Anna havia terminado de arrumar a mala, estava tudo pronto.

Desde nova ela desejava fazer parte dos rebeldes, desde a guerra. Tudo que se ouvia no colégio a respeito dos rebeldes era que, na guerra, quando procuravam armamento, eles liberaram uma substancia que matou pessoas doentes e idosas, mas ela se recusava acreditar nessa versão da história. Para ela, o que os matou foram às toxinas no ar liberadas pelos russos e, pelo menos, os rebeldes não eram pessoas covardes como os cidadãos, eles não fugiram.

Há aproximadamente uma semana ela esteve planejando uma fuga da cidade rumo aos campos rebeldes, que após a guerra, passaram a ser subterrâneos. Nos primeiros anos após a guerra, os rebeldes foram perseguidos e forçados inúmeras vezes a dizer onde ficava seu esconderijo, mas agora, depois de dez anos, ninguém mais se preocupa com isso, eles estão em extinção.

Ela pensou em pegar um trem, pois lá se certificaria da presença rebelde e poderia buscar informações com eles.

Para o plano realmente dar certo, ela precisaria da ajuda de seu irmão para fugir. Vendo que seus pais já estavam dormindo, jogou sobre si seu casaco mais quente, amarrou suas botas de cano alto e bateu duas vezes na porta de seu irmão. Ele abriu uma fresta e era possível ver que, embora estivesse tudo escuro, ele não estava dormindo, diversas roupas estavam jogadas sobre sua cama. Sua dedução era de que ele estava de saída.

– Greg, preciso da sua ajuda. - ela sussurra.

– Entra.

Fechando a porta atrás de si, ela consegue ver poucas coisas iluminadas pelos postes de luz do lado de fora: pilhas desorganizadas de livros do lado da cama, pôsteres de bandas antigas nas paredes e a janela se encontrava aberta, resfriando todo o cômodo. Se a janela estava aberta, com certeza ele estava de saída.

– Está de saída?- ela pergunta involuntariamente, mesmo sabendo a resposta.

– Sim, quer ir junto?- ele pergunta apenas brincando.

– Sair? Sim. Buscar drogas em uma festa? Não.

– Vai aonde então? São duas horas da manhã, você tem treino amanhã e tem que acordar cedo. - ele falava como se fosse o seu responsável, quando, na verdade, ele era um ano mais novo do que ela.

Sabendo que não poderia contar-lhe a verdade porque ele não a ajudaria e até a deduraria para evitar que ela fugisse, apenas fala a primeira coisa que vem em sua mente e que ele não precisasse perguntar sobre a mochila.

– Vou começar agora, Sula tem uma piscina.

– Está frio lá fora, você vai acabar morrendo de pneumonia. – é visível que parte dele estava preocupada e a outra, apenas debochando.

– E você, de overdose. – ele revira os olhos e simplesmente ignora esse comentário.

Ele a ajuda a sentar na beirada na janela e pega algo em seu guarda roupa. Abaixo de si, ela viu os outros dois andares da casa; só veio a reparar em como ela era grande agora e isso lhe deu pontadas de medo. Sempre se perguntava como Greg saía sem ser percebido, sem descer as escadas ou passar pela sala e, agora, ela desejava que não fosse o que ela estivesse pensando.

Ele volta com, no primeiro momento, cordas emaranhadas umas as outras. Prende uma parte dela no puxador na janela e larga o resto, revelando uma escada improvisada de cordas. Ela fica de pé sobre a beirada e, em seguida, coloca os pés sobre um dos degraus de corda, ficando imobilizada por um tempo. Seu irmão, vendo sua dificuldade, segura a corda tentando fazê-la balançar menos. Não dá certo.

– Consegue descer, Anna?

– Não, se eu me mexer, caio.

Ele rapidamente solta a ponta que está presa no puxador e a vai descendo aos poucos e, assim que ela para em solo, ele puxa a corda e desce sem maiores problemas. Joga a escada improvisada para dentro da janela e lança um ultimo olhar a sua irmã.

– Qualquer coisa, me ligue e... Chegue antes das cinco e meia.- ele acaba de falar e eles começam a caminhar em direções opostas.

– E... não morra!- ele grita de longe, e ela não consegue evitar um sorriso.

