Um Outro Lado da Meia-Noite

A rainha e o pirata - Parte 2


Morticia encostou-se a amurada olhando para o porto á distancia. Não tinha conseguido abrir a porta que dava acesso ao interior do navio e não queria começar o dia atraindo o mau humor do Capitão, causando uma explosão. Se contentou em olhar para a pequena cidade cercada pelo mar e por árvores. O dia ainda estava começando, o sol nem mesmo havia nascido ainda e o dia estava sendo tingido por pálidos tons de azul. Se distraiu pensando em Verbena, sua irmã estava a procurando, dissera o Capitão. Já devia tê-la encontrado, concluiu desanimada. Talvez o navio tivesse alguma proteção, bem possível. Afinal o Capitão do Leemyar era um bruxo. Sorriu. O pirata era incrivelmente interessante, ela já havia conhecido alguns viajantes antes quando caravanas de vendedores ambulantes passavam por Ferrara, mas nenhum deles tinha causando nela aquela sensação de fascínio.

Se não tivesse tão distraída pensando no Capitão, teria notado a presença de um tripulante que se aproximava sorrateiro por trás dela. Teve tempo apenas de abafar um grito ofendido quando se virou pronta para amaldiçoar quem quer que fosse o atrevido que a tocara. Infelizmente, para ela, nem todos os homens era lentos e manipuláveis quanto os que ela já tinha conhecido em sua curta vida, principalmente aqueles que não conheciam á ela ou ao seu irmão. O pirata segurou os braços dela com firmeza a impedindo de soca-lo, empurrou-a contra o chão ficando sobre ela com seus prováveis noventa quilos á mais, e atrevidamente tentou beija-la. Morticia virou o rosto evitando a boca daquele homem que além de todas as ofensas estava obviamente bêbado. Em pânico por estar sendo pressionada e não ter para onde fugir, ela se esqueceu por completo de que era uma bruxa. Com os braços imóveis e medo demais para conseguir gritar, ela recorreu á única coisa que ela conseguia fazer.

Se virou para ele cujos lábios veio de encontro aos lábios dela, Morticia abriu a boca prendendo a respiração, detestava bêbados. Assim que os lábios dele á tocaram, Morticia cerrou os dentes, sentiu o gosto de sangue misturado com o gosto forte da bebida – fosse qual fosse – que ele tomara. O pirata se ajoelhou levando as mãos á boca que sangrava, ela havia arrancado um pedaço do lábio inferior dele e agora cuspia o sangue enquanto o empurrava e saia de baixo dele. No movimento de se livrar dele pegou a faca comprida e afiada que ele carregava, apertando contra sua coluna.

– Quem é você? – exigiu saber, sentia tanta raiva por ter sido atacada que sua voz parecia tão cruel quanto seus pensamentos mais obscuros.

O pirata riu debochado, não respondia á mulheres. Quando tentou se levantar – para se vingar pelo lábio que ficaria com uma cicatriz horrenda – percebeu que não seria tão fácil lidar com aquela mulher em especial. A espada que sempre mantinha afiada atravessou o couro do colete com um suave estalar, ele quase pode sentir o sangue escorrendo pela sua camisa, mesmo que ela não tivesse o cortado ainda. Automaticamente ergueu as mãos em rendição.

– Não me mate, senhorita. Peço perdão e prometo nunca mais toca-la se poupar minha vida – disse com um forte sotaque francês.

Ele não estava falando serio, claro, assim que ela baixasse a espada ele a tomaria, então se vingaria daquela fedelha petulante. Infelizmente, para ele, Morticia não tinha o habito de confiar na palavra de um homem, muito menos quando estavam correndo perigo. Margarida lhe dissera uma vez que homens diziam qualquer coisa para conseguirem o que querem. Essa era uma das poucas informações que Margarida lhe dera que ela valorizava.

– Sua vida não vale mais que sua palavra, para mim – o tom frio dela fez o pirata imaginar se ela seria mesmo capaz de mata-lo – Vou lhe ensinar a nunca mais tocar em uma senhorita inofensiva.

