—Minhas veias são verdes ou azuis-esverdeadas? —o namorado idiota da Becker pergunta. Robbie não é idiota na maior parte do tempo. Ele é legal e faz Becker feliz, mas hoje, nesse exato momento, é um completo babaca. Seu time ganhou uma partida importante da temporada, então ele chamou Becker para comemorar indo em uma boate do primo dele, onde ele deixa a gente entrar sem identidade. Como sou amiga de Becker, concordei em vir junto ("caso Robbie tentasse 'passar dos limites'.") e estamos comendo antes de irmos para lá, caso a bebida cause algum estrago. Robbie ainda está com as mãos estendidas para mim, mostrando-me os pulsos. Estou com tanta raiva que imagino-me pegando uma faca e cortando os dois.

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O que eu faço de verdade é chegar mais perto e analisar.

—Verdes.

—Você não tem sangue azul, amor. —Becker sorri. —Deixe eu ver as suas. —diz para mim. Estendo meu braço e os dois ficam olhando por alguns segundos.

—São meio azuladas, mas você é bem branca então pode ser por causa da pele. —comenta Robbie. Cuidadosamente o ignoro, para que não percebam, e espero Becker falar alguma coisa.

—Azuis. Sua princesa.

—As suas agora. —respondo, e ela estende os braços.

—Verdes.

—Eu sou tão branca quanto você! —exclama em minha direção. —O que me diz? —pergunta para o namorado.

—É azulado, sim.

Faço uma careta, e a garçonete traz os nossos pedidos. Começo a comer bem devagar, prolongando nosso tempo longe daquele lugar, sem conseguir conter minha meu nervosismo.

Eles, no entanto, comem depressa e depois me apressam para fora, e Robbie até deixa eu comer no carro quando lanço minha última desculpa desesperada. Não funciona. Vou comendo meu cheeseburger no banco de trás, até estacionarmos na frente da boate e eu ficar com vontade de jogar o cheeseburger para fora. É a mesma boate da última vez. De repente, eu me sinto mais deprimida do que com raiva, e no minuto seguinte, a raiva sobrepassa a tristeza e grita para que eu engula isso e tente se divertir. Porque se não, eu tenho um furacão dentro de mim e vai destruir todo mundo ao meu redor se eu não controlar minhas emoções. Ser sentimental é tão cansativo, e tão sufocante e eu estou exausta de ter a mente que eu tenho. Engulo qualquer hesitação e expiro todos os meus medos —para fora do meu corpo, e caso virem carbono (como acontece quando você respira), nunca mais entrarão no meu corpo novamente. Gosto de acreditar nisso.

A boate está cheia, como sempre, e a única diferença é que consigo diferenciar e identificar rostos. Na última vez, eram todos iguais. Na luz todos eles se tornaram réplicas de uma mesma pessoa sem identificação. Tudo que consigo ver agora são os jogadores da escola, algumas pessoas mais velhas, e garotas. É pior dessa vez porque antes Becker estava solteira. Agora que tem Robbie, é bem provável que me deixe um pouco de lado —como deve ser, já que está aqui POR ELE —e não me leve para casa caso eu comece a chorar. A notícia boa é que trouxe dinheiro para o táxi se eu quiser ir mais cedo, e os pais de Becker não ligam para saber que horas a gente chega ou não, onde vamos ou não (eles confiam nela). Essas horas são merecidas, já que passei muitas horas estudando.

—Feeeestaaaaaaa! —Becker exclama, animada. Os amigos de Robbie se aproximam, gritando como animais, urrando. O ar condicionado no lugar não contém o calor dos corpos juntos, no entanto, estou grata por não estar sentindo-me claustrofóbica como na última vez.

