O Cupido

Família


Sou um ser místico, e quero que você saiba disso. Caso contrário, nossa relação se tornará conturbada e você deixará de acreditar nas minhas palavras. Sou um ser místico. E como tal, afirmo que o tempo sabe quando tudo pode acabar em um grande desastre. Ainda descrente, vejo. Eis uma amostra.

As nuvens carregadas do ácido criado pelo egocentrismo do ser humano fazia sua marcha lenta e penosa pelo céu já nublado. O vento gelado batia feroz nos troncos das árvores, fazendo suas folhas secas forrarem o asfalto cinzento. Já era tarde e as luzes do shopping faiscavam com a ideia de novos clientes.

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Seis e meia, alertava o relógio preso à parede. Uma criança manhosa pedia insistentemente para que sua mãe trocasse seu brinquedo por algo melhor. Como outro lanche, por exemplo. A bela mulher de cabelos dourados caminhou exuberante até o balcão – esquecendo-se, apenas, do crucial fato de que estava em uma lanchonete visualmente fracassada –, e apoiou seus seios na madeira. Sorriu. Alex retribuiu com a falsidade que adquiriu nos bons tempos trabalhando ali.

Moves Like Jagger na loja de roupas à frente fazia a sonoridade do ambiente. Ao fundo, o filho mimado arrumava briga com o escorregador de brinquedo. Alex riu de verdade e focou seus olhos cinzentos na mulher. – Pois não?

— Boa noite! Meu filho detestou o brinquedo – Alex esperou pelo complemento da frase, mas o silêncio de término o deixou confuso.

O brinquedo é horrível. Seu filho não gostou e quer outro...?

— A senhora gostaria de outro brinquedo? – tentou compreender a vaga cabeça da mulher.

— Não.

A obviedade reinou perante a loira, Alex permanecia confuso. – Então como posso te ajudar?

— Eu quero outro lanche.

— Claro – afirmou, preparando-se para fazer suas anotações no caixa. Ela silenciou-se, o encarando. O que você quer, merda?

— Qual o lanche? – tentou parecer simpático.

— Qualquer um, na verdade. Eu só quero trocar esse brinquedo por um lanche.

Ah, a explicação que você não deu, pensou e buscou no script mental o que fazer nessas situações. O suor de um dia cansativo desceu por suas costas. – Na verdade não trocamos brinquedos por lanches, sinto muito. Mas a senhora pode trocar o brinquedo sem problemas.

— Não, não. Eu quero um lanche – a falsa simpatia caiu por terra mais rápido do que ele imaginou. Ela tirou os óculos escuros que usava dentro de um local fechado.

— Sinto muito, senhora, mas não fazemos essa troca. Seu filho pode olhar outros brinquedos e escolhe algum, é de graça!

— Não! Eu quero outro lanche!

— Senhora…

Uma porta pesada de madeira se fechou atrás de Alex e os passos pesados aumentaram com a proximidade de sua chefe. Dentre as embalagens de hambúrgueres congelados, uma mulher baixa e de corpo saliente surgiu, olhos ríspidos refletiam uma alma certamente amargurada. No fundo, talvez, uma penumbra de ódio e amor. Marcia pigarreou.

— Algum problema?

— Sim – disse relutante a loira, mas sem baixar sua feroz guarda de mãe justiceira. – Eu quero trocar esse brinquedo por um lanche, mas seu funcionário disse que vocês não fazem esse tipo de troca. Eu paguei pelo lanche, tenho direito a troca.

Marcia lançou um olhar caloroso para o garoto, que reprimiu um sorriso agradecido. Louca, os dois pensavam. – Não fazemos este tipo de troca, sinto muito. Mas se a senhora quiser, disponibilizamos outros brinquedos para seu filho.

— Eu quero outro lanche, não outro brinquedo.

— Então eu sinto muito.

Finalizou com um sorriso ácido, retirando-se da presença dos dois. Outros funcionários observavam a cena, surpresos. Márcia era conhecida como um carrasco ao demais, mas quando se tratava do funcionário queridinho, ela disponibilizava seu mau humor matinal para protegê-lo. Alex era grato a isso.

