Ela já estava esperando naquela sala mais do que pensou que iria esperar, enquanto ao fundo podia se ouvir o tic-tac de um relógio insuportável. Não gostava de ter paciência, achava que era seu charme, e era ainda pior quando esperava mais do que era proposto. Tinha marcado com o Dr. Andrews as 09:00h, mas já eram quase dez e o paciente ainda estava lá dentro. Não teve como disfarçar o olhar rígido em direção a Martha, a assistente, que ajeitava os óculos sob o nariz largo e continuava digitando naquele computador.

Além de ignorada pelo médico, também estava sendo ignorada pela assistente dele. - Pensou, mas deixou com que continuasse apenas em seu pensamento.

Ao invés de protestar, reclamar ou ter um ataque de fúria, preferiu abrir o caderno que estava em seu colo, com todas aquelas figuras sombrias que ela mesma havia desenhado. Andrews havia lhe dito para que desenhasse tudo o que sonhasse, para que assim possa entender melhor o quebra cabeça quando ele fosse montado, mas tudo o que o doutor havia feito foi elogia-la por desenhos tão detalhados e analisá-los, sem fazer nada além disso. Ela também os estava analisando naquele momento, embora não quisesse tanto se lembrar do que sonhava. Havia se passado alguns dias que ela não conseguia dormir, e tudo estava dentro daquele caderno de desenhos negro. Condizia com o seu habitual humor.

Abriu o caderno e as memórias voltavam como se nunca houvesse saído de sua cabeça. A primeira folha era de um garoto de perfil, a qual ela se lembrava do quarto sonho, quando começou a perceber que não era uma coisa normal. Não conseguiu retratar ele muito bem, as maçãs do rosto estavam distorcidas e os olhos estavam bem largos, mas ele ainda estava em sua mente. Seus cabelos eram quase prateados, bagunçados em sua cabeça, os olhos azuis eram brincalhões, como se olhasse para qualquer um como se ela pudesse o entreter. As roupas não eram comuns, usando túnicas brancas com capuz, descalços, com uma aljava nas costas cheio de flechas e um arco de madeira na mão.

No sonho, ela podia ver por que ele estava se virando, e era a segunda página: havia um homem, de lisos cabelos negros que caiam sob seus ombros, usando um smoking roxo, com uma gravata negra, calças sociais e um chapéu em uma de suas mãos. Na outra mão, segurava um cajado de ponto esférica. Andrews sempre perguntava o nome deles, mas ela nunca sabia quem eram, nunca ouvia o que conversavam. As vezes, ambos brigavam, outras vezes, apenas se encaravam como se fosse o suficiente para um matar ao outro. Continuou folheando o caderno, passando por outras pessoas, ou coisas, que sempre a incomodavam quando fechava as pálpebras. Viu as sombras que a faziam estremecer: monstros bípedes, peludos, com garras e olhos negros; jovens pálidos com caninos longos e finos, como agulhas; homens e mulheres com línguas e olhos de cobra usando capas com colarinho alto.

Não sabia porque tinha todos esses sonhos, mas sabia que Andrews poderia ajudar. Ele já ajudou diversas pessoas, e o caso dela era simples. Provavelmente um estresse, devido ao fim dos estudos, ou coisa parecida. O pior de todos os seus sonhos se deu na última folha que desenhou, a última vez que tentou dormir, e isso parecia tão longe agora. Ainda podia ver os olhos vermelhos daquele homem alto e magricela, olhos estes que não conseguiu expressar em seu desenho. Na verdade, não conseguiu pegar nenhuma caracteristica dele; a roupa estava incompleta, os olhos estavam negros, o cabelo não estava certo, ela sabia de tudo isso. O que mais focou foi no livro em que ele segurava, aberto em sua direção. A capa era cinza, com o desenho de uma árvore cobrindo toda a capa, com seus galhos se estendendo para a contra capa. Se focasse nele agora, com certeza não conseguiria o descrever.

