O Cupido

Fora de Ordem


Pousou já cantareiro, enredando a gente num cangar.

17h30min

As folhas secas caíam soltas no jardim recém-umedecido pela chuva, os olhos cor de azeitona fixavam-se nas vidraças a frente que davam um vista exclusiva para a goiabeira no final da rua, perto do Banco Principal. Os carros passavam como foguetes na rua, respingando água nas pobres senhoras que esperavam o farol fechar. Para ela era cômico o rosto de indignação das idosas. Crianças corriam desgovernadas em direção a uma arvore velha na esquina, algumas até escorregavam nas poças d’água e sujavam seus uniformes escolares, as mães gritavam histéricas. O relógio marcava cinco e meia, o horário da saída na escola Primaria, e o pior horário para qualquer mãe.

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Dentro do aglomerado de crianças que só aumentavam mais e mais, Hayley avistou uma cabeleira negra com mechas azuis movimentando-se entre as calçadas, suas galochas amarelas chicoteavam o chão, iam em direção à lanchonete. Preso na cintura da garotinha, uma jaqueta de couro preta era arrastada no chão, sujando-a de grama, lama, e tudo o que tinha direito, o dono provavelmente ficaria muito bravo se visse aquilo. Anna atravessou a porta da lanchonete e ziguezagueou pelos bancos de madeira.

— Bom dia, luz do dia – com um sorriso largo, Hayley abriu espaço para a menina sentar-se ao seu lado. – Dando trabalho para o seu irmão?

— Sempre que possível! – disse arrancando boas risadas da mais velha. Anna limpou a garganta e se ajeitou na cadeira, cruzando as pernas. — Garçonete, por favor — sua voz estava séria, e os olhos fechados. Era uma cópia perfeita de uma patricinha, Hayley percebeu, só não entendia o porquê daquilo — garçonete, eu estou te chamando.

Uma moça de coque vermelho saiu detrás do balcão com um bloco de anotações nas mãos, a caneta estava presa atrás da orelha. Seu avental preto chegava até a metade das coxas nuas, dois botões da blusa três quartos estavam desabotoados, destacando seios médios, a saia xadrez combinava com os sapatos. Uma garçonete com dezoito anos chama atenção dos clientes.

— Anna… — Relembrou. A voz era incrivelmente mórbida, seu semblante de tédio e o tom de desprezo mostravam um passado ruim entre as duas — continua insuportável? — um crachá escrito Emma balançava em frente ao tronco, suas roupas cheiravam a bolo.

— Continua oferecida? — Anna respondeu com a mesma intensidade. Hayley trazia ar de riso, ver uma menininha enfrentar uma adolescente era mais do que o suficiente para tornar a tarde divertida — meu irmão está chegando, cuidado para não babar.

Eu quero adotar essa menina, pensou Hayley, rindo.

— Tanto faz, eu realmente não me importo — mentiu, girando a aliança de compromisso no dedo esquerdo.

— O certo não é o direito? — Hayley perguntou com os cotovelos na mesa e a cabeça sobre as mãos. Só então a garçonete percebeu sua presença.

— Como?

— A sua aliança — apontou — esta no dedo errado.

Casou meu mundo em segredo, arredou antes de clarear.

— Escutem, vocês vieram aqui para encher o meu saco ou fazer um pedido?

— Os dois.

O sino da porta se espremeu contra a parede, fazendo um curto e agradável som — o dono da jaqueta. Seus cabelos negros estavam desgrenhados e molhados, provavelmente por ter tomado banho de chuva, o colar em formato de pássaro balançava desgovernado, enquanto a camiseta branca grudava em seu corpo, os pés ligeiros seguiram em direção ao trio, que o observava. Alex acenou eae.

Mais um, Emma pensou.

As íris escuras pousaram na jaqueta presa em Anna, que se encolheu no banco.

— Você não fez essa merda — exclamou indo em sua direção. Parou ao lado de Emma — Anna o que eu tinha te falado?

— E-espera — ela tentou argumentar gesticulando as mãozinhas — não briga comigo, você não tá entendendo, essa é minha capa, eu...