A loira jogou o brinquedo no balcão, agarrou seu filho manhoso pelo braço e saiu furiosa pela praça de alimentação. Após sua saída, um par de olhos verdes surpresos atingiu o rosto do amigo. Seu sorriso se abriu e ele sentiu-se muito sortudo por ela estar ali.

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— Acho que alguém está um pouco brava. Só um pouco, já que foram dois palavrões – Hayley disse ao se apoiar no balcão com um sorriso de criança feliz. Alex passou o indicador na ponta de seu nariz com um agrado a um gatinho.

— É só mais uma de muitas doidas por aqui.

— Você lida com mães problemáticas, é o melhor pior trabalho do mundo!

— Melhor, pior.

— Não, sem pausa. Melhor pior.

— Você quem manda.

Em meio aos risos, Hayley sentiu olhares pesando sobre si. Duas garotas, uma de cabelos negros presos por uma rede – esta preparava um sorvete de casquinha para um casal –, e uma loira preocupada com o preparo de um lanche vegetariano. As duas se entreolhavam e ria de maneira debochada, a morena parecia ofendida com a proximidade de Hayley com Alex. A loira, por si, se garantia.

— Em qual das duas você deu um fora? – perguntou Hayley de repente, Alex pensou um pouco antes de responder. Até que se lembrou das companheiras de trabalho.

— Nas duas.

— Esse é meu garoto – confirmou com um tapinha no braço. Seus olhos se perderam nos fundos do estabelecimento e ela arfou, assustada. – Que susto…!

Um par de olhos castanhos estava observador atrás de uma parede pequena, alguns traços de seu cabelo lambido não foram totalmente cobertos pela fracassada tentativa de se esconder. O corpo cheio beirava pela metade, outro fracasso. Hayley se pegou perguntando por que uma mulher de bigode a encarava.

Até as senhorinhas gostam dele…

— O que foi? – perguntou ele olhando para trás, e neste momento ela já não estava mais ali. Hayley balançou a cabeça negativamente.

— Nada. Então… – murmurou. Queria rir da aparição. – Você disse que se eu perdesse a aposta nós dois sairíamos juntos. Bom, eu ganhei, mas adoraria sair com você.

— Sério? Assim, do nada?

— Sim…– um suspiro saiu por entre seus lábios e ela olhou profundamente para Alex. – Eu briguei com a Megan, na verdade. E nesse final de semana a Amanda vai dar uma festa ridícula do pijama e eu fui convidada, mas não quero ir. Não quero mesmo!

— Entendi! – riu.

— Quer ser minha desculpa para não ir?

— Me sinto honrado. Mas hoje eu vou sair com o Dan.

— Ah...Entendi.

O garoto se sentiu idiota pelo que acabara de falar. Era justamente sair com Dan a solução para aquela conversa. – Bom, a gente pode sair juntos, isso se você não se sentir desconfortável. Vão ter outras garotas lá.

Vanessa, por exemplo, pensou.

— Aonde vocês vão?

— No boliche – com os outros caras da escola. – O Dan vai levar uma amiga.

— E você vai ficar de vela, que triste – riu. – Espera, hoje não é o boliche com os caras da escola?

— Hoje não é a festa do pijama da Amanda?

— Você me pegou – contorceu o nariz e deu espaço para uma nova cliente que faria seu pedido. Alex fez seu trabalho manual e passou o pedido para a loira.

— Sinceramente, vão ter outros caras lá, mas a gente não precisa ficar perto deles. Ou simplesmente podemos ir a outro lugar. O Dan vai entender.

— Não, tudo bem. Vamos ao boliche, quero ter o prazer de humilhar aqueles idiotas.

— Cansou de andar com as garotinhas? – perguntou com um sorriso sacana. Hayley ponderou antes de responder.

— Acho que sim.

Ela sorriu, seus motivos eram outros. Mas, mesmo assim, era bom de assegurar de que:

— Ah, e o Ethan não vai, certo?