Já bastante recuperada do susto inicial, Morticia voltou a pensar com clareza. Ergueu a espada com as duas mãos, embora fosse desnecessária já que a arma era leve como pluma, nem era necessariamente uma espada, era curta demais. Não ia matá-lo de verdade, ia apenas lhe causar pesadelos que o faria pensar melhor na próxima vez que visse uma garota sozinha. Mas o feitiço que estava procurando em suas lembranças se perdeu quando ouviu uma risada atrás dela. Sem se virar ouviu a voz do capitão cheia de deboche:

– Se todas senhoritas inofensivas do mundo fossem como vossa majestade, seriamo-nos os homens quem usaria vestido e cobriria o rosto em recato.

Ela relaxou o braço, baixando a espada. Deu um passo para o lado se virando para o capitão. Que sorria belamente observando a cena, encostado á porta que ela tentara abrir horas antes.

– Bom dia, Libuse – cumprimentou ele erguendo uma caneca na direção dela.

– Bom dia, Capitão – respondeu ela correspondendo involuntariamente ao sorriso dele.

O Capitão fora ver se ela havia acordado, quando chegou ao convés a encontrou com a espada de seu tripulante encrenqueiro nas costas do mesmo que estava de joelhos, uma visão curiosa. Tendo em vista que o irritante mestre das armas, Claude, um francês mimado demais e impulsivo demais para a vida nos mares nunca perdia uma luta, muito menos se rebaixava daquele modo para uma mulher. Ficou tentado á incentiva-la a feri-lo, mas a postura dela e o modo frio com que falara requeria cautela em vez de incentivo. Ao menos ficou satisfeito em saber que não errara em seu julgamento na noite anterior de que ela sabia se defender muito bem sozinha.

Claude se aproveitou da aparente distração de Morticia para ataca-la, ela não desviou a tempo de ser atingida por uma acotovelada na costela e se chocar contra um mastro. Ouviu um palavrão e esperou por um segundo golpe, mas para sua surpresa não era isso que acontecia, abriu os olhos e viu o bêbado caído quase aos seus pés.

– Tranque-o na cela, mais tarde cuido dele – disse o Capitão calmamente.

Morticia acompanhou com o olhar os dois homens que se aproximaram do pirata caído e o arrastaram para o interior do navio. Depois uma mão entrou em seu campo de visão.

– Se machucou?

Ela segurou a mão do capitão para se apoiar enquanto voltava ao “normal”. O Capitão esperava que ela fizesse isso, estava curioso desde a noite passada – quando ela ativou o espelho sem nenhum comando – para saber quem ela era. Para sua decepção não viu o que esperava ver ao tocar a mão fria dela. Viu um garoto de olhos verdes e cabelos pretos dando instruções enquanto segurava um pedaço largo e longo de madeira como se fosse uma espada. Ouviu também a voz de uma menina rindo enquanto cantarolava que ele era lento demais, enquanto paisagem ao lado passava rapidamente, como quando alguém corre.

Morticia puxou a mão rapidamente sentindo um calor incomodo na mão que ela bem sabia devia estar gelada. Olhou desconfiada para o capitão:

– Estava tentando me enfeitiçar, Capitão?

– Não, apenas sondando – respondeu surpreso por não mentir.

– Me sondando? – ela olhou para as mãos de modo frenético sem saber o que procurava com exatidão

O Capitão riu daquilo, resolveu tranquiliza-la:

– Aprendi um encanto simples, que me permite a ver os pensamentos ou lembrança de uma pessoa á um simples toque.

Morticia cruzou os braços se distanciando do pirata, tinha sua cota de magia estranha por mês quando era cobaia dos experimentos que ela mesma fazia. Não precisava de um pirata vasculhando suas lembranças á procura de...

– O que estava tentando saber?

– Apenas quem é você, de verdade.

– Por quê? – perguntou ríspida, nunca gostou de quando estranhos metiam-se na sua vida.

– Por que se eu perguntar sei que não vai me responder. Tem medo do que não conhece e sou um desconhecido.

Ela balbuciou algumas coisas incoerentes, ele estava certo, mas ela não imaginara que fosse tão obvio assim. Balançou a cabeça se virando para ele.

– Não tenho medo do senhor, não como pensa. Se puder me levar para o porto agora, ficarei muito feliz.

Ele a analisou brevemente e mandou alguém baixar o bote. De fato ela não parecia ter medo dele, mas ainda assim tinha medo. Um medo primitivo e agressivo que ela escondia tão bem quanto o possível, mas se traia. Os olhos mutáveis, como o capitão observou, mudaram de castanho escuro enquanto lidava com Claude para cor de mel enquanto falava com ele. Igual na noite passada quando mudaram de escuros para claros nas duas vezes que ele colocara uma espada em seu pescoço, era desconcertante quase desconfortável o modo com que os olhos dela mudavam de cor, talvez reflexo de seu humor.