— Por que não me esperou para brincarmos na chuva juntos? — resmungou colocando as mãos na cintura, aquilo quebrou todo o clima de tensão no ar, fazendo Hayley, Anna e outras garotas sorrirem. — Eae, Emma — cumprimentou rapidamente a garçonete, ainda olhando para a irmã, sem mudar de posição.

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— Vocês são estranhos, eu hein. Toma, fiquem com o cardápio e quando quiserem peçam alguma coisa. E Alex, se não quiser fãs é melhor colocar uma roupa decente — referiu-se a blusa branca que desenhava o corpo do moreno.

Ele a olhou.

— Invejosa.

x



E me despertou o medo de me ver na solidão; pois tu voas, passarinho, e eu nem sei sair do chão.

00h46min

A música alta deslizava pelas paredes e empatava qualquer outro som de entrar, o cheiro de álcool pairava no ar, tornando-se sufocante. A fumaça cinza que brilhava com as luzes coloridas cobria a visão da porta. Um casarão abandonado que se tornara o clube de festas para menores de idade, essa era a descrição no final da rua. Os vizinhos estacionavam seus carros o mais longe possível, já que sabia o estrago causado se deixassem ali. Eles sabiam que adolescentes bêbados não pensavam, só faziam merda. Chamar a policia era insignificante quando o filho do prefeito estava no meio da bagunça.

Os carros aglomeravam-se nas calçadas onde muitas pessoas bêbadas e drogadas dançavam, a água da piscina respingava no quintal, fazendo o cheiro de whisky borbulhar. As janelas de vidros tremiam tanto que pareciam explodir a qualquer momento, jovens se atracavam — em qualquer sentido existente —, por toda a parte. Dentro da festa, o salão principal se tornara um grande bordel: a mesa de bebidas era contornada de adolescentes. Garotas dançavam em cima das mesas, nos divãs, e para os rapazes. Um lustre prata balança sobre as cabeças. Dezenas de latinhas vazias boiavam na piscina, mas ninguém se importava realmente com aquilo, afinal nem lembrariam metade das coisas que aconteceram. Inclusive o fato de que a água da piscina estava azul escura — alguns clubes usam produtos na água da piscina que quando entram em contado com a urina ganham um tom escuro de azul.

— Tira sua mão de mim — de dentro da festa uma voz sobressaiu, era uma garota. As lágrimas frias molhavam seu rosto manchado de sangue, que escorria do nariz. — Nunca mais, ouviu? Nunca mais toca em mim.

Regressa logo por ligeiro, encosta em mim pra descansar.

G.U.Y da Lady Gaga tomava conta da rua. Seus saltos martelavam nas calçadas molhadas com urina e bebidas alcoólicas, os cachos castanhos balançavam com o vento — alguns fios grudavam em seu rosto. Jennifer não conseguia parar de chorar, os soluços incontroláveis faziam sua garganta arder, a dor do soco não se comparava ao que estava sentindo dentro de seu peito — ódio, mágoa. As pernas moviam-se sozinhas, sem direção alguma. Atrás dela alguém gritava.

— Jenny — uma voz masculina embargada pela bebida choramingou, mas ela não virou, não queria virar. — Eu sinto… Jenny eu sinto muito.

O cupido nunca erra a flecha, ela ainda tem toda uma trajetória para seguir antes de acertar o alvo.

“— Eu nunca disse que te amava, garota — William não estava sóbrio, aquele não era o meu Will, eu conseguia sentir suas palavras úmidas pelo whisky — mentimos para vocês, sinto muito — ele dizia entre risos engasgados, o álcool estava forçando aquelas palavras saírem, como feijões presos no fundo da lata.

O que você tá falando, Will? Por que esta me dizendo essas coisas? — eu realmente não entendia, tinha medo de entender, seus olhos esverdeados me fitavam confusos. Parecia outra pessoa na minha frente — Você não é o cara por quem eu me apaixonei. — minha voz saia com pedras, aquilo doía mais do que eu esperava. Nunca subestime a dor de uma paixão.

— Espera — risadas — você esta apaixonada por mim? Jennifer, a feministazinha? — William se dobrava de rir, assim como outros babacas a nossa volta. Curtos intervalos de tempo paravam para retomar o ar. A maior piada estava bem à sua frente.

Eu.