Foi a vez de Alex pensar a respeito. Normalmente o filho insuportável do prefeito não saia com eles, o que era ótimo. De qualquer forma, se ele aparecesse não tocaria em Hayley. Alex não permitiria.

— Não – respondeu ele seguro.

— Perfeito! Que horas você sai? – perguntou ela olhando para um relógio distante. Seis e quarenta e sete.

— Daqui a treze minutos.

— Ok, vamos fazer assim: eu vou dar uma volta e comprar alguma coisa para comer – ela olhou de leve para o cardápio e riu – alguma coisa decente, no caso. Eu te espero na livraria no andar debaixo.

— Fechado – antes que a garota se virasse e seguisse até o destino, ele completou – tudo bem você passar na minha casa?

Ela o olhou, estava inexpressiva. Alex continuou. – Eu preciso tomar banho e me arrumar. Mas se você não quiser, te passo o endereço do boliche e a gente se encontra lá.

Os segundos em que Hayley não respondeu pareceram uma eternidade. Ele não sabia, mas uma luta interna de ideias e princípios se iniciava. Por fim, algo novo surgiu e ela respondeu. – Vamos passar na sua casa.

Sem despedidas, ela virou-se e saiu apressada.

A viagem no ônibus seguiu silenciosa. Hayley observava as árvores que passavam apressadamente enquanto saboreava o sobrara de seu milkshake. Alex, por si, contava quantas pessoas entravam e saiam do ônibus, uma forma de passar o tédio. Sua maior preocupação estava no comportamento da amiga, que parecia inconstante e temerosa – percebeu isso a partir dos movimentos de suas mãos, que batucavam sem parar na coxa. Anna também era uma questão, normalmente a pequenina odiava qualquer garota que se aproximava dele, seria diferente com Hayley? Talvez sim, talvez não. Ou apenas devesse parar de bancar o lunático e ponderar diversos problemas em sua mente.

A última parada finalmente chegou e ela percebeu como o ônibus ficara vazio, tirando apenas os dois. Aquilo pescou um pensamento que tivera apenas uma vez, o tal era a respeito do tempo em que Alex passava sozinho, de seu emprego horrível e sua misteriosa família. O pai estava morto, sabia, mas e a mãe? Irmãos? Tias? Isso não sabia. Havia rumores de que ele era emancipado, mas decidiu levar sua irmã mais nova devido a constante violência de seus pais – um homem que batia na mulher. Com o falecido pai, ela percebeu que essa era uma suposição apenas. Levando a segunda: uma família rica e fugitiva, um pai mafioso e uma mãe contrabandista. Falso também.

E isso parou na terceira, última e mais triste suposição: ele era totalmente sozinho.

— Vem – disse tirando-a de seus devaneios. Ela não notara, mas estava na última casa da rua, isso em um bairro completamente avulso de toda a cidade. Um bairro solitário.

A sua frente estava um sobrado azul, com aparência organizada. Antemão à porta, um portão de ferro preso por um cadeado grande. A luz de um dos quartos estava acesa, assim como uma brecha quase imperceptível na porta da frente. Alguém já estava em casa e Alex percebeu isso.

— Merda, ela já chegou – afirmou meio desesperado enquanto arrancava o cadeado com um puxão. No final da rua uma perua infantil virou a esquina e sumiu.

Outra suposição, aleatória – no caso. Era de Alex tinha uma filha, nada até o momento fora dito do contrário.

O garoto subiu a pequena escada na varanda e empurrou a porta, deixando Hayley sozinha com a visão de um corredor escuro. Ela ficou ali, parada, apenas escutando o amigo. Coisas como: você não pode deixar a tia ir embora até que eu chegue. Como resposta: eu sei me cuidar sozinha! Aquilo durou os dez minutos mais longos e torturantes existentes até que Alex enfiou sua cabeça pela porta e a chamou.

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— Resolveu a DR? – perguntou rindo, ainda meio ansiosa.

— Tenho uma dessas todos os dias, vai por mim – respondeu abrindo passagem para a amiga, que não se mexeu. Os dois se encararam. – O que foi?

