Penso onde posso ir, e mesmo sabendo que Anna irá reclamar, sei que Libby irá me acolher, então decido ir para lá. Está tarde, mas tenho certeza que estão acordadas, não sei muito bem o que falar, como me explicar, me sinto perdida e sem rumo, agora que estou sozinha nada parece uma boa ideia, não sei o que estou pensando, não sei porque acho que vou conseguir me virar sozinha, talvez Ivan tenha razão.

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Chego no meu antigo apartamento e tudo está igual por fora, sinto uma nostalgia por estar aqui de novo, mas não necessariamente tenho saudade, parece que estou dando passos para trás ao invés de para frente, mas não tenho mais opções no momento. Eu gostava de morar aqui com Libby, mas há um ano atrás pareceu uma boa decisão me mudar com Ivan, agora, voltando para cá eu me vejo quase como um espírito, assombrando onde uma vez vivi.

Toco a campainha, e aguardo. Escuto uma troca de gritos de quem vai abrir a porta e se estão esperando alguém, cruzo os dedos para Libby vir. Talvez as coisas estejam prontas para melhorar, porque é ela quem abre a porta e me puxa para um abraço apertado.

— Finalmente. – diz com a voz trêmula, triste, mas aliviada. Ela me aperta mais forte e continua. – Esperei tanto tempo por esse momento, você está livre meu amor.

Suas palavras me confundem e me afasto para poder olhá-la nos olhos, eles estão reluzindo e as lágrimas estão acumuladas nos cantos, ela entende. E de repente, tendo alguém que entende, me sentindo segura desabo, começo a chorar como um bebê. Tudo que tenho guardado por tanto tempo, segurado, ignorado, sai assim, como a água da cachoeira, caindo sem pausas, sem dó, contínua.

— Que porra é essa?

Eu escuto no meio de nossos soluços, Anna, claro. Sempre reclamando, sempre pensando nela mesma. E também como sempre, Libby não aceitando nem uma pouco dessas asneiras de Anna.

— Ruby vai ficar um tempo com nós.

— Há! Nos seus sonhos queridinha, quem paga o aluguel aqui sou eu, se ela quer voltar a morar aqui tem que avisar com antecedência. Quem ela pensa que é, aparecendo aqui no meio da noite querendo meu lugar?!

— Ela não quer seu lugar Anna, ela precisa de um lugar para ficar, apenas. Ela pode ficar no sofá, ou no meu quarto se te incomoda tanto.

Anna espreme os olhos como quem duvida, e não perde tempo para o golpe.

— E o namorado dela? Hum? E Ivan? Ela simplesmente o abandonou?

Meu corpo vai para trás com o golpe, quase como se ela tivesse me atingido fisicamente. É isso que sinto, sinto que o abandonei, sinto que estou sendo egoísta pensando apenas em mim, mas mais um pouco lá não sairia viva. Mas ainda assim, ouvir o que pensamos, e mais, vindo de Anna, bem, não é legal.

— Ela precisa de um tempo e de um espaço para ela, - Libby me defende e passa a mão nos meus ombros tentando me acalmar.

— E ele por acaso sabe disso? Não parece planejado, ela não trouxe nada com ela além do baixo. – ela pausa, e olha para suas unhas despreocupada, como se tivesse a cartada final, a vantagem. – e se quer um espaço para ela, o que faz aqui? Vá atrás desse espaço.

Libby me solta bruscamente e avança em cima de Anna, fica perto sem encostar, mas ainda muito ameaçador, e solta daquele jeito que apenas Libby conseguiria.

— Cala sua boca. A última coisa que ela precisa é ouvir esses lixos que você solta todos os dias, eu estou cansada dessa merda. Você tem um mês para sair daqui.

Anna arregala os olhos, mas tenta esconder seu medo.

— Se você me expulsar daqui, vai perder sua vocalista. O que farão sem vocalista com um show tão próximo? – ela sorri maliciosamente, sabendo que nos encurralou. Cansada dessa briga e só querendo dormir e fingir que essa noite nunca aconteceu, eu me abraço tentando me manter inteira e coloco um fim nessa discussão.

— Ninguém vai sair daqui. Anna, só vou ficar um tempo e assim que conseguir um outro lugar não ficarei mais.

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— Você tem um dia, depois disso vou começar a cobrar. – com isso ela se vira e volta para seu quarto.

