Os Lordes de Ferro

Capítulo 22 – O quadridemos


Já havia dois dias que o pequeno grupo de aventureiros cavalgava em direção a Brackens. Yhago tomava a frente, trotando de leve, enquanto que sara e Keddy vinham uma dezena de metros atrás. Nenhuma das duas tinha qualquer conhecimento de monta e portanto os cavalos delas simplesmente tentavam seguir o ritmo que Yhago impunha ao seu próprio corcel.

De tempos em tempos o guerreiro parava e abria mais uma vez a caixa da joia-bússola para garantir que estavam na rota certa.

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— É uma pena que este GPS não indica nada além da direção. Nada de distância ou mapas. Meu medo é esbaramos num desfiladeiro ou coisa assim. – disse o guerreiro aproveitando a sombra de um pé de amoras.

— Tenho certeza que você está fazendo um ótimo trabalho em nos levar Yhago. Eu confio em você. Sei que está fazendo o seu melhor. – disse Sara tentando animar o amigo. Yhago sorriu de leve. Queria ele mesmo ter essa confiança toda em suas próprias habilidades. Mesmo assim ele sentiu-se revigorado.

— Mestre Yhago – disse Keddy com timidez – aquelas nuvens ali... – disse a menina apontando para uma profusão de nuvens negras que se aproximava velozmente pelo sul.

— Um elemental das tempestades. Que azar! – praguejou Hyago enquanto manejava seu cavalo para emparelhar com o das meninas. Assim que ele fez isso deu a cada uma uma ponta de corda – Amarrem nos arreios dos cavalos de vocês. Rápido. Precisamos sair daqui o quanto antes. Precisamos de abrigo. E logo.

Sara não entendia porque os dois estavam naquela urgência toda afinal ela mesma já tinha tomado algumas chuvas a caminho do Valparaíso de Goiás. As ruas viravam verdadeiras corredeiras e os relâmpagos rasgavam o céu, mas ela nunca viu nada parecido com a preocupação dos dois.

Longe dali, nas terras do reino das Águas Claras, uma figura pouco decidida avançava sobre as ruas da cidade baixa. O homem franzino e de aparência frágil carregava na sua cintura uma espada média, bastante afiada e de cabo firme. Por cima de tudo uma capa com capuz marrom tentava esconder as feições preocupadas de seu rosto e de suas vestes. Ele tinha de ser o mais discreto possível, como tinha sido instruído. Não apenas a sua missão, mas provavelmente a sua vida dependiam disso.

Ele virou a rua em direção à rampa que dava acesso aos níveis ainda mais baixos da cidade. Mesmo a espada oleada não servia para lhe dar qualquer sensação de proteção. Mesmo porque ele não era um espadachim. Apenas um mensageiro, um funcionário menor que por um capricho do destino foi amaldiçoado com uma missão tão perigosa.

Por fim ele achou a taverna da forma que foi descrita: uma casa de alvenaria simples, com teto em péssimas condições. Paredes que um dia foram da cor de uma abóbora madura. Na placa deve dizer, em idioma antigo, a última casa filial.

“É agora, Cordov”, pensou para si mesmo como forma de se encorajar. Ele agarrou a maçaneta da porta e a abriu. O rangido da porta foi tão discreto quanto o um gato que estava dormindo e é acordado com uma roda de carroça passando pelo seu rabo.

A taverna estava vazia. Mesmo para uma espelunca daquela categoria deveria haver pelo menos dois ou três bêbados, encharcados demais em álcool para se moverem. Mas nem isso. O salão amplo era um arremedo de taverna. Não aprecia ter quartos para alugar e nem mesmo uma cozinha ou dispensa. As bebidas estavam dispostas atrás do balcão, que ia de fora a fora na parede dos fundos. “É o que os plebeus chamam de bar”, pensou Cordov antes de sacar um lenço de seda draconiana e tentar tapar o fedor de bebida vagabunda, vômito, sangue e suor, que parecia impregnar cada centímetro quadrado daquele lugar. Uma lareira que ardia num canto e meia dúzia de tochas era toda a iluminação do lugar. Cordov sentiu aguma coisa roçar-lhe a perna e viu de relance uma ratazana gorda catar alguma coisa do chão e se esconder entre as tábuas mal encaixadas do assoalho manchado de cores e marcas que ele não se atrevia a pensar sobre. Se sobrevivesse, prometeu a si mesmo, queimaria aquelas roupas e tomaria tantos banhos quanto pudesse.