— Nada – disse ela nervosa, suas mãos suavam.

— Olha, Hayley, eu não pretendia comentar nada a respeito, mas eu percebi como você ficou estranha depois que eu te convidei para vir aqui – ela não respondeu então ele continuou. – Eu não vou te agarrar ou te amarrar no porão que eu nem tenho. Se eu tivesse um, talvez.

A garota riu, tímida. Alex sorriu e segurou sua mão. – Confia em mim, Rei.

Os grandes e intensos olhos verdes da menina mais radiante que ele conhecia se iluminaram.

— Me deixa conhecer sua caverna, morcegão.

Os dois riram e ela finalmente entrou na tão temida casa. E que casa! Ela nunca, em toda sua vida, imaginou que um garoto pudesse ter tão bom gosto.

— Você tem uma maquina de música antiga! – exclamou correndo até o aparelho. – Meu pai tinha uma dessas, bons tempos. Funciona?

Como resposta, Alex aproximou-se e escolheu uma música qualquer. Logo, I Can’t Get No começou a tocar por toda a casa.

— Que legal! Um orelhão, um orelhão! — o triunfo da descoberta a fez esquecer a primeira descoberta. Depois de discar números aleatórios, disse – Alô, boa noite. Gostaria de dizer que essa é a melhor casa do mundo!

Alex não conseguia parar de rir, realmente satisfeito – o contrário da música, pensou. Ver a felicidade da amiga por pouca coisa era totalmente satisfatório. Tudo parecia encantá-la.

— Essas fotografias são suas? – perguntou segurando um quadro na mão. Uma borboleta azul estava pousada em uma mesa de madeira, de fundo o nascer do sol iluminava a fotografia.

— Sim, tirei ano passado.

— Bonito, tem bom gosto e sabe tirar fotos. Alex, qual é o seu maior defeito?

Ter que mentir. ­– Deixarei você descobrir.

A felicidade morreu quando, na mesinha da sala, um papel estirado chamou sua atenção. Ordem de Despejo. Alex percebeu o que chamava sua atenção e tratou de se explicar:

— Não é tão ruim quanto parece.

— Mas, Alex... – não havia palavras, de verdade. – Sinto muito.

— Não sinta, é só um problema a ser resolvido. Já recebi várias dessas – era para ser uma piada, mas aquilo apertou o coração de Hayley e ele fez a única coisa que pôde ao ver um semblante tão triste.

Alex a puxou para um abraço.

O corpo da menor ficou rígido com a repentina aproximação e ele apoiou a cabeça em seu ombro. – Para de se preocupar tanto.

— O-ok – respondeu ainda dividida entre conforto e desconforto. Ela conseguia sentir a respiração dele no seu pescoço.

Os dois ficaram ali por um tempo resumido, estranhando a proximidade de seus corpos. Uma revista caiu do sofá e cortou o silêncio repentino pelo findar da música, Hayley olhou na direção do barulho e apertou as costas de Alex com o susto. O rapaz se contorceu com a dor repentina e se deslaçou da amiga, olhando-a em busca de uma resposta. Seus olhos escuros seguiram os dela e ele entendeu o motivo do susto.

Apagada pelo sofá escuro, a garotinha de semblante nada convidativo observa a cena com as sobrancelhas franzidas. Hayley agraciou sua beleza semelhante: cachos negros caiam até os ombros, a pele levemente mais escura, olhos castanhos intensos e a altura resumida de uma criança. Percebeu, também, que abaixo de seus pés outras revistas estavam caídas, levando a engraçada e assustadora dedução de que ela estava ali algum tempo, tentando chamar atenção derrubando as revistas propositalmente no chão.

No fim, ela conseguiu.

— Anna – disse Alex. – Essa é a Hayley. Hayley, essa é a Anna.

A filha dele…

— Minha irmã.

Oh. — Oi – acenou, sem jeito.

— Quem é você? – sem rodeios, perguntou. – E por que estava abraçando o meu irmão?

