Vincent ataca o padre Jonah.

O padre Jonah não está revirando.

Vincent ataca com socos e Eric e Ian correm para separá-los porque ele (ela?) agarra um punhado da batina do padre para garantir que ele não fuja enquanto levanta os punhos, o rosto selvagem.

—Pare! Pare! —grita Becker do meu lado mas ninguém está escutando. Eric puxa o padre e Ian puxa o seu tio.

Isso vai ser esquisito.

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O caos me confunde.

—Seu filho-da-puta! —mesmo furioso, Vincent ainda faz aquela voz estranha, indecisa. —Eu vou te matar, desgraçado! Como você teve a coragem? —os braços de Ian estão ao redor do seu estômago, puxando-o para longe.

—Foi a Vivian! Foi a Vivian! —suplica o padre, com medo. Está meio sem fôlego e fora de forma.

—Vivian o cacete, você podia ter mentido, seu monte de mer...

—Ei, ei, ei! Respeito aqui, ouviu? —rebate Eric, soltando o padre. Eu e Becker nos colocamos entre Vincent e o padre e Ian solta Vincent. Avisamos com o olhar que é melhor ele não tentar atacar novamente e ele fica com a cara fechada, ajustando a peruca.

—Vamos todos respirar fundo.

—Ah, cale a boca, camarão.

Isso ofende a Becker e a mim.

—Qual é o seu problema, cara?

—MEU NOME É LUCILLE.

—Vin... Lucille, eles só querem conversar. Estou aqui como um favor à Deus. —todos nós olhamos confusos para o padre depois disso, e eu posso sentir que Vincent/Lucille começa a se acalmar. —Você não pode mentir para a sua família. Não pode destruir isso por causa de mentiras. Acredite, Vin... Lucille, Deus não quer famílias destruídas.

—Você quer envolver Deus nessa história? Então por que Deus me fez assim?

Não sei dizer se ele está falando da parte masculina ou feminina de si mesmo, mas ninguém responde. O padre fica um pouco vermelho e é como se nada fizesse sentido e eu ouço Vivian na minha mente.

Ela está gritando.

G r i t a n d o.

—O que está acontecendo? —Eu pergunto, tentando abafar a sua voz. Olho para Vincent e ele devolve o olhar confuso então todo mundo fica confuso e desconfortável, como se ninguém soubesse o que fazer em seguida. Percebo que assim como o padre Jonah, Vincent está corando. Ele olha para o lado e vê Ian, então o mundo para e um grande holofote ilumina apenas os dois, pois é tudo que consigo enxergar. Vincent encara Ian por muito tempo, até que Ian começa a ficar desconfortável.

—Oi, uh... tio Vincent.... uh, Lucille.

—Você lembra de mim? —a voz dele não sofre nenhuma mudança.

—Em fotos. E você foi no funeral, eu lembro disso agora.

Eu também, percebo. Ele estava lá.

Como uma mulher.

Mas a Lucille do funeral era mais comportada que essa. Era enorme em todos os sentidos, mas com um vestido preto discreto, sem falar com ninguém. Não tenho certeza se ele ao menos falou com as irmãs ou foi ver Vivian no caixão. Dessa parte eu não lembro, mas lembro de ter ficado curiosa por uns cinco segundos sobre a figura que eu avistara no meio de tanta gente normal antes de ser dominada pelo choro como todo mundo. Queria lembrar se ele estava chorando.

—Suas tias sabem que você está aqui? —Vincent/Lucille tem um modo de falar que é como facas saindo da sua boca. Ele fala rápido, afeminado e em conflito. Há algo no rosto dele, um tipo de peso em relação à Ian e as irmãs dele que faz meu coração virar um nó.

—Não.

—LUCILLE! —uma garota de programa chama pela porta de onde Vincent/Lucille saiu. Vincent vira para trás. —MISTY PRECISA DA MAQUIAGEM! —a voz é esganiçada.

—Peça para a Candy! —a voz feminina de Vincent se acentua e eu escuto com atenção, parte maravilhada, parte horrorizada pela estranheza de como é fácil para ele se adaptar ao perfil de uma mulher.

—Tudo bem, mas a novata está chorando e a Candy não vai poder consertar isso.

Lucille se vira abruptamente.

