À espera de Heloísa

Ato político


Pela manhã o casal tomou café em silêncio. A esposa pouco comeu, e o marido ignorou completamente o jornal matutino.


– Ela ainda não voltou para casa. - O marido constatou.


– Acho que deveríamos telefonar para o Sérgio e pedir que ela volte para casa. - A esposa falou tristemente.


– Faça isso.


Ela se levantou com a face consternada e foi até à sala de estar e pegou o telefone que estava sobre uma mesinha em um canto.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


– Alô! Sérgio? Aqui é Marilda, mãe de Heloísa. Ela está aí com você? Não? E onde está minha filha, Sérgio? - A mãe começou a repetir a mesma pergunta em voz estridente e descontrolada.


O marido resolveu intervir e tirou o telefone da mão da esposa, que o abraçou e chorou em seu ombro.


– Alô! Aqui é o pai de Heloísa. Ela esteve aí com você, Sérgio? Vocês terminaram o namoro? Desde quando? Faz uma semana que você não a vê? O que? Ela tem outro namorado? E qual é o nome dele? Neco? Só isso, "Neco"? Você tem o número dele ... Por favor não desligue. Heloísa está ... desaparecida deste ontem. Nós pensávamos que ela estava com você. Poderia nos informar alguma coisa sobre esse Neco? Ok! Tudo bem! Obrigado! Tchau!


O marido desligou o telefone e ficou mudo por um instante, admirando a aparelho telefônico, sem realmente vê-lo a sua frente.


– Aldo ... Aldo ... Onde está nossa filha? - Marilda perguntou com lágrimas nos olhos.


Ele a olhou pensativo, sem ter nada para responder à esposa.


Os dois saíram em peregrinação durante àquele dia. Primeiro foram à PUC. Sim, ela estivera lá. Inclusive assistira algumas aulas. Fora vista no refeitório e na biblioteca. E uma de suas colegas garantiu que ela saíra às quatro horas da faculdade ao lado do novo namorado, o Neco.


Sobre este rapaz pouco lhe informaram. Viera transferido do Sul, cursava Filosofia e pertencia ao Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pediram o endereço dele, mas ninguém sabia. Foram aconselhados a procurar algumas das várias "repúblicas" de estudantes da área. Resolveram pegar o endereço exato com a sub-reitoria da faculdade. O que não deu em nada, pois o endereço estava incorreto.


Resolveram percorrer Hospitais e Pronto Socorros. Davam o nome da filha e a descreviam fisicamente. Não, ninguém a havia visto. Ninguém com aquela descrição havia dado entrada nos hospitais. Foram ao necrotério e suspiraram aliviados quando lhes confirmaram que não havia ninguém com aquela descrição física ali.


Foram nas delegacias de polícia e nada fora registrado na noite anterior ou logo cedo, naquele dia. Ela não estava na faculdade, não estava doente, nem fora presa. A esperança de que a filha estava na casa de alguém crescera em seus corações. Resolveram voltar pra casa e esperar que ela entrasse em contato.


Alimentaram-se para manter a resistência física, mas estavam sem apetite e sem o mínimo interesse em comida. O marido avisou por telefone que não poderia ir trabalhar. Passaram a tarde sentados, esperando por notícias. À noite o desespero tomou conta e a esposa chorou mais uma vez. Senhor Aldo consolou a esposa, mas ele mesmo sentia o peso da preocupação.


No dia seguinte eles foram à delegacia de polícia denunciar o desaparecimento de sua filha. A seguir foram novamente à faculdade, dessa vez à procura do "Neco". Este também nunca mais fora para as aulas. Decidiram procurar pelo Sérgio, mais uma vez.


– Sérgio, poderia nos dar alguma informação sobre o paradeiro de nossa filha ou sobre esse Neco? - Senhor Aldo perguntou timidamente, sentado lado a lado com sua esposa, no sofá do apartamento modesto de Sérgio, ex-namorado de sua filha, e igualmente um estudante da PUC.


– Não, nunca mais conversei com Heloísa. Depois que rompemos eu passei a evitá-la, principalmente depois que ela começou a namorar o Neco.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


– O que pode nos contar sobre esse rapaz? Ele era bom pra ela? - Dona Marilda quis saber.


– Bem, é ... ele é um político.