— Na verdade foi ele que me abraçou – riu, mas não foi acompanhada.

Alex sorriu para ela e saiu da sala, explicando que iria tomar banho e se arrumar. Desejou, também, boa sorte.

Diante de um nebuloso silêncio, Hayley e Anna se encaravam, analisando uma a outra. Anna levantou-se e caminhou até a mesa e puxou uma cadeira azul. Feito isso, repetiu com outra cadeira rosa. – Senta – ordenou com a voz mais fofa que Hayley podia descrever.

— Claro – obedeceu a sorridente, achando graça na menininha nada doce. – Você quem manda, Capitã.

Anna riu repentinamente, tanto quanto desfez o sorriso e lembrou que estava bancando a malvada. – Sem piadas!

— Ok!

— O que você está fazendo aqui?

— Seu irmão me convidou.

— Por quê?

— Somo amigos, por isso.

— Ele não tem amigas!

— Bom, então eu sou a primeira.

— Mentirosa… – rosnou, com os olhos cerrados. – Ele já te beijou?

Hayley percebeu o quão engraçado a pergunta podia ser, ainda mais na boca de uma criança fofa. – Amigos não se beijam.

— E se ele não fosse seu amigo…?

— Também não, eu gosto de ficar longe dos meninos.

— E por que está com o meu irmão?

Era uma pergunta válida, sim, mas realmente não sabia responder. No final, não cabia a ela explicar, e sim ao irmão. Torceu o nariz e riu-se. – Ele quis ser meu amigo, eu aceitei. Dei uma chance para ele, sabe? Nada além de amizade, prometo.

— Todas dizem isso, mas no final sempre fazem a mesma coisa – desviou os olhos e intensificou seu semblante irritado. Murmurou para si. – Me afastam dele…

Foi então que Hayley entendeu o problema, a repentina vontade de dar um abraço em Anna passou por sua cabeça. Ela devia passar bastante tempo ali, sozinha. E como alicerce tinha apenas o irmão mais velho, consequentemente este também ausente. Resultando em uma garotinha sempre sozinha. O olhar brincalhão se perdeu dentro daquele mar tão profundo, Alex era um iceberg e tanto.

— Eu não quero afastar o seu irmão de você – disse com um olhar cálido, do tipo que sua mãe lhe dava. – Na verdade, seria bem legal ter você participando da minha vida também.

— Hm – disse, ainda desconfiada. Hayley riu por sua inocência, mesmo diante de palavras sinceras, Anna estava arisca.

— Oras bolas, não acredita? – brincou, fingindo ofensa. Com as mãos na cintura e uma careta divertida. Anna gargalhou.

— Sem piadas! – aspirou, rindo.

— Ok! – fez continência e lançou uma piscadela para a menor, que estava mais leve – eu não sou como as outras feiosas que deram em cima do seu irmão, sou bem mais legal que todas elas.

— Duvido.

— Que abusada essa menina – resmungou cutucando a barriguinha de Anna, que explodiu em risinhos. – Então vou ter que provar.

— Quero só ver.

— Amanhã, eu e você sairemos para tomar sorvete, o que acha?

— Esquisito, eu nem te conheço.

Hayley riu e viu razão para a desconfiança. Garota esperta. – Então vamos sair juntas, hoje mesmo.

Os olhos opacos se iluminaram com uma alegria incabível, Hayley sentiu-se satisfeita por receber esse olhar. Completou. – Ele me chamou para sair com o Dan e mais uma amiga, mas nós duas sabemos o quanto isso pode ser chato – disse num sussurro, como maior segredo do mundo. – Você pode ser minha parceira de boliche e arrebentar com seu irmão.

— Eu adoraria arrebentar a cara dele, mas não conta nada para ele – sussurrou também. Uma lembrança a fez parar e endireitar o corpo. – Espera um pouco, você é a Hayley?

— Sim, eu sou a Hayley – disse, estranhamente feliz.

— Eu já ouvi falar de você – uma pausa dramática serviu como intervalo para, talvez, a maior besteira já dita por uma criança. A chuva começou a cair. – Você é a menina da mentira!