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Por fim divisou um homem de meia idade vestindo um avental igualmente manchado. Pensando bem, até combinava com as cores sujas do chão. Ele estava no final do balcão, passando um pano de cor de terra em alguns copos que respingavam de água. Cordov fez a si mesmo uma nota mental de não beber nada dali, jamais.

— Bom dia senhor. Estou procurando por um grupo de pessoas especiais a que eu vim encontrar em seu estabelecimento. – tentou dizer o mensageiro sem que as palavras soltassem de sua boca direito para a gagueira nervosa. O homem, no entanto, reservou-se a continuar seu tedioso serviço.

Foi então que ele viu. A sombra de uma das mesas começou a girar em torno dela, como se alguém estivesse mudando o foco da luz. Mas além de Cordov e do taberneiro silencioso não havia ninguém ali. A sombra continuou girando em volta da mesa, ficando cada vez maior e cobrindo cada vez mais áreas. Era como se fosse um farol girando na beira da costa, mas que projetava escuridão ao invés de luz. Numa de suas voltas ele descobriu uma mesa e lá estavam os quatro que Cordov deveria encontrar. O infame grupo de assassinos de elite chamados de Quadridemos.

— Os senhores são os quadridemos? – perguntou o mensageiro, reunindo naquela frase toda a coragem que lhe restara. – Eu vim em nome do Lorde...

— Sabemos quem é você para quem você trabalha, pequeno verme. – a voz veio de um dos homens que tinha um tapa-olho cobrindo o olho esquerdo e carregava um pesado tridente. – Estávamos esperando você desde que seu mestre contatou um de nossos agentes.

— Afinal como você acha que conseguiu chegar até aqui sem que nenhum bandidinho de meia tigela lhe cortasse a garganta e roubasse até os dentes de sua boca? – perguntou uma mulher de pele negra e cabelos compridos e lisos. A escuridão parecia emanar dela, se é que isso fosse possível.

— Então os senhores sabem que eu trago um alvo para ser assassinado... – disse Cordov colocando um saco cheio de barras de ouro sobre uma das mesas vazias. A menina negra que tinha acabado de falar ficou completamente tomada pelas sombras e deslizou como se fosse feita de tinta negra pelo chão. A mancha sequiosa subiu pela cadeira, engolfando tudo como se fosse um câncer. A mancha deixou a cadeira, levando consigo o outro e o resto da coragem de Cordov.

— Ah, esse mensageiro é mais esperto que os outros. – exclamou uma menina gorducha e alta de cabelos encaracolados e olhos bem claros, encostada no ombro de uma outra mulher, sendo que esta também tinha cabelos encaracolados e olhos claros, mas era baixinha e magra.

— Quem devemos matar? – perguntou a menina sombra.

— Vocês devem matar...

A caverna foi um golpe de sorte de primeira linha. Escavada de forma natural numa encosta escapada era quase impossível vê-la da escada, mas apenas os doze divinos sabiam como Kaddy a tinha visto lá de cima. Com maestria Hyago levou a todos para dentro da caverna, bem a tempo da chuva começar. Lá fora o vento rugia e raios cortavam o céu, precipitando-se sobre a terra tal como se fossem os raios que chovessem. Era uma verdadeira sinfonia de devastação lá fora. Nenhum dos três amigos teve dúvida que achar aquela caverna tinha lhes salvado a vida.

- Bom trabalho Keddy – disse Hyago acendendo duas tochas e colocando as duas para queimar no meio daquela gruta natural. Com a iluminação vinda das tochas todos perceberam que a gruta não apenas era bem maior do que parecia, mas que ali havia alguns postes de amarrar cavalos. Mais ao fundo um bebedouro vazio e restos de uma baia.

— Mas que diabos...? – perguntou Sara, espantada.

