque D'Hiver


—Tudo bem, vocês descobriram.

Sentada no escritório de Ariel Fieldman na Random House —porque é onde ela trabalha. Numa editora. —eu encaro Ariel com minha expressão mais revoltada.

—Descobrimos? —pergunta Becker, ao meu lado.

—Vocês sabem que eu conheço Alice Goldman. —ela aponta para o livro que eu coloquei na sua mesa quando entrei.

—Só que isso não é verdade, porque ela não existe.

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—Porque ela era a Vivian. —Becker complementa. Ariel está no modo profissional, um contraste forte ao que eu estou acostumada, as roupas malucas e o jeito doido. Ela está séria, a trabalho. Com um vestido longo florido e o cabelo preso no alto, mas mesmo assim: profissional. Adulta.

Mesmo com o cabelo azul. Ontem a noite, quando eu liguei para ela —do meu telefone de casa, R. I. P celular —e pedi para conversar com ela sobre coisas muito importantes, ela deve ter interpretado o que era, porque não pareceu surpresa quando apareci com o livro. Agora, ela até parece meio irritada.

—O que vocês duas tem que entender é que quando um autor usa um pseudônimo, automaticamente distancia ele do seu nome de carreira. É só isso. E eu trabalhava com Alice Goldman. Não Vivian.

—Só fale de uma vez. —replico, igualmente irritada. Uma parte de mim não suporta o jogo de mistérios de Ariel, enquanto a outra é atraída para os seus segredos. Mas conforme vou descobrindo o quanto uma pessoa pode esconder, não sei se gosto da parte de mim que gosta deles. Ela me encara, depois desiste.

—Tá bom. Tínhamos um contrato. Ela publicou um livro. Pronto.

—Por que você não contou pra gente?

—Porque ela não contou para vocês. —Ariel explica, sentando-se na sua cadeira. Em parte é verdade, mas não quero pensar nisso agora. —E eu era a chefe dela. Ela trabalhava para mim. Não é meu trabalho compartilhar informações como essa.

—Mas...

Eu não sei o que dizer.

—O que vocês querem saber? Sem ofensa, garotas, mas preciso trabalhar. —ela aponta para a porta, onde seu nome está escrito embaixo da sua ocupação.

—Como aconteceu?

—Vocês querem um café ou algo assim? —negamos, então ela revira os olhos e apoia as mãos na mesa. —Há dois anos assinamos um contrato. Ela tinha mandado alguns poemas dela para jornais e mandou um manuscrito para nós.Aceitamos, e eu comecei a trabalhar com ela em cima dos poemas que ela queria publicar até o processo de torná-los um livro. Isso demorou uns seis meses, mais ou menos. Demora mais quando são romances. Enfim, —ela balança a cabeça, girando na cadeira.—-o livro foi publicado, e como esperávamos, não fez tanto sucesso. Ela não se importou, porque sabia que primeiras publicações eram muito pouco divulgadas, principalmente de poemas. Poesia contemporânea não está mais tão na moda. Vendeu algumas centenas, sim, mas nada grande.

—Ela tinha umas cinco ou seis cópias na casa dela. —lembro da primeira vez que vi os livros, em St. Mara.

—Eu sei. Depois disso, estávamos no processo de fechar outro contrato, dessa vez com o marketing mais atacado, mas então...

—Ela morreu. —termina Becker, com a voz neutra. Ariel assente. —Você sabe de alguma coisa sobre isso?

—O que há para saber? —sinto que ela está frustrada, mas não posso deixar de notar que isso não vem das nossas perguntas, nem da nossa aparição. Ela não sabe as respostas, mas queria. Somos iguais nesse aspecto.

—Mas, Ariel, parecia que vocês eram amigas. —diz Becker, delicada. Uma fração de segundo se passa enquanto ela olha para baixo, engolindo seco. Esse é um lado de Ariel que nunca pensei que veria. Ela é sempre tão feliz, tão viva, e parece um crime que alguém assim possa se sentir triste.

Errado.

Mas eu deveria saber que todo mundo tem seus limites e fraquezas.

Só tenho que prestar atenção.

—Dá para conhecer uma pessoa muito bem em um ano, quando se trabalha do modo como trabalhamos. Os poemas dela... falam bastante.

