Aceitar a ideia de ter que realizar uma mudança em pouco tempo ainda era inacreditável para Helise. Não poderia sair simplesmente de sua casa. Não daquele jeito. Era demais. Depois do jantar o silêncio entre mãe e filha se tornaram maiores. O clima estava tenso, bastava um olhar para que entendesse o pensamento uma da outra.

Geórgia colocava os pratos dentro da pia enquanto sua filha estava estática perdida no tempo. Seria melhor que ela continuasse a pensar em tudo o que estava para acontecer dali em diante. A viu sair a passos lentos da cozinha. Obviamente que ela iria para o quarto. Mais uma vez recorreu ao seu caderno de desabafos. Helise precisava se acalmar.

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"Como é que a minha mãe pode fazer isso comigo? Ela poderia muito bem dizer qualquer coisa idiota que viesse a cabeça, mas uma mudança era algo que eu não esperava acontecer de algum jeito. Sei que a vida segue em frente e que foi nessa mesma casa em que vi o corpo do meu pai sem vida... eu não quero ter que abandonar tudo o que vivemos. Em cada pedacinho dessa casa há memórias doces e felizes. Talvez minha mãe não lembrasse de tudo isso, mas eu me importava. Muito até! Meu maior desejo é que ela volte a ser uma pessoa doce e amável como antes. As vezes chego a acreditar que ela vai assumir algum relacionamento, mas não tenho certeza. Será que vou enlouquecer?"

Decidida, Helise vestiu o seu moletom e saiu de casa. Não queria dar informações para sua mãe para onde iria. Na verdade ela nem sabia qual seria o seu destino final. Só precisava ficar algum tempo longe de casa para conseguir entender a noticia que sua mãe havia lhe dado. Mesmo que Helise não fosse uma pessoa que tinha amigos ela não aceitaria facilmente a mudança. Além de tudo o que havia conquistado, as memórias era o de mais importante que ela possuía e Geórgia queria acabar com tudo. Havia apenas um lugar que ela lembrou que poderia ir. Se era arriscado demais Helise não queria saber. Faria algo de diferente pelo menos uma vez sua vida.

Caminhou a passos largos em direção ao centro cultural da cidade. Ali vários artistas locais se reuniam para mostrar os seus mais variados talentos. Aquele final de semana estava prometendo muitas surpresas. As ruas estavam bem movimentadas, algumas pessoas do colégio apareceram em seu caminho, mas Helise apenas deu de ombros. Em pouco tempo ela estava adentrando o local para melhor aproveitamento do show.

Era engraçado observar todas aquelas pessoas felizes. Parecia que a vida delas era perfeita e que não havia um único problema que os impedissem de seguir suas vontades. Foi nesse impulso que Helise ficou tentada a entrar no centro cultural. Houve divulgação intensa do evento que aconteceria naquele local. Era apenas a curiosidade que falava alto demais. A vantagem de ser invisível era que nenhuma daquelas pessoas iriam se importar com a sua presença. Olhariam para ela durante alguns segundos, mas em pouco tempo seria esquecida.

Procurou por um lugar disponível e logo se pôs a curtir a mostra de talentos. O grupo que se apresentava era composto por meninas. Um grupo bem misto. Ao soar do primeiro toque da música houve uma explosão de gritos animados. Pelo jeito os espectadores conheciam. Infelizmente Helise desconhecia aquelas músicas, mas a energia que emanava durante a apresentação era intensa. Quase impossível ficar parado. Era como assistir os seus filmes favoritos. "Ela Dança, eu danço" nunca a abandonava. Amava o bom e velho clichê.

Um pouco mais de trinta minutos a categoria masculina começou a se apresentar. A energia de cada grupo crescia com uma força impressionante. Impossível dizer quem era o melhor de todos. Ela prestava a atenção a tudo o que acontecia. Até filmou uma parte da apresentação quando a categoria "solo" foi anunciada. Infelizmente seu celular começou a vibrar com as mensagens que Geórgia estava lhe enviando. Ignorou por algum tempo. Precisava terminar de ver a apresentação e logo voltaria para casa. Permitiu-se ver mais três apresentações solos antes de sair a passos largos do lugar.

Helise precisava voltar o quanto antes para casa ou acabaria tendo que lidar mais uma vez com o interrogatório de Geórgia. Para aquela noite ela só queria saber de paz e tranqüilidade. Com o celular em mãos ela começou a fotografar parte daquele cenário. As fotos seriam as únicas lembranças que ela teria do lugar que durante anos ela designou como lar. Não queria ir embora de São Francisco. Ela estava tão distraída tentando capturar o melhor ângulo que apenas sentiu o seu corpo sendo jogado para trás com o impacto.

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— Me desculpe, eu sou um desastrado. — disse o rapaz a ajudando a se levantar — Você está bem?

O rapaz tentava procurar algum sinal de machucado, pois o silêncio de Helise estava deixando-o assustado. Helise sabia que era errado falar com estranhos, mas aquele rapaz estava preocupado com ela. Tinha que dizer algo.