Morticia manteve as mãos fechadas em punho e os braços cruzados com firmeza, como se aquela fosse a única parte de seu corpo que pudesse ser tocado. Pediria á Verbena um par de luvas assim que a encontrasse e nunca mais seguraria a mão de ninguém, não queria curiosos, espiando sua memória. Tinha coisas que gostava de manter em segredo e uma delas era o que pensava quando conhecia alguém, geralmente eram coisas ruins de uma má primeira impressão. O Capitão do Leemyar a irritava, não tinha medo dele, apenas se irritava com a presunção que tinha em pensar que era capaz de lhe causar medo. E para variar era um intrometido que invadia sua mente sem permissão, se não precisasse dele para voltar para junto de sua irmã o teria empurrado do navio.

Quando o capitão lhe estendeu a mão para que se apoiasse ao entrar no bote ela não evitou rir. Entrou sozinha e sentou-se á uma distancia segura das mãos dele. Teria sido uma curta viagem silenciosa, cortado apenas pelo som dos remos na água. Mas a curiosidade de Morticia venceu mais uma vez sua cautela:

– O que viu quando segurou minha mão?

O capitão ficou surpreso por ela ter falado, esperava que assim que parasse o bote ela fosse descer correndo e não olharia para trás. Limpou a garganta e respondeu:

– Vi um rapaz de uns 18 anos dando lições com uma espada de madeira e ouvi uma menina cantarolando em zombaria para ele enquanto corria.

Tinha pensado em Narciso involuntariamente quando foi atingida pelo bêbado atrevido, seu irmão lhe dizia como segurar uma espada e como desarmar um inimigo. Devia ter onze anos quando o irmão tinha empenho em ensina-la a se defender quando iam para a as profundezas da floresta caçar.

– Era meu irmão me ensinando a me cuidar sozinha – informou, se sentindo compelida a justificar-se para ele – Ele achava pratico que eu soubesse me defender para não precisar ficar a espera de um “príncipe encantado de armadura dourada em seu corcel branco”.

– Costuma se meter em problemas para precisar se salva com frequência?

Morticia sorriu, não era bem pelos problemas que podia se meter que Narciso á ensinava se defender. Ela gostava mais de segui-lo a ouvir ordens das irmãs que hora ou outra falavam sobre casamento e as responsabilidades de uma mulher. Narciso gostava da companhia da irmã que sempre queria aprender tudo ao mesmo tempo, era como ter um irmão menor que á quem ensinar o que ele sabia.

– Somos três irmãs e um irmão, felizmente para meu irmão eu não sou delicada e prendada o bastante para ter um ataque de nervos quando vejo um inseto.

– E suas irmãs te deixam bramir uma espada como se fosse um cavaleiro?

– Deixavam – respondeu ela com decepção, encostando as mãos no queixo e apoiando os cotovelos nos joelhos – Há dois anos que minha irmã mais velha resolveu me educar para um casamento, segundo ela não posso viver caçando na floresta como se fosse um homem.

E também ela não conseguia mais ferir animais, Morticia havia aprendido rapidamente a usar arco e flecha, usava um feitiço especifico em suas flechas de modo que nunca erravam o alvo, matavam o animal instantaneamente a evitando de ter contato com o sangue. Mas a cada ano recente Margarida criticava mais sua “antifeminilidade” ela parou de pescar, montar, caçar e se continuasse no ritmo que estava, percebeu, logo deixaria de ser uma bruxa e viveria á dispor de um marido que odiaria e de filhos que não queria ter.

– Por Saturno – murmurou – Vou ficar igual á elas.

O Capitão franziu o cenho, não estava acostumado a ouvir alguém citando um deus pagão, muito menos saturno, olhou analítico para Morticia, a deixara com seus pensamentos por um segundo e ela parecia a personificação da melancolia.

– Ficar igual á quem? – perguntou incerto se queria saber.

Se curvou tocando a água fria do mar. Assim que voltasse para casa voltaria a caçar e me empenharei a aprender mais sobre feitiços. Começando por feitiços de ler mente. Ela sorriu para si mesma, seria divertido ver o que algumas pessoas guardavam para si. Ignorando a pergunta do Capitão, questionou:

– O que vai fazer com seu tripulante de sotaque engraçado?