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Me atinge que eu nunca cheguei a relacionar os dois pontos. A ficha ainda não caiu —que Vivian, Vivian—escreveu aquilo. Que todo esse tempo, eu estava lendo a poesia que ELA criou. E mesmo enquanto lia, esse pensamento nunca me ocorreu e eu descubro uma pessoa nova outra vez. São tantas camadas e lados diferentes e tantas Vivians em uma só que me pergunto se não foi por isso que ela se matou. Aguentar e sustentar tantos lados de você mesma e nunca mostrar nenhum deles de uma vez, completamente, sem medo do que iria acontecer, as pessoas não conciliam tão facilmente. O que acontece se essas pessoas colidem? Ou não operam juntas? Quando eu acho que entendo alguma coisa coisa sobre as pessoas, a humanidade, uma enxurrada de dúvidas molha sobre mim novamente.

—Quem sabe disso? A família dela?

Tenho quase certeza de que Victoria ou Visia comentariam alguma coisa.

Ariel balança a cabeça.

—Não, ninguém. Era só ela.

—Por quê?

—Eu não sei, Diana.

—Mas ela não falou NADA sobre isso?

—Nós nunca... conversamos sobre isso. Tudo bem? Talvez fosse pessoal demais. Garotas... vocês não podem entrar nisso com muitas expectativas.

—Mas e aquilo que você me falou sobre cometas e pessoas? Sobre o mundo? Toda aquela conversa era mentira?

Ela joga as mãos para cima em um sinal de exasperação. Talvez queira me dar um tapa tanto quanto quero dar um tapa nela.

—É claro que não é mentira! Ela me levou para conhecer pessoas e lugares e me fez pensar sobre algumas coisas e eu estou honrada de ter feito parte dessa... busca, —ela não encontra a palavra certa —mas se vocês esperam no final encontrar todas as respostas para as perguntas que tem agora, vão se decepcionar. As respostas estão com ela. Vocês conseguem suportar isso?

—VOCÊ consegue? —demanda Becker.

—Sim, eu consigo. Eu tenho Bobby. Eu tenho um filho, Becker. Um que vocês não conhecem, mas eu tenho. Eu devo ter contado para ela que toda quinta feira a babá cuida dele para eu e Bobby irmos ao karaokê, eu não sei. Mas eu tenho uma vida fora disso. Tenho meu trabalho. Vocês tem dezoito anos, e eu já fui uma adolescente antes. Poucas pessoas marcam nossa vida tanto quanto marcam quando somos novos. E eu sei que é impossível não cair aos encantos de uma pessoa como ela, então posso imaginar como vocês se sentem. E eu não quero que no final disso vocês acabem odiando-a, porque ela não merece. Não quero que a esperança e a visão de vocês sobre o mundo mude porque nem tudo saiu como esperado. Só quero que vocês entendam que a vida não é um livro, e por mais que ela tenha o escrito, isso —aponta para o livro —nem os poemas e as pessoas podem dar a satisfação que vocês esperam. Não existe um final, porque a nossa vida continua e um livro acaba.

—O que você quer dizer é que a gente devia parar de procurar?

—Vocês já foram para o Cirque D'Hiver?

—O quê?

O nome é familiar.

—Cirque D'Hiver, é o nome que eu dei para o poema do padre Jonah. Ou a pessoa dele. —adiciona, misteriosa. Quando eu abro a boca, ela aponta para mim. —Eu não vou contar, mocinha. Dá para ver que vocês ainda não foram, então não. Não acho que deveriam parar ainda. Mas depois disso, talvez seja bom. A estrada não fica melhor depois disso. Nem muito saudável.

O que isso quer dizer?

—Não vou contar. —ela repete, como se lesse meus pensamentos. Reviro os olhos, e caímos em um silêncio deprimente. Vivian escreveu um livro. Um livro. E eu passei tanto tempo gostando do livro sem nem conectar uma coisa a outra. Fico tão triste que nem vontade de chorar eu tenho. É mais um súbito desejo de dormir... para sempre.

Me pergunto se é melhor estar triste do que com raiva pela omissão.

Não acho a resposta.

—Eu não acredito que você tem um filho. —Becker nos salva, melhorando o clima. A tensão se dissipa e o silêncio é rapidamente substituído por vozes novamente. Ariel sorri. —Qual o nome dele?

