Um Breve Suspiro de Felicidade

Mulher de aço, mulher de gelo


— Eles chegaram em carros pretos, eram todos de altos cargos em seus ternos sociais cheios de insígnias, direto de Moscou. Não eram muitos, nove, dez no máximo... Mas eles comiam como porcos, não deixaram sobras. Eram porcos, gorduchos e nojentos...

A voz de Eduard era cansada, arrastada, pesada com o ódio usual. Toris escutava atentamente. Raivis apenas assistia ao relato da noite anterior em silêncio.

— Trocaram cumprimentos e sorrisos falsos, largaram seus casacos e foram direto para a sala de jantar... Nenhum tinha vindo aqui antes, Ivan não tem amigos.

Ele estava nervoso, do jeito que você falou. Não sorria nem brincada, e só disse algumas palavras. Ele mal tocou na própria comida, como se estivesse enjoado. A senhorita Katyusha também estava quieta, Natalia era a única entretida na conversa. Sem dúvida ela estava... Radiante.

Chegou um momento no fim do jantar que ela se levantou e parou a conversa batendo uma colher numa taça. Ivan congelou no lugar e empalideceu mais do que parecia possível. Ela olhou ao redor, mirando os empregados que ainda estavam lá, e mandou todos saírem.

— Gostaria de um momento de privacidade com nossos convidados. — suas palavras eram educadas, mas sua expulsão beirava a ameaça. Claro que ninguém desobedeceu.

— Senhoras e senhores, caros amigos... — ela começou a falar, muito desinibida. — Agradeço muito por terem vindo prestigiar essa data tão especial. Hoje, é um dia único, de grande comemoração.

Paramos de espiar pela fresta da porta. Estávamos todos com medo. Ninguém ouviu o grande anúncio.

Finalmente Ivan falou. Estava tão desequilibrado que se tornava impossível entendê-lo. O que antes era silêncio virou um burburinho de surpresa. De repente, todos os convidados também saíram como uma procissão, e ficaram sentados na sala. Ficaram apenas Ivan, Natalia e Katyusha na sala de jantar.

Ouvimos alguns gritos, Toris, e o barulho de vidro quebrando várias vezes. Senhorita Katyusha começou a chorar alto, e então saiu também, com o braço todo sangrado graças a um caco de vidro. Ela não quis contar o que fora.

Ivan saiu bem depois, mandou os convidados irem embora e os empregados a dormir e nem olhou para a cara dela. Parecia prestes a matar alguém, ou a si mesmo: assim que os porcos foram embora, ele subiu correndo para seu quarto, Natalia o seguiu.

— Ouvimos mais gritos, mas chegou uma hora que todo mudo realmente acabou dormindo. Supomos que você estava bem longe, mas ficamos preocupados. Seja lá qual era o grande anúncio, acho que era o que Ivan não queria que você estivesse aqui para ouvir. Todo cuidado é pouco.

Toris engoliu em seco ao final da história. Aquilo estava indo de mal a pior. Havia ainda tantas lacunas e tantas dúvidas que tornava impossível pensar no que fazer. Sentia-se doente. Queria poder fechar os olhos e voltar para a noite anterior, mas enquanto não criassem uma máquina do tempo, ele tinha muito para enfrentar. Eram cinco da manhã, hora de levantar comum, se Toris não tivesse acordado Eduard e Raivis mais cedo em busca de explicações. A verdade tinha o esgotado, porém o dia exigia mais do que nunca que se levantassem para trabalhar.

...

Natalia está linda. Natalia sabe que é linda. O espelho não mente, está deslumbrante e radiante de alegria. Não é a toa que aquele empregado do chá praticamente baba a observando. Mas além da delicadeza estonteante de sua aparência, é a fúria e a força sob que ela que Natalia mais aprecia em si mesma. É uma tigresa na pele de um cisne, e isso é algo admirável. Por isso gosta de se olhar tanto no espelho, notando cada detalhe de seu rosto, pescoço, colo, cintura.

— Agora pode ir, está me atrapalhando. — ordena ao rapaz do chá, parado na porta como uma estátua enfeiando sua vista no espelho.