Seus devaneios se foram quando a porta se abriu. Fechou seu caderno de desenhos, pegou sua bolsinha marrom que estava na cadeira ao lado e tentou um sorriso, se levantando da cadeira. Sua bunda estava dolorida de tanto ficar sentada, mas, se Deus quisesse, estaria fora dali em menos de alguns minutos. Andou em direção a porta tão apressadamente que não teve tempo para se desviar do garoto loiro que estava na sala. A consequência foi um doloroso esbarrão de ombros, que doeu, por sinal.

— Ei! - Reclamou, enquanto observava o garoto saindo do lugar. De alguma forma, mesmo o olhando de costas, parecia o conhecer. O cabelo loiro foi afagado por um boné, que colocara logo que saiu da sala, e a estampa de sua jaqueta jeans azul era um sol. Por um breve momento, ele a olhou pelo canto dos olhos, e sentiu os mesmos azuis do mar se divertirem com a imagem dela.

— Entre! - Ouviu Martha, que a despertou. Estava com seus óculos de grau quase escorrendo pelo nariz, com uma expressão séria.
Deteve a vontade de responder o quanto Martha era simpática e a obedeceu. Ela adentrou o cômodo sem ao menos encarar o homem sentado em uma cadeira de frente para um sofá. Este último também não estava muito interessado em encará-la, enquanto ajeitava seus óculos e folheava seu bloco de notas com a mão esquerda, enquanto que a mão direita segurava a caneta, que levava até os lábios.

Para qualquer um, a sala parecia agradável. Não era tão grande, mas também não era nenhum pouco pequena. Do lado do homem, havia uma estante encostada na parede, carregado de livros, e ao lado dessa estante, um vaso com alguma planta de pétalas grandes que ela desconhecia. Atrás dele, a parede continha uma janela, com persianas abertas, deixando a luz do sol passar através do vidro. Provavelmente, do lado de fora da janela, não havia nuvens e, sete andares abaixo, pessoas apressadas com seus smartphones entravam na frente de carros ainda mais apressados, que freavam e buzinavam em protestos. Manhattan era uma cidade linda.

Ela se jogou no sofá em frente ao homem, deitando e colocando seu pé ainda com o tênis no braço do móvel, que provavelmente parecia caro. Seus cabelos castanhos e ondulados ficaram em seu rosto e esconderam o seu pescoço, onde um cordão com o pingente de uma chave prateada deixa sua pele fria. O ar naquela sala era gélido, e ela agradeceu por ter ido de calça jeans, uma camiseta rosa com a estampa de um pônei rosa e uma jaqueta jeans por cima. Com seus 1,56, parecia uma versão rebelde retirada de algum filme Barbie. Dr. Andrews ainda não pareceu se preocupar em encará-la. Sentado, não parecia ter um e oitenta, enquanto sua camisa polo negra perfeitamente passada e o jeans azul o dava a sensação de ser qualquer outra pessoa, e não o psicólogo daquele escritório. O penteado era rebelde, com fios apontando para o teto, e as luzes platinadas só o faziam parecer ainda mais um jovem, principalmente com a barba feita e a pele brilhante. O relógio em seu pulso parecia ser caro, e ele marcava nove horas.

Quando enfim a encarou, os olhos castanhos encararam as olheiras dela. A garota fazia dois dias que não dormia, e não planejava fazê-lo até que toda essa sua paranoia enfim fosse resolvida. Cada vez que sentia que fecharia os olhos, se beliscava ou então tomava algum energético que roubava do armário de bebida da mãe. Talvez misturava ao pouco de vodka que sempre encontrava, mas não tinha muita vontade de contar isso para o homem a sua frente. Todo essa loucura a transformou em uma menina fechada, desgostosa da vida e de tudo o que é alegre, sempre cochilando nas aulas e com marcas em seu corpo, que faziam seus colegas de escola pensarem que estava se drogando ou sofrendo abusos com a mãe.