—Harry.

—Potter.

Quando eu complemento automaticamente, ela sorri um pouco mais.

—Ele tem oito anos. Vocês iam gostar dele.

—Traga ele para o karaokê um dia desses. —ela assente delicadamente. É como um aviso implícito pairando no ar, ninguém comunicando abertamente: hora de ir. Eu levanto e Becker me segue. Ariel nos guia até a porta e me devolve o livro.

—Eu já tenho um. —explica.

—Você quer o poema da Mary Oliver de volta? —eu pergunto, porque ainda tenho o poema que fala sobre Santa Filomena.

—Não, querida. Isso acabou para mim.

—Isso não quer dizer que a gente tem que parar de ir no karaokê, não é? —pergunta minha amiga, hesitante.

—É óbvio que não! Não trago toda aquela roupa para nada! —nós rimos, mas ainda há traços de tristeza em cada uma das risadas. Ariel afaga meu cabelo, e um homem de terno e gravata a chama no fundo do corredor. Ela assente e olha para mim.

—Só por que ela não contou, não quer dizer que ela não queria que você soubesse. Ou que vocês não eram importantes.

—Você sabia que a gente ia aparecer no karaokê aquele dia?

—Não sabia quem apareceria, mas sabia que alguém viria, mais ou menos. —Ariel encolhe os ombros. Trocamos um abraço, depois é a vez de Becker e ela acena para nós quando entramos no elevador.

—Isso fica cada vez melhor. —murmura Becker, sarcástica. Não posso deixar de concordar. Quando ela me deixa em casa, segura o livro e olha para mim. —Posso ler?

—Não tem um Travis nesse. —aviso, porque Becker não gosta muito de poesia. Ela já tentou algumas vezes, mas nada captura o seu coração como os romances em que Travis e Rhett Butlers aparecem.

Porém...

—Tem a Vivian. —ela complementa.

Quando eu entro em casa, meu pai está tomando café na cozinha. Está começando a escurecer, e a única luz acesa é a da cozinha. Minha mãe não está em casa.

—Oi, pai. —anuncio, com voz falha. Ele me ignora.

O resto da semana se passa como sempre passou, mas dessa vez eu penso em bem mais coisas que não são a escola. Coisas como contar para Visia e Victoria sobre o livro, contar para Ian sobre o livro, contar para o padre Jonah sobre o livro. Eu penso bastante, mas nada acontece, com exceção do karaokê com Ariel —pela primeira vez em quase um mês, Eric Ian, Becker e eu vamos todos juntos encontrar Ariel e Bobby, mas ela ainda não trouxe Harry — e sexta feira. Sexta feira é um dia particularmente interessante, do começo ao fim, por razões diversas. Para começar, eu e Becker passamos a aula toda discutindo a poesia de Vivian. Em seguida, no final da aula, vou para o carro apenas para ser acolhida com um buquê de rosas —aquelas bem, bem vermelhas —em cima dele.

O que é isso? é meu primeiro pensamento. Do meu lado, Becker solta uns gritinhos animados.

—Ai meu Deus, quem colocou isso aí? Ai meu Deus, tem um cartão! —então ela estende o cartão para mim, o cabelo ruivo parecendo um pouco mais luminoso a luz do sol. Curiosa, eu abro o cartão. Leio as seguintes palavras, a primeira frase digitada no cartão e a segundo com a letra própria:

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Feliz aniversário!

♥ Feliz dia dos namorados, Diana. ♥

As palavras "feliz aniversário" estão rabiscadas várias e várias vezes. Eu fico um segundo paralisada, antes de entender quem o mandou e porquê e soltar um risinho bobinho, ganhando um olhar desconfiado de Becker e uma pergunta de Gordon, mais ou menos assim "Que porra é essa?".

Fico tão vermelha quantos as rosas, lembrando da conversa que tive com Ian sobre o meu aniversário e como eu nunca sabia se os meninos vinham falar comigo por causa do dia dos namorados ou pelo meu aniversário realmente.

