''O valente Gryffindor das charnecas...''

Godric Gryffindor andava bem devagar.
Naquele momento, é claro, Godric andava devagar. Com cuidado, olhando onde pisava, uma mão segurando a bainha da espada e a outra apertando a varinha nos dedos trêmulos. A luz da lua contornava seu corpo e jogava sua sombra no chão. Num outro dia qualquer, ele estaria com a janela do quarto aberta para admirar a imensidão do céu estrelado com um sorriso.
Mas aquele não era um dia qualquer.
Godric era bom em primeiras vezes: a primeira vez que beijou uma menina foi aos treze anos e ela gostou, apesar de ter sido desafiado pelos amigos. A primeira vez que lançou um feitiço fez fagulhas coloridas subirem no ar e explodirem no céu alegremente. Na primeira vez que treinou com uma espada, ele derrotou um homem com vinte anos de experiência. Na primeira vez que lutou num duelo ele terminou vencedor. Na primeira vez que discutiu com seu pai, ele conseguiu o que queria. Enfim, Godric era um homem de primeiras vezes e em todas elas ele se dava bem. Era de primeiras vezes pois era, acima de tudo, um homem de coragem. Uma coragem insanamente alta, o que o tornava quase estúpido, como seu amigo Salazar bem gostava de pontuar.
Godric Gryffindor era um homem de coragem e primeiras vezes, por isso era de se esperar que ele tivesse sorte com seu primeiro - e único - noivado.
Mas há uma primeira vez para tudo, até para o azar.
Seraphine Lavey era bonita. Ela tinha cabelos negros e olhos muito azuis, mas apesar de ser bonita, ela tinha um rosto que te fazia pensar duas vezes. Isso se devia a carranca arrogante que quase sempre Seraphine levava consigo. E é aí que o problema começa.
Seraphine era a filha única de um comerciante local, comerciante esse que era bastante rico pois vendia tanto para trouxas quanto para bruxos. Seraphine, por sua vez, era bruxa. E sendo filha única de um comerciante, tudo o que ela queria, ela tinha. Bastava dizer. Às vezes duas vezes, a maioria uma e nunca três. E Seraphine queria Godric desde que pusera os olhos nele, aos oito anos de idade, quando ele a salvou de despencar de um penhasco com um feitiço. Ainda que ela tivesse um noivo, era atrás de Godric que Seraphine ficava. E o queria tanto - obcecadamente - que acabou conseguindo: fez seu pai desmanchar o noivado com Matthew Parkinson e negociar a mão de Seraphine com Gandriel Gryffindor, o pai dele.
Godric não conseguia acreditar. Achava que Lavey e Parkinson eram um bom casal, sendo ambos desagradáveis e mimados. Achava, também, que seu pai riria da proposta e negaria, mas não: Gandriel não só aceitou, como achou um absurdo Godric detestar a ideia.
E, ah, como Godric detestava.
Por meses a fio tentou destruir o noivado de todas as maneiras que pudesse imaginar: fingiu estar apaixonado por Helga Hufflepuff: não deu certo. Fingiu ser uma pessoa odiosa: não deu certo. Foi grosseiro com Seraphine: não deu certo. Deu um escândalo: não deu certo. Fingiu que não conseguia treinar com a espada pois estava triste demais: não deu certo. Transou com outras mulheres e deixou Seraphine saber: não deu certo.
Gandriel fora categórico:
— Você vai se casar, não importa o que aconteça. Eu também não gostava da sua mãe, mas me casei, pois era o que eu tinha que fazer. Acabei me apaixonando, eh? Você vai se casar, Godric. É minha última palavra.
Mas há uma primeira vez para tudo, então Godric decidiu fugir. Decidiu não encarar seu destino.
Então, lá estava ele: fugindo, pela primeira vez, a passos lentos e cuidadosos, de cabeça baixa para que ninguém visse seu rosto. Para que ninguém o reconhecesse.
— Onde você vai, Gryffindor?
Ele parou, imóvel, o coração batendo com força contra o peito. Ambas as mãos tremiam e ele tentava decidir se puxava sua espada ou a varinha. Lentamente, então, se virou.
Era só Salazar! Ali, Salazar Slytherin, seu grande amigo!
Tremendo e rindo, Godric cruzou o espaço que havia entre eles e abraçou o homem com tanta força que o tirou do chão. Salazar ficou imóvel, se limitando a dar palmadinhas nas costas de Godric e o empurrando em seguida, arreganhando os dentes numa tentativa de sorriso.
— O que você faz aqui? — Murmurou Godric, olhando para os lados.
— O que você faz aqui, no meio da noite? E por que está sussurrando?
— Estou fugindo. — Confidenciou o outro.
Salazar riu com gosto, em alto e bom som. Godric pulou para a frente e colocou a palma da mão grande na boca dele, olhando ao redor freneticamente.