– Claude? Farei com ele o que as regras de conduta mandam – ele olhou para o lado, evitando os olhos marrons que o fitavam – Me livrarei dele.

– Que quer dizer com livrar-se dele?

Morticia embora percebendo o desconforto do Capitão em ter que respondê-la, ignorou. Ela estava curiosa e também se sentia vingada por ele ter tentado espiar sua mente.

– Estupro é punido com castração ou morte, é a regra – disse ele ainda sem olhar para ela.

– Mas ele não fez nada.

O capitão a olhou irritado.

– Teria feito se você fosse tão inofensiva quanto aparenta ser – ele suspirou paciente – Claude tem se tornado um problema nos últimos meses, desde que tomou gosto por cerveja. Sóbrio ele é uma companhia agradável, mas bêbado é um problema irremediável.

Morticia se aprumou apoiando as mãos nos joelhos e o olhando fixamente.

– Vai mata-lo por que ele é um idiota bêbado? Não seria mais fácil afasta-lo da bebida?

– Amarra-lo na ancora toda vez que atracarmos seria sem duvida um bom modo de impedir um homem adulto e livre de se embebedar.

Morticia revirou os olhos voltando a se inclinar para a água. Não havia o que discutir, ela ia fazer coisa bem pior com ele apenas por tê-la tocado. Ao se lembrar desse detalhe começou a rir, atraindo a atenção do Capitão, que já tinha duvida da sanidade da jovem bruxa:

– O que ouve?

– Por um segundo te achei cruel por sua regra pirata. Mas comparado com que planejei fazer com ele... talvez não seja tão diferente assim meu modo de julgar do seu.

– O que havia planejado fazer?

Morticia retirou a mão da água.

– Prender seu tripulante em uma roda de pesadelos. Quando ele tivesse enlouquecendo apenas com a ideia de dormir, então deixaria de ter pesadelos.

O Capitão entreabriu a boca, mas não sabia o que dizer. Já tinha visto feitiços do sono em ação, mas nunca fizera nenhum. Soube então o que perguntar:

– Onde aprendeu a fazer uma roda de pesadelos?

Ela deu de ombros, por meses tivera pesadelos terríveis com a morte do pai, sonhava com feras monstruosas de olhos alaranjado-brilhantes, tentou por si mesma se livrar daquilo aprendendo tudo que pode sobre sonhos, passava horas no não-mundo pesquisando. Fora sua Mestra de Simpatia quem lhe dera um apanhador de sonhos, então não teve mais pesadelos, mas já havia aprendido o bastante para controlar os sonhos de quem ela bem quisesse. Ao Capitão, respondeu:

– Li no Acervo Restrito de Alexandria, a biblioteca.

– Crianças não tem acesso ao Acervo Restrito – o Capitão comentou como se ela tivesse mentindo

– Fiquei sabendo disso quando me expulsaram da biblioteca. Agora não posso nem chegar perto do prédio.

Ele riu, sem querer, mas riu. A expressão dela havia mudado de melancólico para uma careta cômica, ao lembrar-se de como tivera de fazer um juramento que nunca mais entraria na biblioteca. E não podia mesmo, ela tentara, mas o juramento que fizera a repelia sempre que se aproximava do prédio cinzento que mais parecia um amontoado de construções feitas por pessoas de opiniões diferentes ao longo dos anos e empilhado um sobre os outros de modo que se apoiassem.

– Não tem graça, Capitão Linnett – reclamou

Ao desembarcarem, porém, Morticia ainda estava atenta á proximidade, não se permitiu ser ajudada por ele para descer do bote e caminhou á uma distancia que achava suficiente para se afastar caso ele tentasse toca-la, mesmo tendo certeza que ele não tentaria toca-la mais uma vez. Haviam muitas pessoas nas ruas, haviam grupos amontoados em pontos estratégicos com mercadorias ou cantando ou dançando ou fazendo truques circenses. Morticia olhava para todos buscando pela irmã ou algum conhecido que pudesse lhe dizer onde Verbena estava no meio de toda aquela gente.