—Ian. —eu explico para Becker, que abre a boca em choque e solta outro gritinho. Explico para ela e Gordon que não está acontecendo nada entre mim e Ian, mas não reprime a sua felicidade. Por causa do combinado com o padre Jonah, eu e ela ficamos na escola a tarde, esperando pela noite, nenhuma de nós querendo ir para casa. Eu guardo o buquê cuidadosamente no bando de trás do carro e toda vez que penso nele, sorrio, corando outra vez. Passamos as primeiras horas da tarde na arquibancada, enquanto vemos o time de Robbie treinar para um jogo mas logo ficamos entediadas, então Becker liga para Eric, que avisa que Ian e ele estão na sua casa, porque ele tem que ficar de "babá para a irmãzinha nojenta dele". Pegamos nossas coisas, Becker sopra um beijo para Robbie e vamos até a casa de Eric.

É outra experiência interessante.

—EI, BABES. —Eric grita da sua porta, nos mandando entrar. Não me sinto mais nervosa ao redor dele, como as vezes eu sentia. Ele nos conduz até uma sala no fundo da sua casa —que é uma completa BAGUNÇA —onde Ian e a irmã de Eric, Sarah, estão jogando sinuca. Eles conversam, mas ela parece meio irritada como sempre. Conheci ela melhor na festa do padre Jonah, mas não há muito que eu saiba sobre ela. É um pouco mais nova que nós, apenas. Quando entramos na sala, eles nos olham. Ian termina uma tacada e sorri para mim e eu me sinto corar novamente e sorrir para ele, totalmente constrangida. Penso em abraçá-lo, mas seria estranho com toda essa gente olhando. Damos um olá para Sarah, mas ela só levanta uma cerveja, cumprimentando, antes de fazer uma tacada.

—Bem vindas ao paraíso de Eric Fendergast.

—Serviço de babá, hein?

—A gente faz o que pode. Puta merda, Sarah, melhore sua pontaria. —ele exclama. —Deve ser a cerveja te fazendo mal. —então ele arranca a cerveja da mão dela e toma vários goles.

—Me dá aqui, babaca!

—Você tem dezesseis anos!

—Isso não te impediu de pedir dinheiro emprestado para comprar cerveja. —ela contra-ataca. Eles começam a gritar. Isso me lembra uma coisa.

—Você não tem que ir no AA hoje ou algo assim? —questiono Ian, mas ele balança a cabeça.

—Não hoje. —aquiesço, e quando ele continua me encarando eu começo a rir, meio tímida. Me forço a olhá-lo nos olhos.

—Obrigada.

Ele sabe do que estou falando.

—De nada.

Quando o primeiro palavrão na briga de Eric versus Sarah é solto, Ian e eu entramos em uma brincadeira de gritar que esse certo palavrão é feio, imitando a voz de Yuri. Rapidamente explicamos a brincadeira para Becker e o resto da tarde se passa com Eric, Ian e Sarah jogando sinuca, Eric e Sarah se xingando e brigando por alguma coisa que um deles fez de errado e os expectadores gritando:

—Porra é feio! Merda é feio!

Até que Sarah perde a paciência e grita para nós:

—Vão se foder!

E nós respondemos:

—Foder é feio!

E continua. É meio irritante e infantil mas chega um certo ponto que a minha barriga dói de tanto que estou rindo, e é o tipo de dor que eu gostaria de ter mais vezes porque me enche de vida e eu não estou mais triste. Lá pelas seis horas da tarde a mãe de Eric chega e quase tem um ataque do coração quando nos vê —as meninas —então começa a fazer um interrogatório, passando para falar sobre relacionamentos e as qualidades do Eric. Quando ele e Sarah começam a brigar —de novo— e um deles diz algo como "você é tão idiota quanto a porra de uma porta!" Ian grita, "porra é feio!" e a mãe deles, quase arrancando seus próprios cabelos, diz para Eric:

—Você devia aprender com o Ian, Eric.

Então Eric avista Ian, que começa a gargalhar e sai correndo para fora de casa enquanto Eric corre atrás dele, ameaçando arrebentar a cara do "desgraçado".

—PAREM! PAREM! PRECISAMOS IR! —Becker grita, porque Ian e Eric estão quase no final da rua de tanto correrem um atrás do outro. Ainda consigo ouvir as risadas de Ian, mesmo ao longe. Lentamente eles voltam e nos despedimos da mãe de Eric e de Sarah, mas ela só mostra o dedo do meio para nós quando a mãe não está olhando. Vamos com o meu carro. É estranho dirigir para tantas pessoas que não param de falar. É estranho porque é como se eu sentisse a vida mais intensamente perto dessas pessoas e eu nem sei como isso pode fazer sentido.