— Fugindo do que? Você não sabe fugir. — Comentou Salazar com uma expressão debochada. — Está fazendo o maior barulho com esses passos pesados de centauro.
— Meu pai está me obrigando a casar! Com aquela garota Lavey, se lembra dela? — Godric estava apavorado que alguém pudesse ouvi-los, falava sussurrando enquanto Salazar mantinha o tom de voz alto. Quando mencionou o sobrenome de Seraphine, uma sombra de entendimento passou pelos olhos do amigo.
— Ora, vamos, então. Vamos sumir logo daqui. — Slytherin deu as costas e agarrou o braço de Godric, puxando-o consigo. — Veja, imite meus passos.
Godric tentava pisar na grama fofa da mesma maneira que o outro, mas era evidente que não conseguia. Achava que estava se saindo bem antes, mas ao ver Salazar praticamente deslizar como uma cobra pela noite, ele percebeu que realmente não sabia fugir. Eles caminharam por dez minutos em silêncio e quando pegaram uma distância razoável do vilarejo Hollow - onde Godric nascera e fora criado - Salazar parou. Começou a rir outra vez, fazendo Godric o olhar sem entender: ele não era uma pessoa de riso fácil.
— Você adoeceu? — Perguntou com sinceridade.
— Godric, Godric, Godric... — Ele balançou a cabeça e puxou a varinha das vestes, apontando para as botas de Godric. — Silencio.
— Estava usando um feitiço esse tempo inteiro? — Chocou-se ele. — Desgraçado!
— Me chame de desgraçado mais uma vez, só mais uma vez, eu imploro... — Retrucou Salazar, erguendo o queixo.
— Desgra-
— Lançarei um feitiço que te levará carregado por uma nuvem até a residência Lavey.
Godric fechou a boca e Salazar sorriu, vitorioso. Deu as costas e sinalizou para que o outro o seguisse. Voltaram para a longa caminhada, adentrando cada vez mais na mata que serpenteava ao redor de Hollow. Ele não fazia ideia de onde estavam indo, mas manteve a varinha e a espada prontas para qualquer coisa. Salazar continuou caminhando em sua frente, o guiando em silêncio. Godric o analisou: só portava sua varinha. Nem mesmo Saeth, sua cobra, estava com ele. Nem pendurada em seus ombros e nem no chão ao seu lado. Franziu a testa, pois Salazar jamais se separava da cobra de estimação, pelo menos não por muito tempo nem por longas distâncias.
Virou o pescoço para checar: as árvores já estavam tão juntas que ele mal conseguia ver as casas agrupadas que formavam Hollow, e se tranquilizou por saber que havia conseguido se distanciar. Precisavam, agora, aparatar para mais longe, pois seu pai tinha sono leve e podia perceber que tinha sumido. Se o velho Gryffindor se levantasse naquele minuto e fosse atrás dele, estava ferrado: Gandriel dificilmente errava em rastrear seu filho.
— Onde nós estamos indo? — Perguntou ele, após trinta minutos andando.
Salazar continuou caminhando e não se virou para responder.
— Até o acampamento que montei com Helga.
— Helga? Helga? Que Helga?
Ele se virou.
— Que Helga, seu idiota? Adivinhe!
— Helga Hufflepuff? — Sorriu, gostando da novidade.
— Sim. — Resmungou o outro, tornando a caminhar e afastando o matagal fechado com um aceno de varinha.
— E o que estão fazendo acampando bem aqui?
— Helga tem um plano brilhante! — Salazar respondeu num tom azedo. — E ela quer falar com você sobre ele. Estávamos vindo, mas o sol começou a ir embora e ela insistiu que não continuássemos andando a noite. Rowena Ravenclaw, a bruxa escocesa, veio conosco. Estão dormindo. — Ele ergueu a varinha e a agitou, fazendo uma ponte com raízes para atravessarem o rio cheio que cortava a floresta. — Eu não estava com sono e quanto antes falássemos com você, melhor. Deixei Saeth de guarda e estava indo para a sua casa.
Eles atravessaram a ponte e Salazar a desfez.
— Devia ter deixado a ponte, muitas pessoas passam por aqui e-
— Sim, Godric, sim! — Exclamou, erguendo as mãos. — Devíamos ter deixado a ponte, a ponte que você usou para fugir, e entregar sua direção no colo de Gandriel e Lavey, não?
Godric riu.
— Você está certo. E então ia entrar na minha casa no meio da noite?
— Sim. Você não faz ideia. Helga não nos deixa usar nenhum meio de locomoção além dos pés e estamos andando há dias. Dias! E elas estão tão empolgadas que não ficam quietas um minuto! Eu precisava de você. — Salazar contou, enquanto gesticulava sem parar com as mãos.
— Estou tocado.
Salazar pareceu - ou fingiu - não ouvir a resposta de Godric.