Sentado em uma poltrona de couro, no canto da sala, o filho engomado do prefeito nos observava com um sádico sorriso nos lábios, garotas de biquíni rodeavam sua poltrona como urubus em volta da carniça. O ódio subia pelas minhas veias, alcançando minha sanidade mental, eu queria muito bater em cada um deles, fazer com que pagassem por rirem de mim. Chorar por um cara era como falhar comigo mesma, quebrar uma velha promessa que fiz. Eu não merecia aquilo, Hanna também não.

— Foi uma aposta — William murmurou, sua voz ficou séria ao perceber o que disse — eu apostei com os caras que conseguia te pegar. — sorriu torto, mas seus olhos continuavam confusos. Às vezes eu via o Will sendo sincero, outras era o William babaca e drogado que estava ali, nem ele sabia o que ser, dizia aquelas coisas para si mesmo — Foi mal, mas eu não gosto de você.

— Me pegar — repeti balançando a cabeça negativamente — me pegar.

— Te pegar — concordou.

Aproximei-me de seu rosto, nossos olhos se cruzavam, meus lábios tremiam, os dele formavam uma linha reta. Fedia a maconha.

— Vai pro inferno, aproveita e leva todos esses babacas com v...

Senti uma dor atingir meu rosto como tanta velocidade que tudo a minha frente embaçou, ouvi gritos. O liquido vermelho que respingou nos caros vasos da cômoda também escorria sobre meu queixo, pingava no chão. Ela está sangrando, uma garota disse. Coitadinha, outro retrucou ironicamente. Um tapa… Não, um soco, eu tinha acabado de levar uma soco. Olhei para William, seus olhos emitiam ódio.

— Some daqui, lixo.

Essas foram as ultimas palavras que ouvi antes de sair da festa chorando, sem saber o que fazer. Apenas chorar e sentir raiva. Não, sentir ódio”

Paixões são como pássaros que pousam no portão, cantarolando, belos. Queremos guardá-los, cuidar deles, proteger de todo mal, ouvir seu lindo canto todos os dias, iluminando as manhãs mais sombrias. Mas, às vezes, eles precisam ir encontrar outro portão, e não podemos deixar criaturas livres em gaiolas. Elas acabam morrendo.

E se não for voltar, faz favor de avisar.

Que dói o tempo, passarinho, até eu me acostumar.



x

18h32min

— Eu odeio essa musica — Alex remexia seu café e observava a colher afundar na espuma marrom — from time to time, you cross my mind, good company is hard to find.

— Nossa, muito obrigada! — brincou a garota com a letra da musica. Hayley embrulhava os restos do hambúrguer dentro dos guardanapos enquanto Anna dormia em seu colo. A lua branca já tomava conta do céu — daqui a pouco eles colocam Cups também — os dois se entre olharam, rindo. — É melhor a gente parar de falar essas coisas, vai que apanhamos.

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— O mundo é sombrio, padawan.

Alex fez uma longa pausa, observando o agora copo vazio.

— Vamos a uma festa? — murmurou, sem olhar diretamente para a garota, que o encarava como se tivesse dito a pior merda do mundo.

— Não — respondeu, seu tom era de obviedade. Ela odiava festas, e pessoas, e bebidas, e drogas, e a vida.

— Ah, vamos. Escute, eu detesto festas, mas essa vai ser maneira.

— Se detesta por que vai? Eu hein, já disse que não.

— Quando você está presente as coisas ficam mais divertidas. Podemos rir dos otários que estão lá. Vai, Reizinha.

— Odeio esse trocadilho com o meu nome — afastou uma mexa que caia sobre seu rosto — mas a ideia de rir dos idiotas é bacana.

— Se a festa estiver muito chata eu te levo pra minha casa e fazemos nossa própria festa — em situações normais, Alex estaria desconfortável por dizer tais coisas, mas com Hayley era diferente, ela não o via daquele jeito já que acreditava na sua homossexualidade. Ao invés de corar e ficar indiferente, a menina soltou uma alta gargalhada. Era tão bom ouvir seu riso.

— Tudo bem, vamos pra essa festa idiota, mas se estiver muito chata, já sabe…

— Sorvete, batata e um filme legal. Estou ciente. Fica tranquila, reizinha, vai ser legal.

Alex não poderia estar mais errado.