Só sei que eu gosto deles.

Eles estão rindo de alguma coisa mas logo a conversa fica mais séria quando Eric e Ian começam a planejar um modo de recuperar meu celular.

—Isso é loucura. —diz Eric. —Por que vocês não chamaram a polícia?

—Yasha está envolvido nessa parada da maconha e se pegassem ele, ele estaria ferrado.

—E eu posso conseguir outro celular. —eu não gosto de dizer por aí que tenho dinheiro, mas é verdade.

—Mas seus pais não ficaram bravos? —Becker e Ian ficam em silêncio. Eu aperto o volante com mais força.

—Não. Eles, uh... não sabem. E não ligam, eu acho.

—Isso é estranho. —Silêncio. Constrangedor. —Enfim, eu tenho um plano. No Ano Novo a gente achou a casa daquele antigo fode-fode da Tiff então podemos ir lá. —Fode-fode?

—Certo. —concorda Ian. Mantenho os olhos na estrada, mas Becker coloca os joelhos no banco e se vira, mesmo depois dos meus protestos.

—E ela provavelmente ainda fala com ele porque ela é piradona da cabeça e você é um babacão e eu não sei porquê algum dia acordou gostando dela.

—Certo.

—A gente tenta conseguir o endereço dela através dele, jogando um pouco de violência na jogada. —Becker lança um olhar severo, mas os meninos ignoram. Ela se vira para frente e começa a mandar mensagens de texto para Robbie, provavelmente. Alguns segundos depois, ela já está sorrindo para o telefone. —Então quando a gente conseguir, vai atrás deles e eu peço para o meu primo que é militar dar um susto neles, fingir uma prisão ou algo assim. Se mesmo depois de tudo isso não der certo, partimos pra porrada. Você chama o Yasha e pede pra ele queimar todo o estoque de bebida da casa dela. Ou melhor, peça para ele mandar para mim.

Não preciso me virar para saber que todos reviram os olhos para Eric.

—Você é um gênio. —retruca Becker.

—Confie em mim, quando eu acordei hoje, eu não tinha planos pra ser tão incrível, mas merda acontece. —Solto uma risada. Subitamente, me lembro do livro de Vivian e que eu preciso contar para Ian, mas não sei se esse é o melhor momento.

Viro a rua e paramos na frente da igreja. Por reflexo, eu olho para a casa de Ian e vejo que ele faz o mesmo. Imagino Vivian ali na janela, conversando com o padre Jonah na última vez que ele a viu e me pergunto se Ian está olhando na mesma direção porque o padre contou sobre isso. Se não, imagino o que ele está visualizando.

Então o padre aparece na janela do carro, parecendo nervoso e atiçando automaticamente minha curiosidade sobre a nossa parada. Lembro das palavras de Ariel, Cirque D'Hiver. O nome ainda é familiar e conheço francês o bastante para saber que Cirque significa circo. Isso me deixa intrigada.

—Bem, estou vendo que estão todos aqui. —o padre parece tão desconfortável que eu fico com pena. Ele alisa a batina e Becker sai do banco da frente para dar lugar ao padre. Ela senta-se do lado de Eric, no banco de trás. Olho para o padre Jonah.

—Animado, padre? —ele olha para mim com um olhar de não brinque comigo, então permaneço séria. Ele grunhe irritado.

—Vamos acabar logo com isso. Deus que me perdoe, Jesus, Maria e José. —ele fecha os olhos e por um segundo, acho que reza de verdade. Então me fala um endereço desconhecido e eu sigo pelas ruas. Enquanto fazemos a viagem, o padre faz suas recomendações misteriosas.

—Permaneçam ao meu lado sempre. Nunca se distanciem. Muita atenção, ouviram? Não aceitem nada que estranhos derem à vocês e eu estou mandando vocês rezarem para seus anjos da guarda agora mesmo. Se se perderem da minha vista, voltem para o carro, mas não corram, nem chamem atenção. Me perdoe, Senhor.