O Capitão por sua vez caminhava com as mãos fechadas nas costas, olhava para “Libuse” enquanto andavam, ela parecia irritada com o fato de ter tantas pessoas nas ruas, presentes pela Cerimônia das Ondinas, a cada cinco passos que davam ele tinha que parar para espera-la se aproximar novamente, por que ou fora empurrada por algum transeunte na direção contraria ou teve que simplesmente parar e esperar que algum grupo tagarela e barulhento passasse por ela sem arrasta-la junto. Ele estava se divertindo com aquilo, lhe oferecera o braço para ela duas vezes e ela o ignorou sem menor delicadeza.

– Onde aquela bruxa se meteu – resmungou ela se erguendo na ponta dos pés para ver entre um aglomerado de pessoas que riam e aplaudiam.

– Se quiser posso ajuda-la a subir em alguma caixa para ver melhor – sugeriu o Capitão

Morticia olhou-o indignada. Não era baixinha, ele que era alto demais, concluiu. Ela indiferente aos comentários maldosos dele á respeito de sua altura se embrenhou no meio do aglomerado, mas pela curiosidade de saber do que estavam todos rindo que para irritar o pirata.

O Capitão não se surpreendeu com a velocidade dela para desaparecer no meio das pessoas, com o modo desatento de andar ela devia estar acostumada a sumir. Talvez fosse assim que ela acabou indo parar no Vale das Ninfas sendo picada por uma aranha venenosa. Procurou pelos cabelos negros e ondulados no meio da multidão de cabelos castanhos, pretos, grisalhos e loiros. A encontrou rapidamente, não por sua falta de esforços para acha-la e sim por que ela saiu do meio da plateia de um malabarista com ar entediado.

– Ele está fazendo jogos de malabares com facas afiadas flamejantes, não entendo por que tanto barulho por isso – comentou passando por ele

– Por acaso consegue fazer malabares, majestade? – perguntou implicante

– Não

Morticia o olhou por cima dos ombros, ele sorria de modo satisfeito como se esperasse exatamente aquela resposta dela. Podia irrita-lo um pouco mais, para que ele a deixasse procurar pela irmã sozinha, talvez até teria tentado e tido sucesso se já não estivesse irritada o bastante com ele por ser tão petulante. Simpatia era algo que os piratas não possuíam. Podia entrar no meio de outro grupo e desaparecer, nem mesmo sendo alto ele seria capaz de acha-la no meio de tantas pessoas, mas algo a impedia de não fazer isso, uma “contraforça” que em vez de repelir sua atenção dele como repelia de todas outras pessoas, a atraia. Zangada com si mesma por não conseguir ignora-lo resolveu focar em achar sua irmã.

O Capitão estava ficando incomodado com os soturnos olhares que ela lhe lançava por cima do ombro, podia ter perguntado o que ela queria, mas preferiu deixa-la quieta. Estava bem caminhando pouco atrás dela, desta vez, assim não precisava esperar por ela sempre que um grupo cruzava seu caminho. Ela viu uma tenda de vendas de amuletos e talismãs, abriu um largo sorriso ao ver um jovem asiático de cabeça raspada. Correu até a tenda e se curvou diante dele. O jovem asiático de larga túnica verde-folha e marrom-madeira a cumprimentou do mesmo modo, curvando-se. Depois falou algo que obviamente a bruxa não entendera.

– Quem seria seu amigo? – perguntou uma segunda pessoa se erguendo de trás da bancada da tenda.

Uma senhora pequena de cabelos grisalhos e olhar malicioso, tinha poucos dentes e ainda assim sorria de modo jovial dando á ela um aspecto assustador de bruxa má como se ouvia nos contos de terror. Usava um xale sobre os ombros estreitos e recurvados e parecia muito frágil para sua idade, fosse qual fosse.

– Senhora Gale – cumprimentou Morticia de modo mais solene assumindo uma postura mais apropriada para seus quinze anos.

– A pequena desaparecida – murmurou a velha vidente fixando os olhos em Morticia – Sua irmã, a jovem baronesa te procura por todo lugar.

– Ela disse ao acaso onde posso encontra-la caso alguém me encontre antes dela?

– Na estalagem onde se hospedaram, onde mais deveriam se encontrar?

– Agradeço.

– Espere criança apressada – interrompeu a velha – Quando achar sua irmã venha me visitarem, temos coisas para conversar. Coisas importantes.

A velha prendeu habilmente ao cabelo de Morticia um acessório feito de pequenas argolas, com contas, fitas e uma pena de pavão.

