Pandemônio
1.
associação de pessoas para praticar o mal ou promover desordens e balbúrdias.
2.
mistura confusa de pessoas ou coisas; confusão.

Eu nunca soube o que queria ser. Não gostava o bastante de anatomia para seguir como médica, nem me agradava a ideia de defender quem surgisse, fosse culpado ou não, em advocacia. Não tinha paciência com moda, e não era boa com ciência para conseguir ser veterinária. Não me encaixava em nada daquilo.

Eu era mais do que roupas caras, perfumes importados e um emprego estável numa profissão que odiava, mas com salário alto. Eu não ligava para isso. O que eu queria estava além do horizonte, no fim do oceano; uma aventura, com direito a espadas, magia e seres encantados. Algo parecido com as histórias de dormir que minha mãe contava e agora não passavam de lembranças. Algo emocionante, que me tirasse da realidade monótona que vivia. Qualquer coisa.

Infelizmente, meu apelo foi atendido da pior forma; pela morte daquela que deveria ser eterna, minha mãe.

Uma segunda-feira normal. Ia para a escola no banco do carona com Clara, terminando um dever de casa atrasado. Conversávamos sobre nossos dias, o que faríamos, quando o caminhão surgiu. Duas luzes fortes, vindo contra nós com tanta velocidade, que não houve chance de fuga. O estrago já estava feito antes da pancada acontecer e o carro capotar rua abaixo, parando no meio de um amontoado de árvores. Os gritos, a dor e o desespero eram sensações impossíveis de serem esquecidas, assim como a impotência de ver minha mãe no banco do motorista seriamente machucada e não estar em condições de fazer nada.

Tentei salvá-la; usei o que restava de forças para sair do carro e gritar por ajuda a quem passasse. Fiquei do seu lado até a ambulância chegar, mas era tarde. A perdi, junto com uma parte de mim mesma.

Depois, num piscar de olhos, eu não estava mais lá. Afundava num mar alaranjado, que banhava uma ilha encantada: havia flores tagarelas, sereias, outros seres humanos únicos e magia a cada canto que se olhasse, tocasse. E também havia ele, Peeta Melark. O guardião de Panem.

Eu lembrava de como estava assustada no primeiro dia. Mal conseguia respirar e a dor da perda ainda era recente. Estar em um ambiente novo — quase irreal — não trazia conforto. Pelo menos, não até conhecê-lo. O rapaz loiro, gentil, que me mostrou que não havia o que temer. Que aquele poderia ser meu novo lar, se quisesse.

Meu coração batia feito um tambor, quando escutei, na voz doce e calma que mexia comigo, as palavras de carinho que tanto precisava:

— Somos uma família, nós todos. Já a consideramos parte da nossa, você só precisa nos considerar também.

Desde então, eu aceitei. Fiquei em Panem, a ilha encantada, por maravilhosas duas semanas. Vi de perto a extensão do amor dos moradores por mim, uma intrusa. Peguei afinidade aos poucos com todos, principalmente Rue, a garota aventureira que não me deixava ficar sem ter o que fazer. Escalavamos árvores, treinavamos com espadas, mexiamos com as sereias. Éramos grudadas, feito unha e carne.

— Você vai ficar? — um dia, deitadas perto da fogueira, a ouvi perguntar. Parecia uma criancinha pedindo a mãe um pouco de atenção. — Com nós, em Panem. Você vai?

Não soube o que responder. Não tinha resposta. Estava fugindo da pergunta desde que cheguei, na verdade. Porque uma parte de mim queria muito ficar, continuar a me sentir em casa como há muito tempo não sentia. Mas outra fazia parecer que estar ali era desistir de tudo o que eu e minha mãe planejamos. A faculdade, as aulas de dança, uma empresa carregando nosso sobrenome. Não havia como conseguir nada disso ali, com eles.

— Eu não sei.

No entanto, não era verdade. Eu já havia tomado uma decisão naquele momento; era hora de voltar. Não poderia viver para sempre ali, no que deveria ser um mundo utópico criado pela minha mente num momento de necessidade, e deixar minhas responsabilidades na terra de lado. Eu precisava conquistar o que minha mãe não teve tempo. Então, em pouco tempo, passei a me despedir discretamente de todos que era próxima. Dizia o quanto era grata, como os amava, que nunca os esqueceria. Fiz o que pude para deixar claro meus sentimentos e carinho.

Na vez de Peeta, a situação mudou. Ele não fazia ideia de que eu estava indo. Havia montado um piquenique na área alta da ilha, de onde se podia olhar as estrelas e constelações. Tinha velas, guloseimas e uma sensação boa no ambiente, como se cada objeto transmitisse o carinho com que ele havia feito tudo. E nesse momento, eu quis muito desistir. Simplesmente ignorar minha consciência e viver ali, com ele, pelo tempo que pudesse.

— Eu te amo. — O ouvi dizer, no intervalo de uma de nossas conversas banais. Havia admiração nos seus olhos, e um sentimento de afeto quase palpável. — Mais do que a mim mesmo, ou qualquer constelação nesse céu.

Foi um baque ouvir tais palavras. Fiquei estática, sem respirar, nem responder. Não sabia exatamente o que sentia, e não conseguiria colocar para fora o sentimento. Era algo forte, mas confuso. Além do mais, me faltaria coragem de ir caso o fizesse.

Então, eu engoli. Absolutamente tudo. O sentimento que transpassou por meu corpo no primeiro beijo, a maneira que meu coração batia feito um tambor quando estávamos perto, o jeito que seu sorriso mexia comigo feito montanha russa. Fui embora com o que queria ter dito entalado na garganta.

Vivi sobre migalhas durante anos, até finalmente regressar ao lugar cuja morada sempre me pertenceu.

No entanto, as coisas mudaram, e meu lar não era mais ali. Não havia como chamar o mundo cinzento e cruel, de casa. Nem o governador impiedoso, que um dia me jurou amor, de Peeta.

Havia um campo de guerra, aonde deveria estar Panem. E a culpa era minha.

Agora, com uma espada apontada em riste para mim, eu via a gravidade dos meus erros. Via o que minha partida causou, quando pensei estar poupando todos do desastre que era. Do quanto fiz falta, e o quanto essa falta destruiu quem eu menos gostaria de machucar. Quem agora, sem remorso algum, empunhava a espada para mim.

Tudo porque Peeta não lembrava de mim.