Talvez se drogar a ajudaria a manter acordada. Não! Não podia pensar em uma coisa dessas enquanto fazia sua mãe passar por todo aquele sufoco por causa dela. Não havia destruído só sua vida com os sonhos, mas destruiu a vida dela também. Era mais uma coisa na lista dela que deveria se lembrar: era um estorvo para qualquer um.

— Você esqueceu os seus óculos. – Foi a primeira coisa que Andrews disse, enquanto fechava o bloco de notas e cruzava as pernas.

— Eu não preciso deles. – Disse de forma defensiva, como dizia para todo mundo que perguntava algo a ela.

Ela não estava mentindo: tentar enxergar algo de longe e ver tudo embaçado não era mais um problema para ela fazia dois dias. Tanto ela, quanto sua mãe e o oftalmologista não entenderam o que havia acontecido. Dr. Andrews suspirou e se ajeitou em sua cadeira, provavelmente escrevendo algum nome cientifico que ela traduziria para “Especialidade da Serana”. Como se não houvesse ocorrido nada ali, ele continuou:

— Já faz quase uma semana que não conversamos. - Disse, enquanto observava o caderno em sua mão. - E pelo visto, teve um pesadelo grande o suficiente. Quanto tempo faz que não dorme? Dois dias?

Logo após assentir, entregou o caderno para ele. Andrews sempre dizia que nem sempre era claro os desenhos que ela criava, apesar da mesma conseguir desenhar bem, então precisava de uma narração para que isso realmente ajudasse. Nunca pensou que ele estava falando sério, as vezes até achava que ele usava dessas desculpas para continuar com as sessões e fazer com que sua mãe perdesse mais dinheiro, por culpa dela.

— As dores de cabeça sumiram. – Era visível a gratidão em sua voz, apesar de não transparecer mais do que isso. – Os remédios que passaram estão ajudando com elas.

— Fico feliz por isso. - Ele não parecia realmente feliz, enquanto abria o caderno e se dirigia para a última página. - Vejamos o que aconteceu dessa vez.

Ao chegar na última página, ela conseguiu perceber um brilho de empolgação por baixo dos óculos dele. Os castanhos pareceram ficar dourados, enquanto analisava cada pedaço do desenho.

— Conte-me o que aconteceu. - Disse, por fim, fechando o caderno e voltando-se para ela.

Para ela, era a pior parte. Era como ser interrogada por um policial malvado. Não era nenhuma suspeita por nada para isso acontecer, mas Andrews sempre fazia perguntas que ela não gostava no final de tudo aquilo. Na primeira vez, o psicologo quis saber tudo sobre o garoto loiro e o homem misterioso, como se procurasse um sentido no real no meio de toda, como ele dizia, “metáfora traumática”. Se aconchegou ainda mais no sofá e fechou seus olhos, indo com sua mão em direção ao pescoço, onde estava o pingente. Não lembrava de um momento em que estava sem ele, e sua mãe, sempre que brincava com ela, dizia que a teve com aquele cordão.

— Diferente de todos os outros sonhos, eu estava no meu corpo. - Começou. - Eu sabia que era eu, conseguia olhar tudo ao meu redor…

— E o que você via? - As perguntas começaram antes mesmo dela terminar.

— Nada. Era tudo tão escuro. - Respondeu, o que deixou Andrews com um ar de decepção no rosto. Ignorou isso e continuou a história: - Em minha frente, estava esse homem, do meu desenho. Parecia que tinha iluminação própria, enquanto dava passos em minha direção, com esse livro na mão.

— Você não deixou claro como era esse homem em seu desenho. - Novamente a interrompeu, abrindo o caderno. - Consegue descrevê-lo?

— Eu… não acho que isso possa ajudar de alguma forma. - Gaguejou.