Porém, quando ele vai embora, outra pessoa entra, uma mulher baixa e rechonchuda com um olhar firme de incerteza. Sem permissão.

— Precisamos conversar. — ela anuncia, em voz baixa.

— O que você quer?

Natalia odeia aquele tom de pena que Katyusha sempre usa para repreendê-la. Sabe bem qual será o discurso que irá ouvir o bastante para saber que os próximos minutos lhe darão dor de cabeça. Mas não, não permitiria que ninguém estragasse seu dia assim.

— Quero que você repense, minha querida. Pare com essa loucura. — há uma pitada insolente de ordem por trás daquele vitimismo. Não, Natalia não será sua irmãzinha obediente.

— Hm, não. — estreita os olhos — Por que eu pararia? As coisas finalmente estão funcionando como eu quero. Você deveria ficar feliz por nós.

— Você sabe muito bem que esse não é o caminho certo. Pare antes que fique pior.

Natalia se vira, ficando frente a frente com afirma mais velha, sua criadora.

— Está com ciúme, mana? Ou está com medo? — provoca, esticando o sorriso.

Katyusha dá de ombros e revira os olhos, parecendo achar as perguntas ridiculíssimas.

— Eu não tenho medo de você. — afirma, muito mais decidida que manda seu papel. — Você é minha irmãzinha.

— E como minha irmãzona, você deveria apoiar minha decisão.

— Está errada. — dá um passo a frente, irritada com a atitude. — Como sua irmã, eu tenho que parar você de fazer uma loucura. E sou irmã do Ivan também.

Por algum motivo, Natalia parece muito irritada com aquilo.

— Você não sabe o que é melhor para nenhum de nós. — ela quer gritar algo diferente, mas consegue se controlar a tempo e encarara Katyusha. Seu olhar é de desafio. — Além do mais, se eu fosse você, não me preocuparia tanto. Não há ninguém melhor para cuidar de seu precioso irmãozinho que sua preciosa irmãzinha.

— Não precisa ser assim. Você vai deixá-lo louco. E todo mundo sabe o que você realmente quer com isso. — sua voz suaviza — mas podemos parar com toda essa loucura agora é voltar atrás, ninguém ficará bravo com você.

— Ah, por favor! — Natalia rosna, batendo a escova com que ajeitava o cabelo na penteadeira. — Me poupe desse olharzinho de santa piedosa, Katyusha! Não é como se você fosse santa alguma. Você não sabe de nada!

— Só quero que vocês fiquem bem... — sussurra, mas seu olhar é um aviso.

Natalia não se acanha.

— Pois então, fique feliz! Estou mais que bem, melhor do que nunca! Estou realizando meu sonho e você deveria ficar feliz por isso!

— Ivan é seu sonho... Ou poder é seu sonho...?

— Sua inveja me enoja. Só porque eu estou tendo um futuro que você nunca vai ter? Tudo por que já minha idade, você...

Katyusha perdeu a paciência. Natalia sabia bem em qual assunto tocar e em qual não tocar numa conversa com a irmã, por pior que fosse a discussão.

— Chega! — interrompe, com uma pitada de desespero. — Eu fiz tudo que eu fiz por vocês. Você sabe bem disso, não seja tão ingrata!

— Ui, a gatinha tem garras. — Natalia sibila, levantando as mãos ao lado da cabeça em sinal de rendição. — Espero que não tenha guardado aquele AK-47, sestra, ou então eu tô ferrada...

— Pare com essa palhaçada... — ela joga-se no divã e massageia as têmporas, tentando recuperar a calma e a paciência. — Eu não gosto de brigar com você...

— Então pare de tentar estragar meu sonho. Não vai mudar nada, não vale a desgaste.

— Estou protegendo minha família... — Katyusha sussurra, mas é óbvio que Natalia já a derrubou.

— Quando é que você vai entender que a gente não precisa mais de proteção? Estamos muito bem. Eu e o Ivan sabemos bem o que estamos fazendo. Ele sabe tanto quanto você que só temos a ganhar com esse casamento e com meu novo cargo. E se você não acha que a gente é capaz de tomar nossas próprias decisões é porque você não confia na criação que nos deu...