— Acho que fazem mais ou menos umas três semanas que estamos viajando. Helga insiste em andar a maior parte do tempo pois assim consegue continuar sua pesquisa de herbologia. Eu a admiro ao mesmo tempo que me irrito.
— Helga é especial. — Disse, com um sorriso.
— Ela é. Veja, estamos perto. — Apontou para algo no chão, mas Godric não entendeu.
— O que é isso?
— Vê onde a grama está torcida? É por onde Saeth passou. — Ele voltou a andar com Godric em seu encalço. Quinze minutos mais tarde precisaram acender suas varinhas, pois as copas das árvores eram tão juntas que a lua grande e iluminada não conseguia atravessar sua luz. Por fim, uma hora e meia andando ao todo, chegaram numa pequena tenda, onde panos eram sustentados por magia e duas mulheres dormiam em cima de grossos cobertores. Aos pés delas, uma cobra enorme sibilava.
— Precisamos acordá-las. — Murmurou Godric. — Precisamos nos distanciar daqui.
— Eu sei. — Salazar abanou a mão e dirigiu-se primeiro a uma mulher de cabelos negros que Godric não conhecia.
Ela dormia encolhida, com o rosto sereno e impassível. Era linda, linda de uma maneira que ele não podia descrever. Os cabelos muito pretos desciam em ondas por suas costas, seus lábios eram avermelhados e brilhavam na pele alva. Ela dormia usando um dos braços de apoio, e a observando, Godric pensou que não se importaria de dormir em cima de pedregulhos se isso a deixasse confortável.
— Ravenclaw... — Murmurou Salazar, dando toques suaves em seu ombro. Ela despertou, com os olhos arregalados e agarrando sua varinha.
— Você me assustou! — Respondeu ela, com a voz rouca. Esfregou o rosto e se sentou, dobrando as pernas para dentro do longo vestido azul que usava. Fitou Godric, dando-lhe a chance de apreciar os belos azuis cristalinos em seus olhos, que se contrastavam ainda mais com seu vestido.
— Desculpe.
Godric ainda encarava a mulher, fazendo-a corar.
— Helga... — Sussurou Salazar, passando a mão delicadamente nas costas de Helga. Ela também não demorou para acordar e abriu os olhos, sentando-se lentamente e bocejando enquanto esticava os braços. Os olhos preguiçosos varreram a área e quando ela percebeu Godric, abriu o sorriso largo e amável que costumava dar a ele.
— Olá, Godric. Parece que Salazar não é inclinado à paciência, não?
Ele sorriu em resposta.
— Não, ele não é. Muito bom vê-la, Helga. Estava sumida. — Comentou Godric, vendo Salazar ajudá-la a se levantar. Mais do que rapidamente, ele cruzou o espaço entre a outra mulher e se abaixou, estendendo a mão para ela. — Godric Gryffindor. — Se apresentou, a palma da mão aberta e abaixado na altura dela.
— Rowena Ravenclaw. — Ela respondeu, depositando a mão pequena e macia em cima da dele. Godric a beijou levemente, puxando-a com delicadeza em seguida. Já em pé, sorriu.
— Encantado.
Rowena sorriu também.
— Minha doce Helga, infelizmente precisamos ir embora. — Disse Salazar, apontando a varinha para a tenda. Os panos e cobertores se enrolaram no ar e pularam para dentro de uma pequena bolsinha presa na cintura de Helga, que com certeza tinha um feitiço de extensão. Salazar olhou para a sua cobra e começou a fazer os sons esquisitos que costumava fazer e Godric sabia que estava se comunicando com ela. Em resposta, a cobra bateu a língua e deslizou pelas pernas de Salazar, subindo até se apoiar em seu ombro.
— Precisamos? — Perguntou Helga, os olhando confusa. — O que vocês dois fizeram? — Pousou as mãos na cintura, pronta para uma bronca.
— Nada. — Godric sorriu amarelo. — Salazar, sei para onde podemos ir. Tem uma estalagem em Londres, podemos passar a noite lá.
— Não vou para a cidade. — Ele fechou a cara. — É imundo. Cheio de doenças!
— Só por hoje, Salazar. — Godric o encarou com seriedade. — Não pode mandar em tudo.
— E nem você!
— Pelo menos eu tenho uma ideia! — Retrucou, as sobrancelhas se unindo numa expressão de desagrado.
— Se você não estivesse fugindo... — Começou Salazar com a voz mais alta.
Fugindo? — Helga arregalou os olhos e os dois se viraram para ela, percebendo o erro.
— Não podemos aparatar para tão longe, é perigoso! — Argumentou Godric, ignorando a expressão de choque de Helga. — Vamos para Londres, só por hoje.
Salazar bufou e segurou a mão de Helga e de Rowena.
— Saeth não gosta disso.
Godric segurou a outra mão de cada uma, sorrindo com sarcasmo.
— Que pena.
E aparataram.