Eu olho desesperada para Libby, para onde poderia ir? Eu não tinha dinheiro, todas minhas coisas estavam na casa de Ivan, só recebia o salário no fim do mês, o que teria para me virar seriam as gorjetas e só. Mas isso gastaria com comida praticamente, e talvez roupas já que não trouxe nenhuma comigo. E só de pensar em passar lá para pegar minhas coisas, meu estomago se embrulha. Libby pega na minha mão e aperta.

— Vai ficar tudo bem. – ela assegura e me guia até seu quarto, onde me coloca para dormir na cama, e do jeito que estou esgotada, durmo em um segundo.

*

Sinto meus olhos doloridos, parecem grudados. A primeira sensação é de que tudo foi apenas um sonho, mas assim que ganho a batalha de abrir os olhos, vejo que estou no quarto de Libby, ela já se levantou e provavelmente já está no trabalho. Eu só entro no horário do almoço. Meu uniforme. Deixei para trás também, como iria para o trabalho? Decido que vou pedir emprestado para alguma das meninas, ou até para a gerente, deixavam várias camisetas guardadas nos armários para acidentes ou novatas.

Me levanto e vou ao banheiro, tentar me sentir humana novamente. Vejo em cima da pia uma toalha, calcinha e bilhete de Libby.

Tome um banho bem relaxante, aqui está uma calcinha nova que comprei e nunca usei, depois pode pegar qualquer roupa do meu armário.

Libby era um anjo mesmo, tiro minha roupa e entro debaixo do chuveiro, a água forte e quente. Só quero me limpar, como se a água fosse possível de apagar tudo que aconteceu. Ela não apaga nada, mas solta meus músculos, acalma meu corpo, e o cheiro novo do shampoo e do sabonete me asseguram que eu posso ser outra pessoa, mas ainda ser eu mesma, se é que isso faz sentido. Saio do banho embrulhada na toalha e me olho no espelho.

Os roxos do rosto continuam lá, bravos, indignados. Os do corpo praticamente desapareceram, apenas com muita atenção é possível distinguir o amarelo claro do tom da minha pele. Não sei o que fazer com os roxos, minha maquiagem também esta toda na casa com o Ivan e Libby é um tom completamente diferente do meu. Tento imaginar as justificativas que posso dar para Rachel, e no final chego a nenhuma. Talvez devesse só enfrentar e fingir que nada aconteceu, se perguntarem, eu caí.

Reviro o guarda-roupa de Libby atrás de alguma roupa que sirva, ela é pelo menos dois tamanhos menores que o meu, mas seu estilo é bem despojado então alguma coisa deve servir. Encontro um shorts preto estilo boyfriend, nela deve ficar larguinho e estiloso, em mim fica justo e certo, perfeito para o trabalho. Depois pego uma de suas camisetas masculinas, dobro duas vezes a barra da manga, e coloco a barra para dentro do shorts. Encontro meias pretas e coloco o tênis que estava usando, me olho no espelho e pareço decente.

Ainda estava cedo para o meu turno no restaurante, mas era melhor chegar cedo e assegurar que teria um uniforme e tentar arranjar uma explicação para minha gerente do que me atrasar. Além disso, seria menos tempo para compartilhar com Anna. Mas foi a decisão errada, talvez devesse só ter ligado dizendo que estava doente.

- Ave Maria! – grita Rachel quando seus olhos me encontram, eles arregalam e ela chacoalha a cabeça sem parar, como em negação. – Eu sabia que tinha algo errado. Vem aqui.

Eu caminho até ela relutante, quando estou próxima o suficiente ela me puxa em seus braços, e acaricia meu cabelo.

- Vai ficar tudo bem meu anjo. Você vai ficar bem. – E simples assim a barragem quebrou, comecei a chorar e soluçar em seus braços, eu não acho que vai ficar tudo bem, eu não acho que eu vou ficar bem. Como poderia? Era para estar com Ivan, mas também como poderia estar? Meu corpo e minha mente estavam no limite, sempre coloquei ele acima de tudo, a única coisa que conseguiu quebrar isso foi a música. E agora então estava vivendo pela música? Mas e se não desse certo como ele disse? Talvez estivesse só perdendo meu tempo.