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—Tenho cara de assistente, garota? Eu sou a porra da estrela. Vai para o seu cantinho e não me incomode.

—Quem são esses, Lucille?

Como se uma outra pessoa tomasse forma no corpo de Vincent, ele revira os olhos com a maior atitude, quase violento e nos puxa para longe. Ele está usando salto alto, mas anda mais rápido que nós pela rua que nos levou até ali. As casas estão começando a tocar músicas mais altas ainda e a multidão se dissipa mas então um cara puxa o meu braço e eu solto um gritinho, o que não resulta em nada pois no segundo seguinte ele aperta minha bunda e me beija.

—Mas que porra... —alguém diz. Acho que tentam separar o homem mas ele me aperta forte. Não o beijo de volta porque estou ocupada lutando contra ele mas consigo sentir o cheiro de álcool. Os braços dele apertam contra os meus até que eu finalmente consigo me distanciar o suficiente para gritar.

—Me solte!

Pânico.

Isso acontece em cinco segundos, aproximadamente.

—Carne fresca, ai, ai, ai... —É a primeira e última coisa que eu ouço do homem antes de uma mão o levar para longe.

Com um soco.

Lucille o coloca contra a parede e mesmo com o som do meu coração martelando nos meus ouvidos e a vontade de vomitar por causa do susto, consigo ouvir ela/ele gritando para o homem.

—Quer acabar na prisão, seu filho da puta? Acha que isso é legal? Ela é uma adolescente, seu babaca!

Voz masculina.

Soca ele no estômago e ele geme de dor. Sinto braços me puxando. Becker. Ela me distância e ela e Ian se colocam no meu campo de visão e tento dizer alguma coisa mas

não

sai

absolutamente nada.

—O que foi que aconteceu?! Em um segundo você estava do meu lado e no outro o cara estava te agarrando! —ela exclama mas eu fico na ponta dos pés para ver o que está acontecendo na parede. De repente Eric e Ian chegam com um segurança e ele tira Lucille de cima do homem e pede para que ela se acalme. Seu rosto é completamente masculino nessa hora, dominado pela raiva. Quero ver o que está acontecendo mas Ian chama minha atenção novamente e sem salto alto eu fico menor que ele então acaba bloqueando a minha vista. Concentrando nele, náusea me atinge.

—Diana! Fale alguma coisa!

—Eu... eu acho que eu preciso lavar minha boca. —o nojo domina meu corpo e eu estou desesperada para tirar o cheiro de álcool do idiota de mim. Becker ri mas Ian lança um olhar severo em sua direção e ela para. Demora um tempo para meu coração desacelerar e então o segurança vem falar comigo. Me pergunta se o homem realmente me agarrou e eu respondo que sim e acho que ele interpreta minha expressão amedrontada e expulsa o homem da rua, ameaçando continuar a briga se ele voltar bêbado desse jeito. Depois pede desculpas para mim e Vincent/Lucille passa um braço ao redor do meu ombro, me protegendo.

—Tudo bem aí? —Eric pergunta. Faço que sim.

—Respire direito, garota. Qual é o seu nome?

—Diana.

Ele pausa.

Então continua.

—Diana, huh.

—Eu sabia que não era uma boa ideia. —murmura o padre Jonah, limpando o suor da testa com um paninho.

—Nem aqui nem no Inferno. —replica Vincent. Ele começa a me ensinar como dar socos para me defender, caso eu venha a precisar disso mais tarde. Quando chegamos no final da rua em paz, está uma escuridão completa e poucos carros passam por ali. Paramos na frente da primeira casa fora da rua, e eu vejo a placa que indica o nome do lugar onde estávamos.

Cirque D'Hiver.

—Agora alguém acalma essa moça porque até eu consigo ouvir a circulação dela. —ele me solta. O padre me estende uma garrafinha de água que eu aceito prontamente, mas apenas para limpar minha boca, então cuspo no chão, fazendo uma careta. —Faça isso mesmo, consigo sentir o cheiro de Moonshine daqui.

—Idiota. —murmuro.

—Alguém tem um cigarro? Não?

Negamos. Lucille faz uma pose estranha, suspira audivelmente e se vira para a rua sem sair do lugar. Não sei se vou conseguir me acostumar com a aparência e o modo como ele/ela se porta. Penso sobre as várias pessoas dentro de Vivian e percebo que talvez Vincent tenha o mesmo problema, expressado no lado de fora.