—G-A-N-H-A-M-O-S! —Robbie entra na onda e se anima como se tivesse levado uma carga de energia. Puxa Becker para a pista de dança, e ela lança um olhar para mim antes de segui-lo. O olhar diz se cuide. E ela não está falando do tipo "não fique grávida", no estilo Gwen de falar. Está mais para "não faça nada que te faça chorar". Bem o meu estilo. Eu vou para o bar, e peço tequila. Depois de pagar, tomo tudo em gole só, como fiz com o uísque do Eric. A música me irrita um pouquinho —todo aquele bum, bum, bum e pip, pip, pip —mas eu me concentro no ritmo, especificamente. E se eu fechar os olhos, consigo até imaginar como seria se tentasse dançar. Peço outra tequila. Um cara senta do meu lado —um jogador de futebol.

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—Você é o tipo de garota que gosta de tequila? —reconheço a voz, é um dos jogadores amigos de Robbie. Ele nunca falou comigo antes, mas sei seu nome por causa das aulas: David, eu acho.

—O que isso quer dizer? —reconheço minha voz, e me sinto estranha. Estou flertando com ele e não estou nem bêbada. A estranhez tem raiz no meu coração, porque lá no fundo sei porque estou fazendo isso. Estou tentando agir como uma menina normal, como se eu fizesse isso todo dia, e nada estivesse errado. Ele sorri, o que me leva a conclusão que está funcionando.

Talvez eu consiga sobreviver até o final da noite.

—Você tem classe.

—Eu tento. —quase rio de mim mesma depois de dizer isso. Ele me paga outra tequila e viramos nossas bebidas juntos.

—Meu nome é David.

—Diana. —durante o tempo que levo pronunciando o meu nome, tenho uma pequena epifania: ele não me reconhece. Não sabe quem eu sou. De alguma forma, isso deixa um leque de possibilidades abertos em minha direção. Posso remendar em mim aquelas partes confiantes que restam no meu interior, que eu uso para falar nas festas dos meus pais, que eu uso para fingir que sou confiante e linda. Não preciso estar como da última vez, com Ian. Não quero nem pensar sobre ele ou o que aconteceu ou meus dilemas.

Eu sou Diana. Sem sobrenome. Sem família.

Sem passado. O fantasma do presente, que existe apenas nesse momento.

Eu consigo fazer isso.

—Primeira vez aqui?

—Não. Você? —ele se arrasta para mais perto, na cadeira. Continuo em pé, mesmo que meus saltos estejam fazendo meus pés doerem. A dor lembra que isso não é um sonho.

—Sim. Talvez você possa me mostrar o lugar.

—Não há muito para se ver, para falar a verdade. —e eu não vou levá-lo para um canto, para ele tentar "passar dos limites". David sorri, confiante. Os dentes reluzem.

—Quer dançar? —dou uma boa olhada em seu rosto. Ele é bonito, mas é aquele tipo fácil de beleza. O que as pessoas compram logo de cara. Não dói olhar para ele, claro. Só não preciso de muito tempo para chegar na conclusão de que ele é bonito. Deixa seu rosto um pouco mais desinteressante. Óbvio.

Mesmo assim, não desisto logo de cara.

Estou decidida a provar para mim mesma que eu posso fazer isso.

E que não vai acontecer com ele o que aconteceu com Ian. Mesmo que ele me veja na escola.

—Não sou muita boa na pista de dança. —isso é verdade. Mas eu falo de um modo que diz que eu não quero dançar, ao invés de não saber. Confiante. Esnobe. Não sinto absolutamente nada a não ser as batidas da música tremendo o meu coração e a dor nos pés. E o olhar de David em mim enquanto eu peço outra tequila, sentindo minha cabeça como uma pena.

—Você é da Holver?

Ele acha que eu sou uma universitária. Não me reconhece mesmo.

—Não.

—Você é daqui? —encolho os ombros, pois não quero responder. —Você é muito bonita, Diana.

—Obrigada.

Não me sinto lisonjeada. É meio normal. Olho para David.

—Você não é tão ruim. —adiciono.

Pip, pip, pip, pip, pip, pip...

