[Luahn]

— LUAHN! NÃO! PARE!

A frase gritada e desesperada surgiu de repente no meio da escuridão. Instantaneamente, senti medo e uma vontade enorme de entender o que eu não devia fazer, mas tudo que eu enxergava era um ambiente escuro, sem sensações, sem nada mais. Então experimentei um gosto metálico na boca, gosto de sangue que me fez cuspir, e subitamente ouvi um urro de mim, de minha própria garganta, depois minha visão despertou para a realidade...

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Ao meu redor a neblina na noite escondia os detalhes, mas estava na estrada de terra. Ouvi homens gritando, alguns lutavam contra um adversário distante de mim, e o cavalo branco de Mejem se afastava com um ferimento fresco e manchado de vermelho na coxa. Tive o impulso de segui-lo, mas parei a mim mesmo, também sentindo um puxão no pescoço. Ao me virar, vi que estava laçado por uma corda e enroscado nela estava meu mestre feiticeiro, sujo de sangue nos braços e nas mãos, incrivelmente nervoso para um homem de idade e que já viu quase de tudo. O encarei, observando como ele era pequeno naquela situação que eu desconhecia completamente.

—... Você voltou? — sussurrou, encarando-me com certo temor e sem nenhum movimento brusco. Em resposta, apenas movi a cabeça de leve, confuso demais sobre o que estava acontecendo para pronunciar alguma palavra.

O homem soltou um suspiro e largou a corda, movendo-se rapidamente ao pegar a haste de uma lança cravada em mim e arrancá-la numa puxada. Eu senti a dor e urrei, me afastando dele. Foi aí que notei que meu corpo era pesado, grande, peludo, armado com garras e dentes e eu estava de quatro, sem roupa alguma. Eu era um animal completo. Não sabendo o quanto de estrago causei até ali.

— Mejem! Por favor! Ajude-o! — um homem dos Peregrinos gritou, indicando alguém caído.

Apesar de ouvi-lo, o feiticeiro virou-se para mim:

— O carregamento escapou, Luahn! Traga-o antes que isto tudo tenha sido em vão! Havia olheiros na floresta e não os surpreendemos. A carroça principal fugiu, mas graças a você impedimos a grande maioria dos homens dos mercadores. Apesar de que tivemos perdas também... Isso ainda não acabou. — A cabeça dele tinha o tamanho de uma tigela, ao ficar na minha frente para ter minha atenção, poderia desfigurá-lo com uma mordida... Se quisesse. — E eu tive que cravar isso em você. — Tocou-me exatamente sobre um ponto que estava coçando próximo do meu pescoço. — Não tem como você perder o pingente agora. Por enquanto, esse é o seu corpo e vai ter usá-lo para buscar o carregamento. Vá e volte logo...

— Mejem! — o homem chamou-o, mais tenso.

— E você não precisava ter mordido meu cavalo. Garoto mal! — se afastou. — Vá Luahn!

Ele apontou a estrada e eu fui. Correndo como um cão na noite de lua cheia e neblina, sentido o pavimento da estrada macio demais em baixo do meu peso, engolido litros de ar quando comecei a sentir os efeitos da atividade agitada e necessária para alcançá-los o quanto antes.

Eu não era mais humano e nem pensava da mesma forma, mas estava consciente e no controle. O fragmento de pedra incrustado na minha pele foi capaz disso, mas coçava como uma pulga esfomeada que eu não podia tirar. Apesar do novo corpo anormal, lupino e gigante, não me sentia desconfortável ou sem habilidade com ele, era como se eu já o conhecesse. E meus pensamentos, que quando humano estavam indo e vindo e se sobrepondo entre memórias, conhecimentos e questionamentos, agora pareciam um rio fluindo em uma direção, focado em alcançar a carroça com o tesouro e levá-la para onde o grupo de Peregrinos estava. Era como confiar que depois disso poderia pensar na próxima coisa, uma por vez.

A estrada estava ofuscada pela neblina, contudo, em certo momento, pude ouvir o bufar do cavalo e os estalos do chicote que o fazia não parar de correr. Logo, defini os contornos da carroça, ela não tinha mais sua cobertura e rangia ao continuar em frente em sua velocidade máxima.

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— Está aqui! Mais rápido! A Besta está aqui! — um homem gritou do meio do vulto que ia à minha frente.