Talvez ele viveu rodeado por aquelas mulheres Winters por tanto tempo que quis virar uma também.

—Conte para eles. —o padre Jonah diz. —Quanto mais rápido contar mais rápido vou poder sair daqui, Deus que me perdoe.

—Você está me ofendendo, seu merda. É a minha gente, entendeu? —Lucille joga o peso para uma das pernas, fazendo o quadril se acentuar. Se eu estivesse vendo de longe e julgando apenas pelas linhas do seu corpo nesse exato momento, não haveria dúvidas sobre a sua sexualidade, que estaria emanando feminilidade.

—Estou aqui por causa da Vivian. —o padre comunica lentamente, tentando se acalmar. Nunca vi o padre tão nervoso e me pergunto o porquê de Vivian ter o colocado no caminho de encontrar Vincent se isso o deixa tão desconfortável. Não acho que pensou nisso. Ou apenas fosse aquela parte egoísta e sádica dela mesma dominando sua mente. Tenho lidado com essa parte dela com bastante frequência nos últimos meses, e espero que meu coração decodifique as palavras de Ariel, —eu não quero que no final disso vocês acabem odiando-a, porque ela não merece—antes que sua previsão se torne verdadeira. Uma parte de mim não quer odiá-la mas a outra se torna um pouco mais amarga com relação à ela a cada passo que dou.

Lucille lança chamas com o olhar.

—O que o senhor quer que eu conte? Que eu virei mulher? Acho que isso eles já sabem.

—A Vivian sabia que você era assim? —Becker pergunta o que estava na minha cabeça.

—É óbvio que sim, seus idiotas. Se não não teria trazido esse bando de gente amiga dela batendo na porta do meu camarim. —cada gesto seu é pura violência, mesmo que não machuque. Talvez seja um mecanismo de defesa. Ele ainda não olhou para Ian nos olhos, desde a conversa de minutos antes. —Aquela vadia.

—Woah, cara.

—Não venham fingir que ela não é uma completa vadia por ter feito check in desse mundo sem avisar ninguém, tá bom? Eu tenho um show para fazer e não preciso de uma sessão de Deus-salva-Deus-perdoa nem de metidos a carpideiras pra me consolar.

—Ela era a sua irmã.

Incredulidade.

—Isso mesmo, ela ERA porque ela MORREU. SE MATOU, AMORZINHO. ACEITE ISSO. O MUNDO É MARAVILHOSO NA TERRA DO SEGUIR-EM-FRENTE.

—Vincent, sabemos que você amava ela e está triste. Não estamos aqui para dessas coisas.

Lucille começa a rir, mas não há humor no ato.

—Sério? Perguntem para o Ian. Ela não era uma baita de uma vadia, Ian? E quem são vocês? —ela só olha para Becker e Eric. Ian fica em silêncio. Meus braços estão envoltos ao meu redor, quase automaticamente, me protegendo dos gritos e das palavras violentas. Me lembra... me lembra o avô-terrorista e isso me deixa nauseada, pois lembro do quanto Vincent sofreu nas mãos dele, junto com Vivian. Toda essa conversa pode ser verdade na superfície, mas sei que ele está triste. —Uma vaca egoísta, isso sim. Não foi novidade, sabe? Eu já sabia que isso acontecer. Ela era igual a pobre mamãezinha. Isso está no sangue, nunca sai.

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—Eu estou mandando você se acalmar. Me escute, Vincent.

—É LUCILLE

—LUCILLE! —O padre grita, surpreendendo todos nós. —SE. ACALME. PELO AMOR DE DEUS.

—Você não quer ser como o seu pai. —Há uma pausa no tempo onde é impossível respirar.

Merda.

No minuto seguinte, estou contra a parede e Vincent me encara, os olhos fundos nos meus, ardendo em ódio. Vejo o homem que era, com toda a raiva e rancor e vejo os traços da maquiagem criando a mulher que ele é hoje, uma nova pessoa. Esse é o resultado de duas pessoas colidindo dentro de apenas uma.

—Quem é você, sua pequena ignorante, para falar sobre qualquer coisa?

Não consigo respirar.