Greg era a única pessoa que Anna confiava de verdade. Seus pais nunca se preocuparam em investir nele, eles achavam perda de tempo, tendo em vista que ele tinha dificuldades na escola e era um fracasso em qualquer outra atividade, diferente de Anna. Todo o incentivo e pressão caíram sobre ela pela facilidade que possuía em qualquer coisa que fizesse, mas sinceramente, ela odiava tudo isso. Ela se sentia culpada por toda a falta de amor, zelo e atenção de seu irmão por parte de seus pais. Era como se ela estivesse roubando a cena. Percebendo isso, ela tentou suprir tudo o que seus pais não haviam lhe dado e eles passaram a ser a família um do outro.

Não demorou muito para que ela chegasse à estação de trem. Comprou seu bilhete e esperou em um vagão com poucas pessoas. A maioria estava dormindo, afinal, eram duas e meia da manhã agora.

Um homem chamou sua atenção. Esse mês houve pelo menos três competições estaduais de nado livre e, minutos antes de pular, ela sempre via um homem com chapéu preto social, sobretudo de algodão e um jornal nas mãos. Esse homem que ela estava olhando no trem se vestia da mesma maneira e também estava lendo um jornal.

Evitava encará-lo, desviando seu olhar para a janela. Através dela, era possível ver a fina garoa que caía sobre as casas, carros e seu próprio reflexo no vidro: Uma garota miúda com olhos claros grandes, seu cabelo castanho liso começava a ondular por conta da umidade e suas sardas estavam quase invisíveis em sua pele pálida. Ela e seu irmão eram muito parecidos, a não ser pela altura. Ele era bem mais alto.

Percebendo o movimento do homem, desvia o olhar em sua direção. Ele se levanta com sua maleta e jornal e vai até outro vagão, esquecendo seu estojo de óculos. Ela vai atrás para devolvê-lo.

Ele para no penúltimo vagão e o trem começa a andar minutos depois.

– Com licença... - ela diz baixo e ele rapidamente olha em sua direção. Ela estava cansada, ofegante e sua impressão era a de que o homem estava fugindo dela. Depois de encontrá-lo, a ultima coisa que imaginava era que aquele homem fosse tão novo.

– Ah, isso?- ele diz olhando o estojo. - Pode ficar. - depois de ver sua expressão de completa confusão, prossegue, deixando a mais perplexa. - Sou Matheus Leveck, ou só Mate, se preferir.

– Anna... - ela nem termina a frase e ele a interrompe.

– Anna Muniz. - Ele a olhava com uma expressão divertida e ela estava começando a ficar nervosa. Seus olhos verdes pararam nela e assim permaneceram. - Eu sei quem você é e tenho uma proposta.

– Pois então diga.- apesar da curiosidade de saber quem era aquele estranho e como ele a conhecia, essa foi a única coisa que disse. Ela deveria ter apenas ficado calada com uma expressão de medo, afinal um cara que ela não conhece acabou de chamá-la pelo nome.

– Anna , não sei se você já ouviu a história da substancia que foi liberada pelos rebeldes e matou pessoas, mas enfim, posso te contar algo a mais, conheço pessoas que estavam lá.- O olhar em seu rosto mostrava a ele que poderia prosseguir, mas ainda se encontrava em dúvida sobre qual era a proposta do moço e o porquê dele querer contar aquela história.- Os boatos contados até hoje não são apenas boatos, são reais. Meu pai e uma equipe de homens foram até a cidade para buscar armas em um laboratório e acabaram achando algo mais: a X-5a, como a chamamos. Esse era um reservatório para os vírus que eles faziam que acabou, acidentalmente, sendo quebrado. Quando quebrado, os vírus saíram e atingiram a parte de população com imunidade baixa.

– Aonde você quer chegar com isso?- ela a interrompe e olha para seus sapatos.

Não era fácil identificar rebeldes, pois fora de seus campos eram indiscutivelmente cidadãos, a não ser pelos sapatos. Ninguém nunca pareceu perceber isso, mas era algo fácil de explicar: Sapatos nas cidades eram caros, quem possuía mais de cinco pares era considerado rico e, como os rebeldes mal conseguiam comprar seus disfarces de cidadãos, não sobrava dinheiro para os sapatos. A única saída deles era comprar calças compridas que escondessem seus tênis comuns. E os sapatos desse homem eram perfeitamente sapatos de cidadãos.