O seu próximo passo não é surpresa. Ele se aproxima e me beija, a primeira garota no bar que ele viu, e conseguiu conquistar em menos de dez minutos. Talvez esteja orgulhoso de si mesmo, ou planejando o que fazer em seguida, mas seu corpo está no beijo. Eu consigo sentir o gosto do álcool, e o calor. Minha mente está fugindo, desligando-se para evitar uma catástrofe e eu o beijo com o mesmo fervor, sem tocá-lo em nenhuma outra parte do corpo, garantindo que não dê sinal verde para outras coisas. Como estou em pé, ele aperta minha coxa, subindo, aproximando-me dele, e geme quando nos separamos para recobrar o ar.

Começamos a nos beijar novamente, e eu fecho os olhos. Na escuridão do meu corpo, eu me perco na sensação do beijo. A essa altura, eu já estou convencida de que vou ficar, e não estou sentindo absolutamente nada.

Nada. Percebo que isso é uma grande piada, que não sou obrigada a sentir absolutamente nada, mas é como se eu perdesse alguma coisa e prefiro sentir. Sentir dor.

Hoje não.

Quando nos separamos, ele tenta me comprar uma bebida, mas eu não quero ficar bêbada. Já consigo sentir o torpor da tequila, e não quero passar disso.

Bum, bum, bum, bum, bum...

Quer sair daqui?

—Não. —eu o beijo de novo e de novo e de novo. Eu não gosto do David. Ele não gosta de mim. Mas estamos nos beijando como se gostássemos, e é fácil fingir quando a situação não nos obriga a algum tipo de relação pessoal, ou íntima. É uma caixa vazia, em que guardamos nosso nada dentro. Quente. Álcool. Línguas, e pip, pip, pip, pip, pip, pip, são as únicas coisas que eu sinto, ou que minha mente registra porque quando você se sente vazia, há pouca diferença entre pensar e sentir. Duvido que esteja sentindo qualquer coisa.

—Dança comigo. —pede ele, insistindo. Olho para a boate, as pessoas dançando parecendo felizes, esquecendo dos seus problemas, e eu assinto, seguindo-o até a pista de dança. Nossos corpos começam a dançar em harmonia, enquanto eu deixo o bum, bum, bum, pip, pip, pip controlar meu cérebro, e os meus movimentos e o buzz na minha cabeça. Eu fecho meus olhos e danço, por ninguém, para todo mundo, com David. Ele bota a mão no meu quadril, e eu levanto meus braços, fazendo o que todos os outros estão fazendo. Eu não quero parar. Eu estou flutuando, flutuando, flutuando, voando, desintegrando.

David me beija outra vez, em meio a multidão e eu envolvo meus braços no seu pescoço. Não sei quanto tempo se passa. Alguns minutos ou meia hora, não faço a menor ideia. Mas algumas músicas eletrônicas tocam até que eu recomece a dançar, sentindo o suor começar a grudar na minha pele. Quando me viro, porém, é um balde de água fria quando sinto uma pressão. Vinda das calças dele.

Me viro, mas mantenho distância.

—Eu preciso ir no banheiro. —grito no seu ouvido, ultrapassando a música. David não gosta da ideia. Finjo um sorriso. —Eu já volto.

Ele me puxa para outro beijo, mas dessa vez, eu saio antes que ele consiga me capturar. No banheiro, eu me encaro no espelho. Sem o som consigo pensar melhor. Tem alguém vomitando em um dos banheiros, e duas garotas se beijando no canto, sem prestar atenção em mim, então fico alguns minutos me encarando, vendo meu reflexo. É tão diferente do que eu sinto por dentro. Tão esquisito. Pensar que a garota que reflete para mim é a mesma que sente as coisas que eu sinto, e ao mesmo tempo, é a mesma que estava beijando um jogador de futebol que nem sabe quem ela é faz com que eu me sinta duas. A Diana eu. E a Diana ela. A Diana Ela retoca a maquiagem e a Diana Eu é incapaz de voltar lá, com as bochechas coradas e o cabelo desgrenhado, assim como coração acelerado só de imaginar o que vai ter que fazer ou sentir quando voltar.