—Ah, Senhor, solte ela. Vamos, vamos! Solte. —Nenhum de nós está escutando. Eu ignoro os braços tentando o afastar e a aparência assustadora dele e me esforço muito para engolir o nervosismo e falar. Não há medo. Só há coisas que preciso dizer e é difícil de falar em voz alta.

—Eu amava ela, está bem? E eu não queria que ela tivesse morrido. Às vezes, eu queria que ela fosse minha própria mãe. Ela se matou no meu aniversário e me deixou com um poema sobre suicídio da Sylvia Plath como uma verdadeira vaca egoísta. Feliz? Eu ainda a amo.

A percepção choca tanto ele quando eu.

Agora ambos estamos com raiva, mas ele me solta.

—Qual é o seu problema?! —alguém grita. —Mas que merda!

—Tem alguém por aqui que não é pirado pra cacete? —Lucille olha para Eric como se pudesse mandá-lo para o inferno com apenas um olhar e o rosto dele fica vermelho, e por um segundo, parece intimidado. —Tudo bem, vou parar antes de acabar em uma valeta na estrada. Ou bêbado na cama com qualquer um daquela rua.

—Se você insultar aquela "rua" você vai acabar bêbado na cama com três caras que eu vou pessoalmente selecionar, e eles são mais gays que eu.

—Mas você é uma drag queen, você é, tipo, hétero.

Eu vou matar Eric.

Mas Lucille parece considerar o que ele fala. E enquanto eu estava esperando pelo próximo corte ácido vindo dela, ela encara Eric e sua pose diminui de tamanho. Ela parece... normal.

—Obrigada.

—Uh, de nada? O que foi que eu falei?

—Pare de estragar o momento e cale a boca. —replica Becker, a voz permeada de irritação. Ela passa a mão pelo cabelo, olhando para os lados, pensando no que fazer. —E agora? Honestamente, eu já tive ação demais para o resto do mês então se alguém mais quiser beijar outras pessoas sem permissão, socar, ou colocá-las contra a parede, me avise para que eu possa voltar para o carro antes disso acontecer. Então você é irmão da Vivian, só que na verdade é uma mulher. Todo mundo sacou.

Encaramos uns aos outros. A verdade é que eu estou cansada e não faço a menor ideia do que fazer agora. Os outros também. O padre está respirando fundo, nervoso e exausto, passando o lencinho na testa novamente e eu encosto na parede como apoio.

—Acho que vocês jovens já viram o que tinha para ver. Vamos voltar para a igreja. —anuncia o padre.

—Vocês não arrumaram toda essa confusão de graça, não é? —contra-ataca Lucille. Ela mexa os dedos como eu costumo fazer, as unhas pintadas de um rosa arroxeado brilhando por conta do glitter. —Preciso da merda de um cigarro.

—Você sempre fala como se estivesse dando socos com as palavras?

—Com licença? Preciso relembrar dos meus amigos gays? Preciso lembrar que vocês bateram na minha porta e estão enrolando e perdendo meu tempo com a manha de vocês enquanto eu podia estar ganhando dinheiro? Preciso relembrar que o filho da puta do responsável que trouxe vocês aqui está se metendo na porra da minha vida e acha que tem direito só por que minha irmãzinha deprimida deu meu nome pra ele na porra de um poema? Porque acho que ninguém está levando isso em consideração.

—Ela me deu um nome, também.

—Me diga algo que eu não sei, idiota.

—Você sabe?

—Você tem todos os sintomas. —ele aponta para mim. —O drama e as boas intenções que ninguém se importa, a mágoa e a determinação. Ou você está fodendo o Ian ou o amiguinho dele ali.

—Ei! —Ian se coloca entre nós. —Eu não ligo se você está puto da vida, isso não te dá o direito de sair falando merda dos outros.

—Vocês estão transando. —odeio o modo como Vincent pronuncia essas palavras. Como se ele soubesse de todas as respostas. —Não a engravide.