É, Natalia sabe se sensata quando precisa ser persuasiva. Sabe que uma bela dose de culpa é suficiente para tirar sua irmã do caminho. Elas ficam em silêncio por minutos, pois Katyusha parece incapaz de falar. Por isso odeia discutir com Natalia, ela sempre vence, mesmo errada.

— Você fez um ótimo trabalho como a mãe que a gente não teve. — continua suavemente, mas ao poucos retoma o tom ameaçador com a mesma suavidade. — Mas o seu tempo acabou, nós crescemos. É hora de deixar a nova geração tomar poder e logo superar a antiga. Se você acha que pode impedir isso, desista, o novo sempre vem. Eu vou me casar com Ivan e nós vamos para Moscou. Ponto final.

Ela faz uma pausa:

— Só parar deixar claro, eu não me arrependo de nada que fiz para proteger minha família. — ela se levanta e suspira pesadamente, derrotada. — Mas você tem razão.

Natalia parece se interessar.

— Eu criei vocês dois. Não sei onde errei, mas no que quer que seja foi culpa minha. Mas se você não precisa mais de mim, eu não vou atrapalhar. No entanto, você sabe que o que está fazendo é errado e eu confio que vai refletir. Ou você ou Ivan...

— Hm, não. Eu já refleti o suficiente. Nada mudou.

— Você não pode obrigá-lo a fazer nada...! — a voz escapa, numa última tentativa desesperada. — Você sabe que ele não quer nada disso!

— Não importa. — Natalia corta.

— Como na importa?! Não pode obrigá-lo a sentir...

Não importa o que ele sente. — repete bem devagar, entredentes, praticamente rosnando. — Você não sabe de nada. Vá embora.

— Mas...

— JÁ!

Ela não tem escolha senão obedecer. Mas se nada adiantou a discussão para mudar a cabeça da irmã, foi definitiva para ela tomar uma decisão que mudará tudo.

...

Ivan tomba de leve a xícara vazia onde antes houve chá que tem em mãos, observando o fundo com as últimas gotas da bebida dançando de um lado para o outro, carregando as folhas de camomila que lhe deram sabor. Ele observa o movimento em sua delicadeza até acabar, pensando em nada e em tudo ao mesmo tempo. Pediria mais uma xícara mas não quer ter que olhar para os olhos piedosos de Toris outra vez. Ou melhor, tem medo. Ainda bem que ele estará em seu quarto, "de folga", na hora do jantar, e privará assim aqueles olhs de verem a cena de Natalia. Já havia até ensaiado: ela iria se levantar, bater numa taça, fazer um discurso e depois anunciar o noivado. Então, anunciaria Natalia como a nova comandante e responsável por todas as atividades da família Braginsky além da mudança para a capital - onde a consolidaria sua aliança com o governo com o plano de recuperação do exército vermelho, "muito frouxo" segundo ela, desde a guerra do Afeganistão. Aparentemente, Natalia estava traçando seu caminho para trazer uma nova Era Stalinista, e carregaria Ivan junto como sua Alliluyeva*, ele querendo ou não.

Alguém gira a maçaneta, tirando-o de seus pensamentos. Apenas uma fresta da porta é aberta, e a própria futura mulher de aço colocou a cabeça para dentro do cômodo.

— Posso entrar, querido? — ronrona ela com um sorriso afiado.

Ele não precisa responder para que ela entre, feche a porta e surja inclinada em sua mesa, muito serelepe.

— Trabalhando muito? — pergunta, sentando na mesa em uma pose sensual sem nenhuma vergonha. — Não sente minha falta?

Ele levanta os olhos para ela e logo seguinte abaixa, silencioso. Responderia qualquer pergunta com um balanço da cabeça.

— Gostou do meu vestido? — ela continua a insistir. — Especial para hoje.

Ele permanece impassível e quieto, meio que com medo de falar, e isso a irrita um pouquinho, por isso fecha a cara e vai direto ao ponto.

— Katyusha foi falar comigo agora.

Pela primeira vez, Ivan levanta os olhos e continua olhando. Para ela ter contado, algo tinha que ter acontecido, e isso o preocupa consideravelmente.

— O que ela disse? — tenta não parecer tão desconfortável quanto está para ela.