– Não posso pagar por isso, senhora.

– Leve uma divida com você e pague com sua visita quando achar sua irmã.

– Agradeço – disse Morticia sincera.

Senhora Gale segurou o braço do Capitão, foi quase surpresa para ele ver uma senhora daquela idade – mais de sessenta ele tinha certeza – se mover tão rapidamente e ter tanta força na mão enrugada.

– Cuidado com as tentações, Pirata. Não se deixe enganar pelo brilho da lua que escondem as sombras da noite. Ela esconde segredos que não devem ser revelados.

A velha soltou o braço dele tão repentina quanto havia segurado, piscou confusa e deu seu sombrio sorriso jovial de bruxa má de histórias infantis.

– Vai comprar alguma coisa, belo rapaz? Um talismã para afastar o mal ou um amuleto para atrair a sorte? Temos muitas coisas, coisas boas e coisas más, claro. O que vai levar?

– Nada, senhora Gale. Temos que ir – disse Morticia puxando o Capitão pelo braço.

Andaram por um tempo daquele modo, ela segurando o braço dele e ele um pouco distraído demais para notar, pensava no que a velha bruxa lhe dissera. Morticia estava rindo, adorava encontrar a senhora Gale, a vidente nunca falava de si mesma no singular, era como se sempre tivesse com mais pessoas, as vezes falava sozinha e discutia com si mesma, o que era cômico quando não era assustador. A Sra Gale, que nunca fora casada e usava o sobrenome da família da mãe, era em geral uma herbolária eficaz, quando não estava bancando a vidente charlatã, as vezes até que realmente via coisas, mas nunca eram coisas que as pessoas queriam saber.

A primeira vez que vira Morticia ela dissera: “Nunca se negue a ajudar quem precisa de sua ajuda, assim como nunca se deve rejeitar ajuda quando esta lhe for oferecida”. Morticia levou aquilo muito á sério, desde os oito anos ela desenvolveu um talento especial para se meter em problemas tentando resolver problemas alheios, coisa que felizmente resumiam-se a sua família e á Leonel.

– Não ligue para o que ela disse Capitão, a senhora Gale tem um mal habito horrível de perturbar as pessoas com seus avisos premonitórios.

– Tudo bem, não é a primeira vidente que encontro. Só um pouco excêntrica.

– Conhece muitas videntes? – perguntou Morticia o olhando com seriedade.

Só então o Capitão percebeu a proximidade deles, a mão dela estava apoiada ao braço dele com uma familiaridade que certamente não era dedicada á qualquer pessoa. Fingiu não se importar com aquele contato, antes que ela mesma notasse e se afastasse dele.

– Conheci algumas pelo mundo. Um pouco mais do que me lembro.

– Como é ser pirata? Navegar pelo mundo, conhecer lugares e pessoas.

– Por que não vem comigo e descubra por si mesma? – sugeriu o capitão sem nem mesmo perceber o que dizia.

– Uma pirata, eu?... Oh! Não está brincando.

– Nunca brincaria com isso, venha comigo Libuse.

Ela se afastou dele, lançando um breve olhar para ele e seguindo em frente.

– A estalagem fica naquela direção – explicou apontando para uma esquina alguns metros de distancia – Acha que minha irmã vai estar lá á minha espera?

– Esperemos que sim – murmurou ele a seguindo.

Uma pirata, Morticia podia rir daquilo se não estivesse tão tentada a aceitar. Podia dizer adeus a Verbena, deixar uma carta de despedida á família e embarcar a bordo do Leemyar, viveria aventuras dignas de Marco Polo. Seria uma pirata, melhor uma feiticeira pirata. Olhou por sobre o ombro se certificando de que o Capitão a seguia, ele parecia distraído com os próprios pensamentos enquanto a acompanhava. Se fosse com ele quanto tempo levaria para que ele se cansasse de sua presença? Quantas coisas teria que deixar para trás e quantas novas coisas teria que aprender? Tinha uma nítida certeza que não havia nenhuma mulher na tripulação do Leemyar, á julgar pelo comportamento de Claude. Pensando nisso imaginou como seria a reação dos outros, mesmo que ela se defendesse ou que o Capitão a defendesse dos outros, ela sempre seria uma mulher. Isso a desanimou, já tinha problemas demais em terra por ser mulher e bruxa, quais problemas enfrentaria no mar por ser uma pirata-mulher-bruxa?