—Não estamos transando. Ela não está grávida. E mesmo se esse fosse o caso, se estivéssemos, não vejo a sua participação em nada disso. —Ian vocifera com uma calma gelada e assustadora. —E se você tratar ela como uma vadia ou qualquer um deles do jeito que está tratando, quem vai estar contra a parede na próxima vez será você. Mais alguma pergunta antes de irmos embora? —Ian coloca um braço para trás, procurando por mim. Seguro seu braço e deixo ele ficar entre Lucille e eu porque... porque eu me sinto horrível agora. E quero ir pra casa. Decepção me destrói... outra vez. Tenho que lembrar de pedir desculpas para o padre Jonah depois por ter nos trazido aqui pela minha insistência. Imagino como Lucille reagiu quando Ariel veio e porque é tão diferente agora. Será o Ian? Deve ser. Vincent não falou nada desde que ele terminou sua pergunta e eu estou olhando para o chão, então não sei com que expressão ela está.

—Vai contar para a Victoria? —sua voz é baixa agora. Sinto todo mundo voltar a respirar.

—Não. Vou fazer algo pior. Vou deixar você se acabar no ódio e continuar afastando todo mundo. Victoria precisou me mostrar fotos para eu lembrar da sua aparência. Vai chegar uma hora que ela vai parar de ligar e Visia vai parar de te convidar para qualquer merda comemorativa que dê na telha dela. Você vai ficar como a minha mãe. Ou pior, como o seu pai. Até dele você fugiu, hein? Caso queira saber, ele continua lá, fazendo a vida de todo mundo um inferno. Nos perdoe por ter desperdiçado seu tempo, tenha um ótimo show.

Ian começa a me puxar e eu vou sem protestar. Ele passa um braço ao redor do meu ombro e ficamos em um meio abraço e ele beija minha testa, provavelmente achando que o que Lucille disse me abalou. Não digo à ele que o que mais me abalou foram as suas palavras. O estrago. O padre estava certo em dizer que isso estava destruindo a família. Aos poucos, não sobraria nada de Vincent a ser lembrado.

Não olho para trás conforme seguimos até o carro. Ninguém fala nada e o silêncio é tão pesado que dificulta minha respiração de uma maneira muito esquisita. No carro, Eric —em uma voz tão baixa quanto a de Lucille em sua última pergunta —se oferece para dirigir e eu deixo, então vou atrás com Becker e Ian. Becker imediatamente se vira.

—Ela ainda está lá. —sussurra.

—Talvez se ele ver as pessoas se afastando fisicamente possa entende um pouco o estrago que está fazendo. —percebo um toque de amargor no tom de Ian que não se encaixa nos sentimentos dele em relação a Vincent. Ele está furioso e traído mas é maior que isso.

—O que você sabe? —ele abaixa o olhar para me encarar.

—Tia Vis. —Vis. Tenho que contar sobre o livro.Ela mencionou que ele tinha sumido do mapa. Por isso me pediu para não fazer a mesma coisa quando nos despedimos dela.

—Eu sinto muito. —Por ele. Por ela. Pelo padre Jonah. —Sinto muito por ter insistido nisso, padre. —falo, dessa vez mais alto.

—Deus está trabalhando. —comenta ele, deixando-me confusa. —Tenho confiança nisso. Mas sei que não foi uma boa ideia, por isso aceito suas desculpas. Só não me peçam para fazer algo desse tipo outra vez. Nunca. E espero que rezem por todos que acabaram de ver naquele lugar.

Todos nós assentimos. Quando eu olho para o espaço entre mim e Becker, percebo que as rosas ainda estão ali. Pego uma e estendo para Ian.

—Feliz Dia-de-Merda. —Sussurro. Ele cede e ri baixinho, quase em segredo. A tristeza aquieta a risada.

Primeiro deixamos o padre na igreja, e nos desculpamos de novo mas ele só balança a cabeça e quando cruzamos olhares, sei que estamos perdoados. Ele gosta de nós. Então deixamos Becker em casa porque ela precisava estar cedo na cama, já que no dia seguinte a família dela vai viajar pra visitar a avó. Quando ela entra, a luz da sala —que reflete na janela— pisca duas vezes, dizendo um até mais. Eu já estou acostumada, mas Ian e Eric sorriem surpresos. Então deixamos Eric em casa e Ian sai junto. Não preciso perguntar para saber que ele vai dormir ali e nem questiono seus motivos. Eu gosto de Eric agora e sei que é um bom amigo para ele. Afasta a solidão. De dentro da casa, a mãe de Eric grita perguntando se ele está com alguma das "garotas" com ele. Ele diz que sim, mas que está se fazendo de difícil para que eu me apaixone ainda mais por ele. A mãe dele responde gritando que isso é bom, porque assim o casamento dura mais. Eles riem do meu rosto corado e Eric entra sem mais palavras. Ian fica em pé na janela e eu tiro o livro de Alice Goldman da bolsa, engolindo seco.