— Prece que além da sorte grande de nos proteger da tempestade também encontramos um antigo fortim de guerra anão. – disse Hyago acendendo uma terceira tocha e entregando a Sara, enquanto Keddy já segurava as outras duas. Em meio a expressão de espanto das duas Hyago começou a explicar enquanto vagava pelos limites da caverna procurando alguma coisa. – Durante o período do Rei Kurbis, logo depois da criação da cidade de Marfim, um grupo descontente de anões resolveu atacar os reinos. Foi uma sangrenta guerra entre humanos e anões. É dito que os anões construíram muitos desses fortes para atacar as cidades e desaparecer no meio da noite. Eu já li muito a respeito, mas nunca tinha entrado num deles.

— Você leu a respeito? Onde? Vai me dizer que este lugar tem bibliotecas públicas... – perguntou Sara seguindo a passos curtos e de vez em quando olhando para o lado de fora da caverna, onde o armagedon parecia estar chegado a passos largos. Como ela odiava relâmpagos.

- Públicas não. Mas eu trabalhei dois anos como guarda-costas de uma família rica em Águas Claras. Quando não estava impedindo que a filha deles se metesse em confusão eu ficava na biblioteca deles, fuçando.

— O senhor saber ler traços? – perguntou Keddy, maravilhada – Sabe traçar sons também?

— “Traçar sons”? Ah, escrever: claro. O que você quer que eu escreva?

— Escreva meu nome, se não for pedir muito. Ah, eu sempre quis saber traçar sons! E depois ler os traços... – disse a menina subitamente tomada por uma torrente de sentimentos nostálgicos.

Hyago pegou um pedaço de madeira do chão e queimou lhe a ponta com a tocha. Depois esfregou a ponta na parede, deixando uma trilha carvão queimada. Então ele começou a soletrar letra por letra do nome da amiga, letra por letra, até terminar. Keddy olhava maravilhada para o desenho.

Já Sara estava exasperada. Desde que entraram na caverna os dois companheiros pareciam muito entrosados. Não... Antes disso ainda. Foi Keddy que avisou da tempestade. Foi ela que achou a caverna. E como ela estava recebendo atenção do Hyago... Claro, ela também estava correspondendo o que deixava Sara ainda mais irritada. Na mente dela surgiu a frase, como se fosse um meme zombeteiro: “é ciúmes que chama, né não?” Sara riu baixinho e sarcasticamente, encostando na parede, apenas para cair por dentro de uma porta falsa. Ao ouvir o barulho Hyago virou-se.

— Bom trabalho Sara... como sabia que a entrada do forte era ali?

— Sorte, eu acho – disse a menina alisando sua bunda que estava um pouco dolorida da pancada.

— Vamos verificar e ver se tem alguma coisa de valor. Artefatos da guerra dos anões valem um bom preço no mercado de antiguidades de Águas Claras.

O grupo desbancou num salão ovalado com cinco portas. Uma delas era uma espécie de cozinha, abandonada a muito. A do lado parecia uma sala de guerra. As outras eram quartos. O grupo passou algumas horas procurando algo de valor, mas nada foi encontrado.

— Parece um bom lugar para dormir. Eu fico com esse quarto aqui. Keddy e Sara ficam com o da frente. Mantenham a porta fechada, meninas. Eu as acordo para o café da manhã. – silenciosamente Sara concordou, praticamente empurrando Keddy para seu quarto designado. A cama de pedra era pequena, mas as peles que a cobriam ainda mantinham maciez o bastante. Ela tirou toda roupa enquanto Keddy disponha as bagagens que carregava num canto.

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— Hoje a noite a senhora não me escapa... – disse a menina enrolando a oura na sua capa de zibelina.

— E quem disse que eu quero escapar de vosso julgo, senhora? Faça comigo o que desejar... – respondeu Keddy com um meio sorriso no rosto.

Hyago por sua vez tinha fechado a porta o melhor que podia. Ele não tinha mostrado para as meninas, mas tinha achado um item incomum. Algo que merecia sua atenção e acima de tudo a sua discrição.

Lá fora, em Águas Claras, Cordov voltou á cidade alta. Sentiu-se aliviado por estar de volta ao seu habitat natural, mesmo que ali ele fosse apenas mais um peão descartável. Deu boa graça pela sua sorte e pôs-se a caminho da mansão que servia como mensageiro. Só uma coisa lhe intrigava. Que crime aquele homem tinha cometido para merecer que os quatro grandes assassinos do mundo estivesses a sua procura? Que os doze divinos tivesse piedade da alma daquele guerreiro...