– E você não é um rebelde, como posso acreditar em você?

– Não sou, mas já fui. - com isso, ela se cala e ele prossegue. - Quando eu falei que atingiu pessoas com imunidade baixa, eu incluí crianças. Na verdade, idosos e doentes só morreram porque estavam fracos e não resistiram à mutação, já crianças...

– Mutação? E o que aconteceu com as crianças?

– Sim, mutação. Atingiram algumas crianças e fizeram com que fossem mais desenvolvidas em alguma coisa. Houve também as mutações maléficas, mas seus portadores provavelmente estão mortos.

– Por que está me falando isso?

– Apenas tente juntar as peças, Anna. Pense nas crianças há dez anos atrás e porque de eu estar lhe contando isso...

Ela ficou paralisada quando percebeu. A dez anos atrás, ela tinha apenas oito anos e, só havia um sentido para ele lhe falar isso.

– Eu sou uma mutação? Não pode ser. - ela o olhou horrorizada e ele não possuía mais os olhos fixos nela, olhava para baixo agora. Era menos pressão ver apenas seu cabelo dourado ao invés de seus olhos verdes instigantes.

– É verdade, confirmei isso nessas últimas semanas. Você consegue ficar tranquilamente meia hora submersa na água e isso é incomum.- mais uma dúvida se plantou na mente de Anna, até que ele diz.- Estive te espiando e vi você treinando.- e ela confirma sua suspeita.

– Vvocê também é, digo, um mutante. – deduziu, gaguejando um pouco. Estava envergonhada de saber que alguém monitorava seus passos, ouvia as bobagens que falava, isso sem contar que seu olhar a intimidava. Era como se ele quisesse saber dos segredos mais íntimos que sua alma guardava. – O que sua proposta tem a ver com isso?

– Cipriani, nosso líder, foi a primeira cobaia. O acharam no laboratório onde estava a X-5a e ele ficou conosco no abrigo por um tempo. Descobrindo sua habilidade, se aprofundou no estudo de mutações, roubou papéis, a máquina quebrada e , aos poucos, montou a mutações, um órgão secreto responsável por ajudar mutantes a não exporem suas habilidades no meio em que vivem. Você e seu irmão estão sendo convidados a se juntar a nós.

– Meu irmão? Ele é a pessoa mais normal que eu conheço e...ele nem está aqui!- seu nervosismo aumentava a medida que aquele menino andava de um lado para o outro.

– Está sim, mas em outro vagão. Deixei sua touca de banho no bolso da calça dele e ele está atrás de você para devolvê-la. - raiva tomava conta de Anna. Como um estranho havia feito isso? Havia entrado em sua casa, obviamente. - Acho que ele irá te matar.

– Qual é a sua? Eu mal te conheço! Você não pode simplesmente entrar na casa das pessoas e mexer em suas coisas. - ela gritava agora.

– Eu posso, mas não devo.- Ela iria responder, mas Greg entra no vagão. Ele os olha perplexo, até que resolve dizer algo.

– Anna, se queria fugir com seu namorado não precisava dizer aquela desculpa horrível, apenas me dissesse a verdade, eu entenderia. Talvez eu até não fosse com vocês. - ele disse isso estendendo a touca de banho.

Ela tentava desmentir a dedução de seu irmão, até que nota a ausência repentina de Mate. Ele havia sumido do vagão, mas ela suspeitava que ele apenas se dirigiu para o ultimo, e assim, foi atrás dele. Greg a seguiu sem entender nada.

O trem estava em movimento, o que dificultava a passagem. Uma mão do outro lado a pega pelo pulso e a puxa para o outro vagão. Ela cai bruscamente no chão frio.

Ao contrário do que se pensava, essa mão não era de Mate, mas sim de um garoto com pele bronzeada, cabelo cacheado e sorriso simpático que se apresentou com Will. Mate se encontrava na varanda do vagão observando a paisagem superficialmente.

Will auxilia Greg a passar também e Mate vira em direção a eles.

–Bem, não estava nos planos, mas eles estão chegando. Sigam-me.- assim que termina de falar, ele pula da sacada. O restante não entende o porquê daquela ação, até que a porta é aberta e aparecem pelo menos meia dúzia de homens armados.