—Ian?

—Ainda estou aqui.

—Eu descobri de onde Ariel conhece a sua mãe. —ele parece mais concentrado e sério depois que comunico isso.

—Como assim?

—A sua mãe, ela... uh, escreveu um livro. —Fogos de artifício explodem na minha mente e eu retraio, quase com medo da sua reação.

Como ele sempre reagiu, o silêncio se alastra por alguns segundos.

—Uh, eu sei.

—O quê?!—ele me observa por um tempo, cansado e um pouco incrédulo.

—Isso foi uma das únicas coisas que ela não escondeu de mim. Eu... eu achei que você sabia.

—Mas...

Não formo frases coerentes. A incredulidade no seu rosto se aprofunda.

—Diana, eu li todos os poemas que ela escreveu antes mesmo da publicação. Eu li a biblioteca dela inteira. Todos aqueles livros, eu já li. Anne Sexton? Live or Die? Eu já li.

—Mas você me perguntou como se soletrava o nome dela. Aquele dia, em St. Mara. —estou completamente embasbacada.

—Eu li há três ou quatro anos. Sylvia Plath? Meu trabalho final de literatura no ensino médio foi sobre Sylvia Plath. Eu conheci Eric porque minha mãe queria que eu fosse para o mesmo clube de poesia que a mãe dele botou ele. Bishop? Teasdale? Angelou? Eu já li tudo. Não sei porque você parece tão surpresa.

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Eu pareço surpresa, quero responder, porque meu coração acelera.

É tão excepcionalmente esquisito porque acho que tenho uma quedinha por Ian.

Boom.

—Ai meu Deus.

—Você está mesmo chocada?

—Alguns desses poemas são deprimentes e você nunca desconfiou de nada?

—Eu não sou como você, Diana. Para mim, eram só poemas. Aquilo era, tipo, a obra dela. Não um diário. Nunca falávamos sobre questões sentimentais. Eu analisava eles quando ela terminava, então devolvia sem dizer nada e ela guardava. —explica ele, quase impaciente. Seus dedos afundam no seu cabelo ralo. Frustração.

—Mas...

—Você está seriamente me ofendendo.

—Você sabia sobre Ariel?

—Não, essa parte é nova.

Solto um suspiro aliviado.

—Eu pensei que você ia ficar bravo comigo quando eu contasse.

—Eu não faria isso.

—Meu Deus.

—Muito obrigado. —revira os olhos. Coro novamente, pois me sinto meio boba de pensar que ela poderia ter escondido dele. Me dói perceber que ele sabe de coisas que eu não sei, o que faz-me sentir muito mais estúpida e egoísta, lembrando de suas palavras no quintal de Vic.

—Não é isso. Não é como se eu achasse que você não sabia ler. É só que... você lê poesia? Eu nunca... conheci um cara que lesse poesia. Bem, eu já conheci mas... mas é você. Esquisito. —ele não responde e eu desvio o olhar. Isso é esquisito. —Vic e Visia sabem?

—Não. —ele fala como se admitisse um erro.

—Você não vai contar?

—Não sei que bem faria. Era coisa da minha mãe.

—E o Vincent? —seu maxilar tensiona.

—Bem, Vincent que se foda. Eu não vou falar disso. —por alguma razão, não fico contente.

—Eu sinto muito mesmo por causa disso. Acho que é melhor a gente... a gente parar com isso.

Mas eu não quero. Porque significa desistir de Vivian e deixá-la morrer. Mesmo com as decepções e as coisas ruins, é como se tudo fosse bom outra vez. Me sinto bem. Com um propósito. Sinto dor, mas eu sinto. Sentir é melhor que nada. Não estou apenas sobrevivendo dia após dia. Sinto como se isso equivalesse a desistir de mim mesma.

—...é, acho melhor. —responde ele, quietamente.

O acúmulo de tudo que aconteceu e o fim dessa procura me deixam tão triste que eu continuo olhando para frente, sem coragem de olhar para ele.

—Então eu te vejo por aí.

—Na verdade, não.