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Então eu não volto. Espero cinco minutos antes de sair do banheiro, e vou me escondendo atrás das pessoas até a porta de saída. Às vezes, escuto "Ei!" e posso jurar que estão me chamando, mas é uma boate grande. Eu não sou a única que David planeja jogar seus encantos. Ele é um jogador em todos os sentidos e confirmo isso quando me viro uma última vez e o vejo falando com outra garota. Só conversando, mas ela claramente flerta com ele.

Tudo bem.

O segurança da boate acena quando saio.

—Quer que eu chame um táxi, moça? —pergunta ele, na mesma hora que um homem negro que está encostado na parede fumando, me oferece um cigarro.

—Não, obrigada e não, obrigada. —respondo aos dois. Seguro minha bolsa e tiro os meus saltos, respirando fundo. Conforme a noite cai cada vez mais, a escuridão acolhendo-me, deixo aquela personalidade cair aos poucos, jogando fora a cada passo que dou. Quando estou sozinha, não preciso dela. Tenho a boa e velha Diana me esperando, a quieta, tolerante. Menos agitada. Respirações longas ajudam meu corpo a se acalmar, adaptando-se ao ar fresco e eu faço meu caminho até a casa de Becker, onde disse aos meus pais que ia ficar.

A imagem de David beijando-me vem a mente. Não me sinto nem um pouco culpada por ter saído de lá, mas não posso deixar de pensar em perspectivas diferentes. O que aconteceria se eu ficasse? Ou se contasse que eu, na verdade, estudo na mesma escola que ele? Se ele não me notou até agora, algo iria mudar?

Isso não é um filme. Não quero que seja. Quero esquecer isso e pensar em outra coisa antes que o arrependimento me atinja, e eu morra pensando que vir a essa boate foi a pior escolha da minha vida.

Pare de reclamar, Vivian aparece, repreendendo-me.

Pare de me incomodar, Vivian. Você é uma hipócrita e uma mentirosa e eu não preciso ouvir você hoje. Não agora. Nem nunca.

Ao invés de responder, ela me lança um poema. Eu sei que é minha mente falando, não Vivian— porém a sensação é real. Ela sempre soube o que dizer, o que ensinar e na hora certa. É Anne Sexton. Eu sei que o poema se chama Anna Who Was Mad, mas não lembro dele inteiro. Só pequenos fragmentos, os mais importantes. As perguntas.

Eu sou um tipo de infecção?

Eu fiz você ficar louca?

Eu tornei os sons amargos?

E o sofrimento é familiar, a última parte.

Diga que eu não o fiz.

Diga que não.

Diga.

Não termina aí, mas é o que lembro. É o que me marcou o suficiente para que eu continue com ele na mente.

Você me deixou louca, digo à ela.

Por meio segundo, entendo Ian. Entendo como devia ser viver com alguém que não parece genuíno na maior parte do tempo, confuso ou egoísta.

Estou tão furiosa. Comigo. Com ela. Com Ian e o mundo. Por ser cruel, por dá-la razões para morrer, por tudo. Pensar em todos aqueles livros, todas aquelas histórias e todo o vazio que eles deixaram depois que ela se foi é veneno que eu tomo a cada inspiração. Toda a história que ela mesma escreve mesmo depois de morta, nos levando para todos esses lugares.

A última estrofe de Anna Who Was Mad se forma na minha mente, conforme vou recobrando a memória meio afetada pela tequila.

Anne diz, eu fiz você ficar louca?

Do túmulo, escreva-me Anna!

Você não é nada além de cinzas, todavia

Pegue a caneta Parker que eu lhe dei.

Escreva-me.

Escreva.