Sinto seu abraço afrouxar e sou passada para outros braços, olho para cima e vejo Cat. Assim que seus olhos repousam sobre mim ela inspira fortemente e seus olhos brilham com o que parece ser raiva. Vejo sua mandíbula travar e ela respirar profundamente, como se acalmando, me aperta em um abraço e então me solta, mas somente o suficiente para me afastar e analisar bem.

- Certo. Vamos colocar um uniforme aqui e arrumar ali e trabalhar! – ela diz com entusiasmo falso. De algum jeito ela sabe que é isso que eu preciso, vejo Rachel no balcão próximo da entrada da sala dos funcionários e ela está com a cabeça baixa, como se sentisse meu olhar, levanta e nossos olhares travam, imediatamente ela limpa as lágrimas com as costas da mão, sorri e sai andando em direção as mesas. Cat me puxa para perto de seu armário e dispara a falar.

- Sabe, eu moro com meu irmão e minha irmã, ela é atriz, bem se é que podemos dizer isso, - ela ri e balança as mãos como se isso servisse de explicação, e então retorna a remexer dentro de sua bolsa, - ela faz algumas peças de teatro e comerciais, e também é meio que a gerente de nossa banda. Ah, que por acaso meu irmão é o baixista, ensaiamos na garagem de casa, é bem legal! Aqui! – ela comemora, puxando algo de sua bolsa. – Comprei umas maquiagens esses dias, as resenhas estavam muito boas. Olha! Tem o corretivo, a base e bem, o resto é da minha coleção mesmo, sou meio sei lá, assim. Carrego absolutamente tudo na minha bolsa. Posso?

Ela pergunta segurando a base em uma mão e um pincel na outra. E aí eu entendo, ela está se oferecendo para me maquiar, e faz sentido. De algum modo sabe que eu preciso trabalhar, não só pelo dinheiro, mas também pela distração, e claro, um rosto cheio de roxos assusta as pessoas. Então aqui está ela, se oferecendo para cobrir minhas marcas e me distraindo enquanto faz. Minha visão faz aquela coisa esquisita, a imagem se duplica e tudo fica meio embaçado, uma parte é a realidade, ou o que vejo normalmente, Cat, alta, linda e loiríssima, porém como tudo a minha volta, normal, sem brilho, sem graça.

A imagem duplicada parece em HD, as cores mais vivas e vibrantes, tudo com mais definição, contraste, saturação. Parece que arrumei as configurações da tv, e só reparei o quão ruim estava antes agora que via como deveria estar. Cat parece uma estrela de tão cintilante e quente, ao mesmo tempo que é difícil olhar para ela, é impossível não olhar. Ela sorri para mim, eu pisco e tão de repente como duplicou, a minha visão volta a ser só uma, mas agora que vi o outro minha realidade pare cinza e sem vida.

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— Claro, - respondo um pouco irritada que não estava vendo as coisas brilhantes mais. O rosto de Cat vira pura empolgação, mas logo se torna de concentração. Suas pinceladas são relaxantes e calmantes, minha mente fica vazia e em o que pareceu um segundo, acabou.

— Prontinho! Veja o que acha, vou pegar uma camiseta para você.

Pego o espelho que ela me entrega e me analiso. Os olhos da imagem no espelho se arregalam, a boca se parte em surpresa. Sou eu. Só que não sou eu. É uma outra versão minha, uma que nunca tinha visto. Nunca reparei que meus olhos eram tão verdes, apesar de serem mel, minha sobrancelha tão arqueada e a exata cor do meu cabelo ruivo escuro, minha boca tão carnuda apesar de pequena. Fiquei chocada, quem era essa menina?

— Está uma nova mulher, né? – diz Cat, como se lendo meu pensamento e me corrigindo. Mulher. Eu sou uma mulher, e nova? Talvez só atualizada, e também só a aparência, me sentia a mesma por dentro. Cat me olha com o maior sorriso, e me entrega a camiseta do trabalho.

— Vamos lá! Trabalhar e ganhar umas gorjetas para ir as compras!

— Compras? – eu pergunto confusa.

— Claro, você precisa de coisas novas, para a nova você!

Eu não contesto e nem pergunto mais, parece esquisito o que ela fala, ao mesmo tempo que faz todo o sentido. De algum modo Cat me entende mais do que eu mesma me entendo no momento. E realmente parece exatamente a luz guia que preciso agora, e assim ela se torna a Cat da minha visão duplicada, mesmo no mundo cinza e sem graça. Então, a sigo para o salão, amarrando meu avental na cintura.