— O que?

— Sei lá, não entendi bem a história, mas tem alguma a ver com o Dan.

A sorte tinha uma toalha úmida sobre os ombros e lindos cabelos negros sedosos. Ombros largos e músculos definidos por trabalho braçal, também. Alex sorriu para as duas e foi até a cozinha, sua aparição foi de súbita interrupção para a conversa. Por fora, transparência normal, por dentro seu coração saltava a boca por Anna quase colocar tudo a perder.

— A conversa está boa aqui – disse fingindo indiferença.

— É – respondeu Hayley, o encarando não tão amigável. Corpo escultural não era distração para ela. Uma garota desconfiada pode ser uma arma.

Alex pegou uma garrafa d’água e ofereceu para a amiga, que negou lentamente com a cabeça. Anna tomou a frente.

— Alex, essa não é a garota da mentira? – perguntou apontando para Hayley.

Internamente desesperado, ele tentou procurar uma saída. Na melhor das hipóteses, encobrir uma mentira era a melhor saída. Até mesmo com Hayley perguntando:

— Garota da mentira?

Depois de uma pausa para equilíbrio mental, Alex respirou aliviado por ter uma resposta. – Ela não sabe que eu sou… Arco-íris – disse fazendo o símbolo de um arco-íris no ar. Hayley quis rir, mas se segurou. – Então ela pensa que nós estamos, enfim.

— Que estamos…?

— Ela deve ter escutado minha conversa com o Dan, e eu usei esse termo com ele. A garota da mentira, mas numa autodefesa. Só isso.

— Ah – responde com a leveza de uma explicação se contraponto com o peso de uma desconfiança.

Como se tivesse percebido o erro, Anna animou a sala com mais uma de suas falas fofas. Claro que por si uma criança não percebe um erro, tornando tudo sempre espontâneo.

— Claro que você é um arco-íris, bobão. Eu sempre soube. Não tem problema nenhum em ser um arco-íris, eu quero ser uma também.

Alex e Hayley se olharam e não conseguiu conter o riso, Anna não entendeu a graça e franziu a testa, descendo finalmente da cadeira. – Vocês grandões são esquisitos.

— Nós somos, Anna – concordou Alex.

— Bastante – afirmou Hayley, murmurando um desculpa silencioso para o amigo, que não conseguiu evitar a dor da culpa.

Bebeu, enfim, a água que estava na sua mão. A garota mais velha jogou-se no sofá e puxou uma revista qualquer, sinal de que a espera por Alex ainda era presente. – Se arruma logo.

— Marcamos às dez horas, relaxa.

— Coloca uma camiseta, no mínimo. Espera! – levantou-se ao perceber o pensamento divertido que tivera. – Me deixa escolher sua blusa.

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— Até ontem não queria entrar na minha casa, agora já quer ir ao meu quarto? Hayley, você é uma mulher confusa.

— Por que ela não queria entrar aqui? – perguntou Anna reafirmando sua presença ali.

Alex deu os olhos e olhou para Hayley, que explicou. – Não me sinto muito confortável em ambientes masculinos.

— Olha que mentirosa! – brincou Alex jogando a tampinha da garrafa na amiga. – Você é a mais macho que conheço.

— Sim, eu sou – riu, jogando a tampa de volta. – Mas nesse caso é diferente.

— Por quê? Você tem medo dos meninos? – Anna quis saber.

Hayley não respondeu de imediato. Sim poderia ser uma boa resposta, mas não explicativa o suficiente. Optou por contar parte da verdade. – Sim.

— Por quê? – foi a vez de Alex perguntar.

Olhando para os dois irmãos, ela respondeu. – Porque um deles me machucou de uma maneira irreversível.

— O que é irreversível? – questionou Anna.

Alex tomou a deixa. – Significa algo que não pode ser mudado, nunca. É uma palavra bem forte.

— Descreve bem – explicou a garota, dando os ombros e ansiando trocar de assunto. Alex percebeu o clima. – Sobre a roupa, ainda posso escolher?