—É tão ruim assim?

—Só Deus julga. —diz ele, depois de pensar por um segundo. —Só Deus. —repete, para se assegurar.

—Agora eu estou ansioso. —comenta Eric. No retrovisor, posso ver que Ian está igualmente ansioso, mas tenso.

Então finalmente, entramos na rua indicada. As coisas já tinham começado a ficar estranhas quando entramos no bairro e os carros começaram a aparecer do nada, indo e voltando. Não há tanto movimento nessa cidade, muito menos em uma noite como essa. A movimentação era estranha, principalmente quando alguns carros tentaram me cortar a toda a velocidade para chegar mais rápido e quase nenhum deles respeitava os sinaleiros. Alguns buzinavam quando eu mantinha a velocidade permitida e a quantidade de mulheres nas ruas era sinistra. Aquelas com pouca roupa. Então eu devia imaginar que paramos na frente de uma longa e sem saída, coberta por luzes até o final e cheia —completamente cheia —de pessoas. Não pessoas comuns. Sei na hora que a maioria das mulheres são prostitutas. Não é algo pobre, como você imagina que seria o ponto de encontro dessas mulheres. É diferente de tudo que eu pudesse imaginar e eu nunca vi um lugar como esse. É até... luxuoso. As casas ao longo da rua são coloridas e iluminadas apenas pelas luzes dos postes, mas com mesas na entrada como uma venda de ingressos e uma mistura de sons envolve o ar, a música de cada casa competindo com a outra. Apesar de saber que as casas também estão cheias, a rua está tão repleta quanto o interior. As pessoas falam alto, e eu posso ouvir gritos —não aqueles que você precisa ter medo —e risadas altas. Os vestidos de algumas são curtos demais, os rapazes obscenos demais e todos nos olham estranho quando entramos. Sinto alguém segurando minha mão e suspiro de alívio quando vejo Ian do meu lado, me mantendo entre o padre Jonah e ele, evitando me deixar na borda porque um dos homens que passou por mim perguntou se eu cobrava menos que a moça da Sinatra (que eu suponho ser o nome de uma dessas casas). Algumas pessoas começam a uivar quando veem o padre vestido de padre, mas ele apenas estende a mão e diz:

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—A paz esteja com vocês. —E eles continuam gritando, mas não fazem nada.

—Por que nós estamos aqui?

—Só ignorem e continuem andando. —Eu me aproximo de Ian, com medo. Nunca estive perto de um lugar como esses e não conheço essa realidade, mas não deixa de ser triste e perigosa. Atrás de nós, alguém começa uma briga. Do meu lado, o padre murmura baixinho repetidamente, "me perdoe, Senhor, me perdoe, Senhor". Andamos rápido, mas parece que nunca acaba. Puxo Becker para meu outro lado, ficando entre eu e o padre Jonah e seguro sua mão também. Ela aperta.

Estamos todos horrorizados. No final da rua, a luz do poste não alcança tão bem, e é mais silêncio por causa disso, já que todos querem ir para a luz. O padre solta a respiração visivelmente e bate em uma das portas. É uma das únicas que não tem pintura. É feita de madeira e minúscula. O ar é úmido. Nos entreolhamos e então escuto a porta ranger, para em seguida se abrir.

Dou um passo para trás, tentando decodificar a confusão sob meus olhos.

É uma mulher. Mas... é uma mulher... estranha. O rosto é largo, e a maquiagem é forte e indecente e as roupas são ridículas, me fazendo lembrar das fantasias que Ariel traz para nós. O corpo é enorme, os seios são enormes e nada nela faz o menor sentido.

Talvez por ela ser um homem.

Arregala os olhos e segura a peruca encaracolada da cor do cabelo de Becker e todos nós estamos paralisados, quatro adolescentes e um padre encarando um drag queen.

—Isso é tão fodido. —ouço Eric sussurrar. Porém, fica ainda pior quando estudo melhor seu rosto.

—Ah, meu Deus. —a voz é tão, tão estranha, como uma voz grave tentando parecer mais... feminina. Minha cabeça está girando. Olho para Ian do meu lado, me perguntando se ele reconhece a pessoa tanto quanto eu, pelas fotografias que vimos na casa de Victoria.

Estou olhando para Vincent Winter.