Pude sentir o cheiro do medo deles se intensificar instantaneamente. Mais que o pobre cavalo, os homens suavam pelo pavor. Eu sabia que eram dois, provavelmente os mais covardes do grupo que escolheram fugir ao invés de lutar. Um deles guiava o veículo e empunhava o chicote, o outro estava na parte de trás pela voz, e foi do ultimo que veio um zumbido que passou pela minha orelha esquerda, cortando-a de leve. Rosnei, mas outra flecha voou, passando dessa vez bem mais longe do meu corpo. Duas ou três passadas mais determinadas me deixaram a menos de três metros da carroça que balançava e rangia de muitas formas. O homem de trás gritou ao me olhar cara a cara, tremendo, empalidecendo e ajoelhado na parte de trás com supus, tudo que tinha em mãos era um arco vazio.

O condutor deu uma olhada sobre o ombro e xingou, espantado e apavorado, mas ainda com esperança de fugir. Ele puxou as rédeas para um lado, fazendo o fadigado cavalo tentar um ziguezague para evitar o salto que eu já estava pensando em fazer. Era inútil. Rapidamente calculei o movimento da carroça na estrada e me preparei para o impulso. Um salto sobre eles com uma certeza de predador e toda a estrutura de madeira se estilhaçou quando cai sobre ela, parando imediatamente. Apesar de sofrer com a parada brusca, o cavalo se desprendeu e seguiu galopando rápido, livre das chibatas dos humanos.

A próxima coisa que notei, foi um dos homens que saiu de debaixo de mim, mais na parte de trás. Ele rapidamente pegou um dos pedaços de madeira pontudo e fincou-a na minha coxa antes de sair correndo desesperado em direção à floresta. Doeu bastante, e se fosse um pouco mais para um lado ele poderia acertar um lugar muito inapropriado. Ele me irritou o suficiente para que eu ficasse de pé e também pegasse um pedaço grosso de madeira para jogar em cima dele. O humano era pequeno e minha força foi maior do que teria imaginado, mas acertei-o, o derrubando para nunca mais se levantar. Com a vitória, brotou uma vontade de dizer a todos que eu era o mais forte, e desse pensamento passageiro, sem meu controle, nasceu um uivo alto e longo, que deixou meu corpo energizado para lutar outra vez!

Mais a frente, além dos destroços da carroça, algo caído na estrada levantou-se e ficou de quatro, imóvel e me encarando. Instintivamente fixei meu olhar nele, abaixando-me de vagar para que pudesse persegui-lo assim que saísse correndo. Contudo, percebi que aquilo era um instinto de caça. Algo desnecessário, pois já tinha o que queria comigo. Forcei-me a negar o que meu corpo queria e ignorei o homem, olhando os destroços em baixo de mim.

Ao revirar os restos da carroça, achei dois baús de tamanhos diferentes escondidos em baixo de um pano grosso. Os coloquei sobre um mesmo tecido grosso, fazendo uma bolsa e os levei para onde Mejem estava. Os dois eram pesados, mas pude carregá-los sem arrastar. Contudo, talvez para os humanos, seria preciso dois ou mais para carregar o menor.

...

Homens puxavam corpos para a floresta, tirando-os da estrada, e outros pararam para me olhar com desconfiança ao me aproximar. Segui andando em direção a Mejem. O feiticeiro estava reunido com um pequeno grupo de feridos, aparentemente cansado. Soltei o saco perto, o baque fez todos olharem, até mesmo um dos feridos que estava em repouso ergueu a cabeça. Com um claro suspiro aliviado, meu Mestre sorriu e me olhou, relaxando os ombros:

— Você conseguiu. — Foi tudo o que me disse e foi até um homem sentado, com uma faixa enrolada na cabeça, lhe dizendo: — Mercel recuperamos seu tesouro.

O chefe levantou o rosto, me observando:

— Você é muito amaldiçoado garoto... Tão jovem e uma vida toda bagunçada assim... Não vai viver muito — Riu, meio tonto, e fez um sinal com a mão para alguns homens, dois ou três vieram para os baús, verificando-os e tentando abri-los.

O baú menor abriu-se facilmente, pois já estava meio rachado, mas o outro parecia mais resistente e bem fechado. Assisti o trio tentar o que podiam para abri-lo até que me aproximei. O cadeado, que caberia numa mão humana, era pequeno pra mim e com um puxão controlado fiz o metal soltar-se da madeira. Algo em mim ficou feliz ao vê-los revirar as coisas, admirando as relíquias da cultura deles, satisfeitos em verificar os itens e tê-los de volta.

— Você! Criatura! — uma voz feminina e brava disse. E, a certa distancia de mim, encontrei uma mulher, não muito fácil de distinguir pelas roupas dos peregrinos serem muito parecidas. Ela tremia, mas me encarava séria e segurando uma espada larga. — Onde está o Will?!