—Ótimo.

—Vamos nos vingar pelo seu celular, sua idiota, ou até consegui-lo de volta. Você vai me ver mais do que quer—o seu tom de voz é conciliador, como se ele soubesse quão ruim isso é para mim. Reviro os olhos, relaxando.

Percebo que sentiria mais falta de Ian e Eric do que de procurar pela vida de Vivian.

—É melhor eu entrar.

Faço que sim.

—Uma última coisa. —ele ergue uma sobrancelha.

—Você me promete que nunca vai ficar como Vincent? Com tanta raiva como ele?

A sinceridade na voz dele me consola.

—Eu a odeio porque eu a amo. —suas palavras são toques suaves no meu coração.

Mesmo um tanto oximoro, eu entendo ele completamente. A nuvem cinza acima de mim evapora, sabendo que não sou a única a pensar assim.

Não só sobre Vivian.

Sobre pais.

E pessoas no geral.

Você disse que a raiva voltaria assim como o amor voltou. —recito, ganhando um sorriso de Ian.

—Isso é um teste?

—Eu sei que você sabe.

—Anne Sexton. Aplauda agora.

—Não era um teste. Só estava complementando.

—Essa é a diferença entre você e eu, Diana. Ou entre minha mãe e eu. Poesia vai para a minha cabeça enquanto vai para o seu coração.

—Talvez daí venha todo meu drama.

Sorrisos tristes.

—Até mais.

Observo ele entrar e me observo internamente voltando para casa, permitindo-me pensar em Vincent e no padre Jonah e em toda essa confusão. Estou triste por ter acabado, mas o aviso de Ariel sobre a estrada não ficar muito melhor me assombra. Me divido em duas: a Diana que quer lutar e ir até o fim, descobrir tudo que uma pessoa é capaz de esconder e cada detalhe da complexidade de Vivian e a outra quer lavar para fora a mágoa e o rancor, a traição e as lembranças, voltar para um tempo onde eu lidava com o sentimento de perda, não outras coisas mais violentas. Não quero me tornar Vincent. Caio na cama tão cansada —física e mentalmente —que minha mente não desliga. E eu ainda sinto o cheiro de álcool daquele cara. Típico, resmungo. Mas útil, porque eu faço algo inédito.

Eu rezo.

Para Deus.

Meu nome é Diana, eu começo. Ajude Vincent. Ajude Ian. Ajude Victoria e Visia

Me ajude. Se você existe mesmo, me ajude, tudo bem? É por uma boa causa. São por pessoas boas. Eu não sei se Vivian foi a melhor pessoa do mundo mas olhe pra todas essas pessoas. Não sei exatamente como eu preciso de ajuda, mas se você me criou e criou todos eles deve ter uma ideia. Por favor, por favor, por favor. Me dê um sinal. Um que eu entenda. Me diga como eu posso ajudar e eu ajudo.

Alguns segundos de silêncio depois a resposta vem, na forma de Vivian.

Ame-os.

Mas eu amo, respondo. Todos eles.

Diana, é bem simples. A voz dela é tão clara, tão real que me pergunto se já não estou dormindo. Lembra de Anaïs? Lembra o guru? Você não pode salvar todo mundo. Você só pode amá-los. Então vá dormir e pare de falar com Deus.

Espere! ouço minha própria voz. Eu sinto sua falta.

Não sinta a minha falta. Apenas me ame. Ame meu irmão por mim. Ame Ian. Ame minhas irmãs e os seus amigos. Ame a si mesma. Perdoe eles. Perdoe Vincent. Faça Ian perdoar Vincent. Me deixe ir. É cansativo morar na sua cabeça toda vez que algo ruim acontece. Viva. Ame. Perdoe. Fale com as pessoas. O mundo é bem pequeninho, Diana. Está me escutando? Deixe-me ir. Só me ame. Viva a sua vida. Eu morri, lembra? O mundo é maravilhoso na terra do seguir-em-frente. Aqui tem um livro que você vai gostar, um monte de merda acontece. Mas não vai ler agora, porque você vai viver. Bem vinda ao mundo, Diana. Coisas lindas e coisas terríveis vão acontecer. Então me ame. Esse é o seu sinal. Me ame, porque eu não posso ser salva. Eu morri. Não me reviva. Ame-me.