O Capitão estava ciente dos olhares dela, mas ignorou. Se perguntava por que havia a convidado para acompanha-lo. Nem mesmo sabia o nome dela, não sabia de onde ela vinha e nem se era comprometida, julgando pela reação dela ao ser convidada para partir com ele... talvez fosse noiva, ela já estava em idade de se casar. Ou talvez fossem outros seus motivos, afinal para uma jovem donzela ela era evasiva e confiante o bastante para se afastar das pessoas sem se importar com as consequências. Sentia que ela tinha segredos á serem desvendados e ele sem nenhuma surpresa descobriu que se colocaria á disposição de desvendar todos segredos dela. Uma voz soou em sua memória “ela esconde segredos que não devem ser revelados”, fora isso que a velha vidente lhe disse, sentiu os pêlos da nuca se arrepiarem.

– Vidente louca – resmungou.

– Disse alguma coisa? – perguntou Morticia que havia parado olhando para outra aglomeração de pessoas.

– Vamos por aqui – chamou, guiando-a para um beco sem saída.

– Que ótimo guia o senhor é, Capitão – disse Morticia com deboche.

Ela se virou para retornar á rua mal dera um passo antes dele agarrar seu braço e puxa-la na sua direção.

– O quê? – perguntou levantando a cabeça o olhando imperturbável, antes que dissesse mais alguma coisa, o Capitão se curvou levando seus lábios aos dela.

Morticia ficou imóvel, os olhos arregalados de espanto. Nunca havia sido beijada antes e nem esperava ser um dia. Entretanto ela se xingou no segundo seguinte por ter ficado chocada, pois o Capitão se afastou a olhando de modo critico, como se arrependesse do que havia feito.

Ele de fato se arrependeu, não esperava por aquela reação. Talvez um tapa ou uma ameaça ou um grito, mas não aquilo. Ela havia ficado gelada, não só imóvel com aquela expressão de confusão no rosto, mas literalmente gelada, como se todo calor de seu corpo desaparecesse apenas por tê-la beijado. Os olhos mutáveis dela estavam claros como mais cedo , quando ainda estavam no navio, era desconcertante o modo com que os olhos dela mudavam de cor. Também havia algo escondido naqueles olhos mutáveis, algo entre o medo e o perigo.

– De... desculpe – ela gaguejou baixando a cabeça

Por que ele não saia dali e voltava para seu navio? Por que a necessidade de abraça-la era maior que sua prudência? Por outro lado, por que ela, evasiva e cautelosa como parecia ser não o empurrava e saia dali? Por que lhe pedira desculpas quando foi ele quem agiu errado? Com tantas questões em mente e nenhuma resposta, o Capitão segurou o rosto dela com as duas mãos. Os olhos cor de ouro, teimosos e apreensivos, encontraram os olhos azul-prateados determinados. Mais uma vez ele se curvou a beijando.

Morticia sentia as pernas tremulas, agradecia pelo fato dos braços do Capitão estarem em volta de sua cintura a apoiando, o coração parecia estar escalando sua garganta batendo com tanta força que seria possível até ser confundindo um tremor de terra, esperava que ninguém ouvisse ou sentisse. Aos poucos foi sendo desligada de seus medos psiques, enquanto os lábios do pirata a persuadiam á não resistir. Sua boca entreabriu-se se deixando explorar pela língua quente dele ao mesmo tempo em que sua língua se atrevia a explorar a boca dele. Quase que por conta própria os braços finos dela entrelaçaram o pescoço dele, seus dedos se fecharam nos cabelos pretos rebeldes e macios tirando dele um gemido abafado pelo beijo.

Ele havia sido cauteloso e suave nos primeiros segundos do beijo, com as mudanças de humor repentinas dela, não sabia se ela corresponderia ou o morderia, agora percebendo que ela baixara sua guarda ofensiva, aprofundou o beijo. Quando o capitão sentiu a língua se mover com hesitação, ele deixou de lado sua cautelosa capacidade de se controlar. Os braços que a prendiam segundos antes se soltaram para dar às mãos a chance de acariciar o corpo dela, como se fosse uma massagista tirando a tensão do corpo de um cliente, até que ela relaxasse e os braços que envolviam seu pescoço o puxou para mais perto.

