Não era a melhor festa que já estive. Nem o melhor jantar. Claro, eu não havia comparecido a muitas festas e jantares, apenas assistido, seja pela televisão, ou no palco. Mas, digamos que era o melhor que eu poderia ter.
“Mamãe. Papai. Se importariam de eu sair um minuto?” Perguntei a eles sem olha-los, os olhos vidrados na tela no celular. “Meus amigos me convidaram para ir a uma pequena festa que fizeram. É em comemoração a minha vitória.” Ergui a cabeça por fim, o rosto um pouco confuso. Odiava a maneira como me comportar, até em minha casa. Apostaria tudo que a família real não tem que ser tão educada e gentil o tempo inteiro, e sim apenas diante as lentes e flashes das câmeras. Mas eu, não. Era sempre, em qualquer lugar e com qualquer pessoa. Esse era o preço que eu tinha que pagar por ser filho de um casal tão refinando, ainda mais agora que eu não era mais apenas um violoncelista famoso da província de Honduragua, e sim também um selecionado.
“Uma festa? Mas a essa hora da noite?” Minha mãe tinha rugas minúsculas espalhadas por todo o rosto, os lábios rosados agora eram linhas finas e esbranquiçadas. Tudo nela demonstrava desaprovação.
“Sim, apenas uma festa entre amigos. Uma noite de diversão.” Sorri tentando soar gentil. Porém, a reação de meus pais e irmãos não foi a que eu mais esperava. James largou o garfo da mão no mesmo instante em que falei a palavra “diversão”, o metal produzindo um trim agudo ao se chocar com o prato de vidro. Allana tratou de se agarrar a sua taça de licor, dando goles atrás de goles, arregalando os olhos por trás do vidro transparente. E mamãe e papai fizerem a pior coisa de todas; Nada. Não comentaram nada, não questionaram nada, não argumentaram nem contrariaram. Não mexeram um sequer músculo. Apenas ficaram parados sentados à mesa, parecendo tranquilos. Apenas parecendo.
“Desculpe, meu filho. Acho que não ouvi direito. Me corrija se eu estiver errada,” começou mamãe, sua voz melodiosa e rouca soada baixinha. “você disse que gostaria de sair agora, no meio de nosso jantar familiar que fazemos todas as noites especiais como tradição de nossas conquistas, para ir se divertir com os amigos?”
Todos ficaram em silêncio. Ninguém ousou provocar um ruído sequer, todos os rostos virados em minha direção. Engoli em seco duas ou três vezes antes de voltar a falar, a voz soando alta demais na salinha silenciosa. “Sim, mamãe. Foi o que eu disse.”
Parecia que eu havia novamente apertado o botão pause, permitindo que o tempo voltasse a rodar, já que todos retornaram com suas reações estranhas. James começou a brincar com os dedos, não ousando olhar para ninguém. Allana soltou umdroga bem baixinho, de modo que fiquei em dúvida se ela realmente tinha falado aquilo, ou era apenas eu imaginando coisas. Papai voltou com seu ataque de tose, se inclinando para o lado na cadeira com a mão no peito. E mamãe, a mais rígida entre nós, apenas me fitou com seus olhos grandes, que apesar da velhice, os belos pares de olhos azuis nunca desbotavam sua cor vívida e intimidante.
“Você conhece as regras, Gael.” Mamãe me lembrou, duas bolinhas de gude azuis disparando lazeres no meu rosto. “Não podes sair depois das sete da noite. Tens que comparecer ao jantar familiar tradicional, sem faltas e sem exceções. Você quebraria duas regras muito importantes. A resposta é não.”
“Mas, só hoje. Não voltarei tarde, prometo.” Birrei na mesa, como uma criança faria pela negação da mãe por um doce de um mercado qualquer. Eu precisava tocar uma ultima vez, estar em uma festa de verdade mais uma vez, antes que eu tivesse que ir para aquele castelo idiota. Apenas mais uma vez.
“Não, Gael. Eu já disse que,” Papai levantou a mão, interrompendo mamãe pela primeira vez em muitos anos. Ela o olhou, atônita, enquanto ele olhava de mim para mamãe, e depois para mim novamente.
“Deixe-o ir, Eileen. O garoto precisa se divertir ao menos uma vez.” Ele piscou um dos olhos para mim, erguendo a ponta dos lábios em um sorrisinho discreto, depois voltando a olha-la friamente.
Todos à mesa ficaram sem fala, com as bocas tão abertas que, se por alguma infelicidade um inseto viesse zanzar na comida, poderia ser engolido.
Papai era, para nós todos, apenas uma carcaça vazia, tendo como missão esperar que o câncer terminasse seu trabalho. Desde que ele recebeu a noticia da doença, isolou-se das pessoas e fechou os olhos para as coisas mais belas e feias que a vida poderia ainda oferecer a ele. Meu pai tinha simplesmente desistido de viver, e há muitos anos, ele era um homem já morto.
Esta noite, ele novamente se acordou.
“M-mas e o j-jantar?” Minha mãe parecia prestes a ter um ataque do coração, uma repentina tremedeira atingindo suas mãos pálidas.
“O jantar não importa. Deixe nosso filho viver de verdade. Pare de aprisionar nossos filhos, velha chata!" Papai se levantou da cadeira e saiu da mesa, não se importando com bons modos ou com a postura.
Olhei para mamãe, agora o corpo inteiro pálido e tremulo. Ela ergueu a cabeça somente um pouco, nos fitando. Abanou a mão levemente para nós, repousando a cabeça na outra. “Vão, vão. Divirtam-se.”
Nem eu, nem James e Allana tentaram perguntar se ela realmente desejava aquilo. Como eu, tenho certeza que eles temiam que ela mudasse de ideia, e então nos levantamos depressa e seguimos para a porta, um sorriso tão exagerado no rosto que parecíamos palhaços de circo.
A noite lá fora estava fria, e o vento acertava minhas bochechas como socos. Mas eu não me importava.
Peguei o celular e digitei rápido uma resposta para Aaron, meu amigo, enquanto Allana erguia o braço para chamar a atenção do taxista que passava solitário na rua mal iluminada.
Demorou uns cinco minutos até nos vermos parados a beira da calçada, um letreiro verde-limão anunciando a entrada do bar.
Saímos do carro, um por vez, e andamos devagar até a entrada, os pés ainda examinando aquele lugar tão desconhecido para nós.
Assim que coloquei a perna para dentro da festa, fui puxado pelas pessoas para o centro do bar, braços e costas me empurrando cada vez mais para frente e para trás.
“Gael! Não é que você veio mesmo?” Aaron colocou o braço por cima do meu ombro, ainda segurando um copo de cerveja que derramava na minha camiseta.
“Eu disse que vinha.” Passei os olhos por toda a minha volta, olhando cada coisa que encontrava, desde o sofá lotado de pessoas agarradas umas as outras, ao barman, girando garrafas de bebidas no ar.
“Claro que disse. Ei, cara!” Aaron gritou para um garçom, o mesmo parando diante de nós. “Serve para este carinha aqui a bebida mais forte.”
Não precisava ser muito inteligente pra perceber que ele estava embriagado, até porque sua cara o entregava de vez, sempre fazendo uma careta diferente.
Quando a bebida chegou, Aaron entregou o copo para mim, desequilibrando um pouco.
“Tome, carinha. Hoje, a festa é sua.”
Fui empurrado até a pista de dança, onde me vi cercado por pessoas que, dando alguns passos, me encorajavam a dançar.
Tudo o que eu precisava fazer era me divertir. Uma coisa bem simples, e totalmente contra as regras.