— Claro, eu acho.

— Ei! Por que ela pode escolher suas roupas e eu não? – lamentou Anna levantando do sofá para conseguir cruzar os braços e fazer cara feia, demonstrando sua fofa indignação.

— Porque a Hayley não vai me fazer sair por aí feito um palhaço – a olhou – eu espero, pelo menos.

— Não duvide da minha capacidade – riu. – A Anna pode me ajudar, também. Topa deixar seu irmão um arraso?

— Sim! – animou-se a pequena com um sorrisinho no rosto.

Há tempos Alex não via aquele sorriso, e sentiu-se grato pela presença positiva da amiga. Por fim, terminou sua água, pegou a toalha e conduziu Hayley até seu quarto, aos fundos.

Era um quarto médio e escuro, tingido pelo cinza e azul marinho. Desde sua cortina grossa até um tapete felpudo no chão. A risada interna de Hayley acabou saindo por seus lábios ao perceber bem no quarto do amigo. Um detalhe ou outro era diferente, mas com certeza a unidade em si era igual.

— Seu quarto é igualzinho ao meu – riu-se. – Ou eu sou masculina, ou você é feminino.

— Ou apenas temos bom gosto, é uma hipótese também.

— Suas hipóteses são chatas, prefiro as minhas. Uma poltrona, que legal – disse correndo até o couro negro próximo a janela e se jogando ali. – Eu sempre quis uma no meu quarto, um a zero para você.

— É a poltrona da leitura – disse Anna apertando o couro com os dedinhos. – Ele nunca me deixou sentar aí – concluiu com um olhar sugestivo.

Hayley o entendeu e sorriu, também se sentindo um pouco intrometida de entrar em um novo ambiente e logo se instalar nele, sem qualquer permissão.

— Senta aqui comigo – ela abriu um pequeno espaço mais do que suficiente para a pequenina, que meio sem jeito tentou subir na poltrona bem mais alta que ela. Vendo a dificuldade, Hayley puxou-a pelos braços e a aprumou entre suas pernas. – Prontinho.

Alex sentiu uma imersão de felicidade tomar conta do seu coração. – Ok, agora me ajudem a escolher uma roupa.

Os minutos restantes foram tomados por risos e piadas, Alex vestia diversas camisas e, ao ouvir uma crítica muito dura, jogava a roupa nas garotas. O tempo foi suficiente para seu cabelo secar, e quanto ele vestiu uma camiseta vinho com o brasão dos Lannisters no centro, Hayley exclamou, feliz.

— Essa você vai me dar!

— Até parece!

— Leãozinho! – brincou Anna.

— Vai ser essa aqui mesmo. Eu acho que já estamos atrasados e ainda preciso levar a Anna na casa da minha tia.

— O que? – perguntaram as duas.

— Eu quero ir com vocês – miou, se encolhendo no colo da mais nova amiga esquisita.

— Ela vai com a gente – afirmou, abraçando-a.

— Rei, a gente vai voltar tarde.

— Amanhã é domingo – explicou a irmã. – E eu sempre acordo tarde no domingo, a gente não faz nada mesmo.

— Não, Anna. Você vai para casa da Tia.

— Alex, deixa, por favor – era a primeira vez que Hayley via o Alex responsável, irmão mais velho e protetor. Bonito de se ver. E bem sexy. – Eu preciso da minha parceira para te derrotar.

— Parceira de boliche – repetiu Anna, concordando.

Alex suspirou. – Ok, pode vir – ele foi interrompido por comemorações e teve que levantar a voz. – Mas, você tem que me prometer que vai se comportar.

— Prometo, prometo.

— Ela promete – disse Hayley.

— Eu estava falando de você, Hayley – completou rindo e desviando do travesseiro mais próximo que a amiga encontrou.

Os três arrumaram a rápida bagunça feita e saíram da casa, levando em suas mãos um guarda-chuva. Porque, caro leitor, a proteção de uma casa é válida, mas nem sempre podemos fugir da chuva. Nem sempre.


E aquela seria uma noite chuvosa.