— Serana… - Seu nome saiu da boca dele entre suspiros. - O diabo está nos detalhes.

Serana odiava aquela expressão. Para ela, o diabo estava em tudo nos seus pesadelos. Naquele garoto loiro, naquele homem de smoking roxo, nas feras com garras e caninos e até naquele homem da última página de seu caderno. Por algum motivo, Andrews parecia fascinado com este último, o que fazia ela ficar um pouco melhor, visto que poderia ser o final de sua terapia.

— Ele era alto, mais alto que você. - Forçou uma tosse, para dar tempo de se lembrar exatamente como era esse homem. - Magro, quase esquelético, com um sorriso forçado e olhos vermelhos. Usava roupas brancas, como um cientista. Ele…

Andrews parecia anotar cada palavra que saia da boca de Líria, e isso fazia com que, cada vez mais, tivesse medo de continuar dizendo. Não parecia estar 100% imerso no que a garota dizia, então não precisava continuar falando. Foi a única coisa que ouviu desde que se iniciara esses pesadelos, e não queria dizer isso em voz alta, não para Andrews, nem para ninguém. Quando ela ficou quieta, Andrews a olhou por cima dos óculos.

— Ele o que? - A voz dele estava rígida, coisa que já tinha se acostumado. Talvez ele achava que ela era uma adolescente rebelde e teimosa, ou tímida que não gostava de contar seus segredos mais sombrios. No fim, não importava nada do que ele pensava.

— Nada, é só que… Ele me traz calafrios. - Disse, por fim, tentando manter a voz instável, para que Andrews não percebesse que estava mentindo.

Serana ficou em silêncio. Por algum motivo, percebeu que Andrews esperava mais alguma coisa dela e esta última ainda conseguiu notar o que parecia ser desconfiança.

— É só. – Disse com o cenho franzido, deixando claro que era só isso mesmo.

— É esse o sonho que tá te fazendo ficar acordada durante dois dias? – A voz de Andrews era paciente e, de certo modo, decepcionada.

— Sim. - Deu de ombros. Não tinha por que não acreditar, mas ele insistia em fazê-lo.

Sentia que, por mais que Andrews emanava confiança, ele não era confiável. Agora, essa sensação aflorou nela como se estivesse assim desde que entrou por aquela sala, na segunda vez. Havia algo de errado em Andrews, agora era nítido. O jeito como sorria, como queria saber todos os detalhes dos sonhos dela.

Andrews não disse nada, voltando ao bloco de notas. Depois de escrever algumas palavras, o fechou e a olhou, dessa vez de verdade. Não deixou de notar um brilho de excitação emanando dos olhos dele. Houve um silêncio assustador que durou por alguns segundos, até ele se levantar e colocar o bloco de notas na cadeira.

Ela estava ferrada, pensou. De pé, Andrews conseguia ser tão grande quanto o homem de seus sonhos.

— Tudo bem, continuamos nossa conversa na próxima sessão. – Andrews disse, e Serana liberou todo o ar que estava comprimido em seu pulmão.

— É só isso? – Perguntou.

— Seu tratamento não é como jogar no xbox, Serana. - Ele usava essas expressões desde que descobriu que ela gostava de videogames. - Você não pode ficar o dia inteiro no tratamento como se fosse terminá-lo no mesmo dia. Requer paciência, treino e cooperação.

Não gostou de como a última palavra saiu da boca dele, como se dando ênfase, e ela não estivesse cooperando. Serana o imitou, cumprimentando Andrews. Para um psicólogo, sua mão era calejada e seu aperto de mãos era forte. Era mais do óbvio que tinha alguma coisa errada com seu psicólogo, mas pensou já estar no último estágio de suas paranóias. Pegou o caderno das mãos do doutor, e deu um leve sorriso e um aceno para Martha ao sair do prédio. Esta última, fofa como sempre, nem se preocupou em encarar a menina, jogando o que parecia ser paciência no computador.