– O que? Como assim? Ele é vereador ou deputado?


– Não, não é nada disso. Ele faz parte do DCE. Só isso já faz dele um político.


– Não entendo. O DCE não é um órgão ou secretaria da faculdade?


– Sim.


– Então não tem nada a ver com política. Isso trata apenas de problemas estudantis.


– A partir do momento em que você grafita "Abaixo a ditadura" num muro, você está fazendo um ato político. E os membros do DCE são famosos por não aprovarem o regime político do país.


– Oh, meu Deus! - A mãe de Heloísa colocou a mão sobre a boca e se contorceu toda, recomeçando a chorar. Seu marido a abraçou, enquanto balançava a cabeça negativamente para Sérgio, como se a censurá-lo.


– Eu sinto muito, Dona Marilda. Acho que é só o meu orgulho ferido falando por mim. É claro que eu não conheço intimamente esse rapaz. - Sérgio se desculpou.


– A quem podemos recorrer para termos alguma informação, Sérgio?


– Tentem o próprio DCE. Lá devem saber algo sobre o paradeiro dele.


– Tudo bem! Obrigado!


No DCE foram corteses e educados, mas negaram qualquer conhecimento sobre as atividades extra-curriculares de Neco, aliás, Manoel Bento Gonçalves. Este era o nome dele. Deram-lhes alguns endereços que deveriam procurar, de outros DCEs e Centros Acadêmicos. Já era alguma coisa, mas Seu Aldo já pressentia que isso não ia dar em nada.


Ao saírem, uma moça que estivera presente na sala durante sua entrevista com o dirigente do DCE, os abordou. Ela era baixinha e franzina, o que era mais acentuado ainda pela longa saia e pulôver que vestia, além dos enormes óculos de grau.


– Ei! Sigam-me até o barzinho da esquina. - Ela disse baixinho e se afastou, saindo da área da faculdade e entrando em um bar, lá perto.


Os pais de Heloísa a seguiram. Ela estava sentada em uma mesinha distante, que ficava obscura e era difícil de ver à primeira vista. Sentaram-se à mesa com ela.


– Você pode nos dar informações sobre nossa filha? - Dona Marilda perguntou.


– Ela deve estar com o Neco.


– E onde está o Neco? - Seu Aldo perguntou.


– Há dois dias ele foi para uma congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes. Depois disso perdemos contato com ele.


– Vocês são loucos? - Seu Aldo perguntou baixinho. - O governo militar proibiu a existência da UNE. Isso é um ato ilegal, passível de prisão ... - Seu Aldo se emocionou e colocou o punho na boca para se controlar. Ele tremia levemente.


– Nossa ... nossa filha foi pre-presa ...? - Dona Marilda perguntou chorosa.


– Isso é o que tememos ter acontecido, mas não temos nenhuma informação nesse sentido. Ninguém viu nada, nem ouviu nada. Senhor ... O governo proibiu a associação de estudantes porque tem medo de nós. Porque podemos pensar e questionar o sistema de coisas que aí está. A luta dos estudantes de todo o Brasil é nobre e justificada. O governo é que é autoritário e arbitrário.


– ... Vocês são loucos ... Vocês estão se indispondo com as Forças Armadas. Eles têm treinamento de guerra. E vocês? Vocês pretendem enfrentá-los com palavras? Isso nunca acabará bem, mocinha. - Seu Aldo reclamou nervoso, baixinho.


– Sim, com palavras. Com a razão, com a lógica, com o bom-senso. Sei que é como tentar apagar um incêndio com um copo d'água, que é inútil, mas um dia, lá no futuro, todos terão consciência de que essa ditadura não poderá continuar, e o povo brasileiro inteiro pedirá a saída dos militares do poder. - A mocinha falou sussurrando.


Ela se calou e abaixou a cabeça, pegando o menu sobre a mesa para folhear. Seu Aldo virou-se devagarinho pra trás. Dois militares fardados haviam entrado no bar. Eles andarem por ali, com as mãos nos cintos e observavam o ambiente.


Seu Aldo e Dona Marilda também ficaram calados e temerosos. Esperaram os militares se retirarem para poder reiniciar a conversa, mas Léia, este era o nome da mocinha, não quis mais conversar. Eles trocaram números de telefone e endereços, então se separaram.