— Hm, nada de mais. — responde tediosamente, brincando com as canetas no porta lápis em cima da mesa. — Só foi tentar me convencer a te largar... Mas você sabe que eu nunca faria isso.

Aquilo soa como um aviso. Como uma tigresa observando antes de atacar um coelho.

— Ah... — ele desvia o olhar para a parede. — Entendo...

— Por que tão cabisbaixo, maninho? — ela toca seu rosto, fazendo-o voltar para ela. — Hoje é um dia especial...

— Dormi pouco, só isso. — não é mentira.

— Não dormiu de tanta ansiedade? — ela se alegra. — Ah, mano, estou ansiosa também!

Ele demora um pouco para fazer menção a falar, mas logo em seguida ela interrompe, virando-se de costas para ele e olhando ao redor do velho escritório.

— Ai, ai, não vejo a hora de começar a decorar nossa casinha em Moscou... Até porque essa cidadezinha é tão atrasada... — ela balança as pernas no ar como uma menina inocente enquanto fala. Até parece inofensiva. Mas quando volta a virar-se, seus olhos encontram a xícara de chá trazida por Toris, e seu sorriso por um milissegundo desaparece. — Aliás, acho que podemos nos livrar de algumas pessoas, temos gente demais aqui, não acha?

— Não precisamos dar adeus a ninguém... — ele sabe muito bem que aquele discurso tinha alguns alvos específicos. — Eles podem ir com outros.

— Ah, mas pra que a preocupação? — ri como um desafio. — Eles conseguirem outro emprego na mesma tarde, não somos responsáveis por ninguém.

— Não são simples empregados, Natalia. Você sabe por que eles estão aqui. — estreita os olhos, lembrando Natalia por que não é tão simples assim.

Mas, não parecendo abalada, ela se inclina pra mais perto dele, e seu perfume o enoja um pouco. Então sussurra, numa brisa atemorizante e venenosa de quem não aceitará não como resposta.

— Então você sabe bem para onde mandá-los.

Ele sente a mensagem ferver o sangue e congelá-lo ao mesmo tempo, um misto de medo e raiva que Natalia quase sempre traz. Quem ela pensa que era para sugerir uma coisa dessas?! Ele é o chefe, ele decide quem vai e que fica, ele escolhera cada um dos rapazes em sua casa a dedo, ela não decide seus futuros. A única coisa que Ivan queria era morar numa casa grande e cheia de pessoas e calor, e até isso ela queria tirar dele... Não podia permitir, não poderia permitir, mas era Natalia...

— Já disse que ninguém vai embora, Natalia! — se levanta bruscamente, batendo as mãos na mesa.

Ela une as sobrancelhas e lança-lhe um olhar de ódio. Só aquilo basta para ele se arrepender e começar a tremer de medo. Não havia Ivan, o terrível, perto de Natalia.

— Eles vão se eu disser que vão... — rosna, puxando-o para perto de seu rosto pelo cachecol, quase o sufocando. — Não fale nesse tom comigo... Não esqueceu quem manda aqui agora, esqueceu?!
Ele não pode fazer nada senão tremer e tentar se libertar desesperadamente do cachecol antes que o ar lhe falte por completo. A expressão assassina dela não torna as coisas mais fáceis. Só depois de muito implora com os restos engasgados de voz e pedir desculpas horrorizadas que ela o liberta, fazendo-o cair com seu próprio peso de novo na cadeira, ofegando e sem ar.

— Muito melhor assim, mano. — ela sorri, maldosa e vitoriosa. — Agora vá se arrumar, quero você bem lindão no nosso jantar hoje... — ela diz alisando seu paletó, com uma pitada de orgulho para esconder ameaça.

Ela finaliza com um beliscão quase carinhoso em sua bochecha antes de finalmente se afastar e rumar à porta. Sozinho novamente e felizmente, Ivan afunda na cadeira para pensa na merda que havia se enfiado.

Em breve os "amigos" de Natalia chegarão e em breve sua vida estará acabada. Ao menos Toris não estará ali para vê-lo assim, pensa, com o olhar de volta na xícara. Então, como um condenado que amarra a corda para sua própria força, ele se levanta e vai se aprontar.