Felizmente um deles ainda tinha algum tipo de realidade de espaço e tempo ou talvez fosse apenas a necessidade de recuperar o fôlego que fizera Morticia abaixar sua mão pousando no peito largo dele e o empurrando levemente para trás, enquanto respirava ofegante. De repente sentiu o rosto queimando ao perceber o que fizera. Onde ela estava com a cabeça para se agarrar á um homem desconhecido – não ele era um pirata, um capitão pirata bruxo – em um beco? Suas irmãs ficariam chocadas com aquilo, pior Narciso ia esgana-la se soubesse. Felizmente ele não precisava saber de tudo o que ela fazia.

– Tudo bem? – perguntou o Capitão erguendo o rosto dela.

Morticia deu um sorriso fraco e tímido, que realmente não tinha nada haver com sua personalidade agressiva e pacifica. Sabia que estava tão vermelha quanto o rubi do cajado de Verbena e que não tinha muito que fazer além de conformar com o fato de ter sido beijada por alguém de quem nem era esposa e de ter gostado.

– Podemos voltar a procurar minha irmã? – perguntou incerta, queria que ele dissesse não e voltasse a beija-la ao mesmo tempo em que queria sair dali e ficar longe dele.

– Claro.

O Capitão se curvou para um ultimo beijo, para alegria e desespero de Morticia, antes voltarem á rua, já não estavam longe da estalagem. Ambos sabiam que aquele beijo era mais que um argumento para que ela aceitasse ir com ele, virar uma pirata e viajarem juntos. Estavam á poucos metros da estalagem quando o Capitão vira a irmã da bruxa, era fácil reconhecê-la. Única mulher naquele lado do mundo que usava cabelos á altura do ombro, enquanto todas á sua volta tinham cabelos longos. Ele a apontou um discreto sinal de cabeça.

Morticia correu na direção apontada pelo pirata, Verbena estava junto de uma senhora que conheceram durante a viagem para Ravenna, que curiosamente não gostava de Morticia, a achava insolente. Morticia abraçou a irmã rindo de sua surpresa.

– Deus! Mort por onde andou? Onde esteve? O que aconteceu? Você está bem?

– Verbena, pare de me interrogar. Estou bem e estou aqui. Detalhes e de mais informações deixemos para outro dia.

Ela voltou a abraçar a irmã, procurando por cima dos ombros desta pelo Capitão entre as pessoas que iam e vinham. Ele lhe piscou acenando um breve adeus com a mão. Morticia suspirou triste com a visão dele desaparecendo na multidão. Apertou o abraço na irmã, era uma pena que tivesse de ser assim, mas era melhor que fosse. Sofria naquele momento o mesmo conflito de sua infância, escolher entre o certo e o fácil. E agora estava com o coração dividido entre ir com o capitão e ficar com a família.

O Capitão enfiou as mãos no bolso do casaco, curvando os ombros. Sentiu uma aflição por ela não ter ido atrás dele, devia ter esperado por isso. Sabia no momento em que ela correu para os braços da irmã, que ela nunca deixaria sua vida por ele, assim como ele nunca deixaria o mar por ela. Se assim fosse era o melhor, pensou, com o mal gênio que ambos apresentavam, era capaz de afundarem o navio e colocarem fogo no mar.

Morticia assistiu toda cerimônia das ondinas de modo parcial, tinha os pensamentos voltados para outro canto do mar, em um navio de velas cor de terra onde havia um capitão de olhos prateados por quem seu coração batia forte apenas em lembrar-se de seus braços em volta de seu corpo. Contou á Verbena o que havia acontecido omitindo a maioria dos fatos e fazendo a irmã acreditar que ela tivera uma alucinação devia a picada de um aracnídeo. Depois voltara para Ferrara, onde com os dias lentos e tediosos ela aprendeu a esquecer o que deixara em Ravenna.

Por sua vez o Capitão deixou de ser o mesmo homem que fora desde que se tornou quem era. O Leemyar que deixou o porto de Ravenna no dia seguinte á cerimônia das ondinas, desapareceu naquela tarde quando o corpo decepado de Claude fora lançado ao mar. Nos anos que se seguiriam outra tripulação seria convocada, de outro nome seria conhecido o navio e outra personalidade habitaria o corpo do jovem determinado que um dia apenas se deixou envolver por uma garota de olhos mutáveis que se nomeara Libuse Leemyar e que para ele seria sempre uma jovem rainha selvagem.