No mesmo momento que ela disse seu nome meus pelos se eriçaram de preocupação. Era inevitável ficar tenso ao perceber que o único que estava comigo desapareceu e eu só voltei a mim quando já era um monstro-lobo e já tinha feito coisas. Olhei a estrada, tentando me lembrar de algo, mas apenas vi poucos flashes na memória. Ele tinha corrido na minha frente e eu o seguia, mas não podia diferenciar se eu ainda era eu ou estava o caçando-o como um monstro. De repente, senti seu cheiro no ar, apesar de não ideia de como podia identificar isso, e levantei mais o focinho.

— Hey! — a mulher gritou, quando caminhei para a direção do rastro.

“Ele está por aqui” quis dizer, mas meus sons eram mesmo iguais a um monstro murmurando curtos rosnados e imitando os sons das palavras. Logo, invadindo a floresta, encontramos o rapaz sentado atrás de uma moita de olhos fechados e corpo solto. Ela foi correndo até ele, preocupada:

— WILL?! Você está bem? — Ele acordou assim que a ouviu e aceitou o abraço que ela lhe deu.

— Estou por enquanto... Acho que enfrentei alguém com algo na lâmina... Meu corpo está ficando dormente — contou e mostrou um corte no braço.

— Veneno? — murmurou ela, assustada. — Vou chamar o feiticeiro! — e saiu correndo.

“O que aconteceu?” quis dizer, mas novamente balbuciando rosnadinhos em tons parecidos as verdadeiras palavras humanas. Will sorriu, achando graça.

— ‘O que aconteceu’? Bem... — ele pelo menos tinha entendido. — Em um momento quando íamos pela estrada, você começou a livrar-se das roupas. Isso me surpreendeu e achei necessário pegá-las e tentar fazer você usá-las novamente, mas você começou a correr na frente. Porém fiquei muito mais surpreendido quando se transformou nesse bicho e, como você disse que eu podia fugir, só corri para longe da sua visão, para as arvores... — Ele puxou a trouxa de roupa, jogando-a para mais perto de mim. — Cheguei a esse ponto da estrada a tempo de te ver atacando qualquer coisa... Saíram mais alguns homens da floresta e acabei encontrando algum covarde que estava aqui... Só que depois de lutar com esse, não consegui me mover direito.

— Onde está ferido? — Mejem chegou acompanhado da mulher e logo começou a tratá-lo. — Fez bem em ficar parado. Não se espalhou tanto...

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Para que tudo se resolvesse rápido naquele ponto da estrada onde fizemos a emboscada, servi de bicho de carga para os dois baús. Alguns homens dos peregrinos recuperaram cavalos dos mercadores e os usaram para levar os poucos feridos gravemente. Por uma parte da noite fomos até perto de um vilarejo. Eu não ousaria chegar muito perto, pois cães começaram a latir em alerta, mesmo distantes, então todos pararam diante da entrada e fui descarregado.

— É aqui que despedimos — falou o chefe Mercel, olhando para mim e depois para Mejem com atenção, como se quisesse recordar os detalhes de quem éramos. — O pingente que pegou de mim foi um preço pequeno para toda a ajuda que nos deram. Sinto que ainda estaremos em divida, portanto, se um dia viajarem para nossas terras, lembre-se de nos cumprimentar. Ou, se precisarem de algo mais que possamos dar, nos procure.

— Não esqueceremos. — Mejem concordou cortês.

Depois de um aperto de mão com meu mestre feiticeiro, Mercel encarou-me hesitante, mas se aproximou e deu uma esfregada na minha testa. Algo me dizia que ele sorriu apreciando mais sua própria coragem de tocar um monstro do que por me dizer um adeus. Depois recebi uma seqüência de afagos de despedida de cada um dos Peregrinos sobreviventes, alguns mais rápidos e temerosos, outros com coragem, como Will. Mas eu sabia que eles queriam poder dizer que tocaram uma das criaturas monstro que habitam o nosso mundo estranho antes de voltarem para suas aldeias.

— Você causa muito tumulto com suas fases, Luahn. Desejo que um dia encontre um equilíbrio e uma vida boa — disse Will, antes de seguir o grupo junto da mulher que o apoiava.

Mejem arrumou as nossas coisas, que os Peregrinos devolveram, em seu cavalo e montou. O animal estava bem, apesar de se negar a ficar de costas para mim.

— Podemos continuarmos andando mais um pouco até encontrar algum lugar isolado para dormir o resto da noite. Provavelmente, amanhã você vai querer ir em direção a alcatéia, não é?

Concordei com um movimento de cabeça e fomos sozinhos para outra direção. Finalmente, voltando ao plano de resgate do alfa e de meu meio irmão.