— Estou. Não precisava se preocupar.

Por algum momento Helise sentiu vontade de conhecer aquele rapaz sem a máscara. Não parecia ser alguém capaz de oferecer algum risco a sua vida. Ela o viu se aproximar de uma moto.

— Eu preciso ir. Foi um prazer.

Em poucos segundos o rapaz já estava ajustando o capacete.

— Moço? — chamou Helise.

— O que foi?

— Tenha cuidado ao voltar para casa.

— Eu terei.

Seria maravilhoso se Helise pudesse ver o sorriso que o rapaz deu. Era diferente a recomendação daquela garota. Jamais ele esqueceria aquele pedido carinhoso assim como o detalhe delicado do rosto de Helise.

***

Helise voltou para casa o mais rápido possível. Geórgia não estava tão paciente como imaginava. Agradecia mentalmente por conseguir tirar um tempo antes de ter que lidar com a pressão de ter que guardar todos os seus pertences em uma caixa. Durante o resto da noite foi difícil manter os pensamentos em ordem. Por mais que Helise tentasse pensar numa nova fase da sua vida mais complicado se tornava. Geórgia já tinha começado a embalar seus pertences. Já tinha contatado a empresa de mudanças e tinha caixas o suficiente para deixar tudo embalado. Com muito pesar em seu coração Helise começou a retirar os seus poucos livros de sua pequena estante. Não eram muitos, mas eram os mais especiais de toda a sua vida. Presentes estes que foram seu pai que lhe dera. Tinham um significado único. Os devorou em poucas horas assim que rasgou a embalagem. As vezes os relia só para sentir-se mais próxima de uma realidade que nunca lhe pertenceria. Essa era a mágica criada por autores. Eles parecem saber a resposta quando alguém está precisando de algum conforto. Era uma mágica maravilhosa.

Aos poucos a caixa ia ficando cheia e deixada de lado para que outra pudesse ser preenchida. Os objetos que decoravam o espaço foram embalados com plástico bolha para que não sofressem maiores danos durante o transporte. Cada um deles tinha uma importância valiosa, pois a maioria foi o seu pai que lhe dera. O seu canto, o seu refúgio ia perdendo aos poucos uma parte da sua identidade. Agora era apenas um quarto com paredes lisas e sem graça. Nem mesmo a cor que Helise tanto gostava a animava.

Uma batida na porta fez com que ela deixasse de lado a caixa de memórias que ia ser embalada.

— Precisa de ajuda? — perguntou Geórgia.

— Não — murmurou Helise enquanto enrolava a caixa decorada.

Geórgia olhava curiosa para o objeto nas mãos da filha. Nunca tivera coragem de perguntar-lhe sobre as coisas boas que ela guardava na caixa. Lembrava de que ela e o marido lhe deram essa caixa no aniversário de quinze anos. Quantas lembranças deveriam ter ali?

— Tem certeza? Ainda tem muita coisa para ser embalada.

— Tenho toda a certeza do mundo. Acha que está sendo fácil tirar tudo de seu devido lugar e jogar dentro de uma caixa fria e sem importância? — retrucou a jovem. — Claro que não.

— Desculpa filha. Espero que possa entender tudo o que está acontecendo. Precisamos começar uma nova jornada.

Helise deu de ombros.

— Só não fica pedindo desculpas o tempo todo... isso é irritante demais. Quero terminar isso sozinha.

— Como quiser filha. A equipe da mudança vem no domingo de manhã. — ela fez uma breve pausa — E também já resolvi sobre a sua transferência para a escola nova.

A garota revirou os olhos. Uma escola nova não tinha nada de interessante. Poderia fazer algo diferente dessa vez se conseguisse convencê-la com facilidade.

— Não posso ter aulas em casa?

— Não mesmo. A sua médica aconselhou de que seria melhor estar com pessoas da sua idade, ter novas influências. Precisa ter uma vida normal, sem traumas.

A conversa se deu por encerrada quando Geórgia saiu do quarto. Talvez ela tenha sentido que uma discussão iria ser iniciada. Helise não gostava de aprender em casa, mas passou a cogitar a ideia logo depois de receber a grande notícia. Não queria que as pessoas pensassem que ela fosse uma verdadeira estranha. O ano letivo anterior lhe rendeu inúmeros olhares de piedade, mas também de chacota. Nem todos souberam respeitar o seu devido espaço. Foi se fechando cada vez mais num casulo impenetrável. Não havia mais brilho e cor que a trouxesse de volta para o que ela foi um dia.

Concluiu mais uma caixa. Levantou-se para se preparar para uma noite de descanso. Algo chamou a atenção de Helise ao passar na frente do quarto de sua mãe. A porta estava apenas encostada quase não dava para ver o que acontecia dentro do cômodo. A garota sabia o quanto era errado espionar as pessoas, mas não conseguia conter-se de curiosidade.

— Senhor, me perdoe por não ser uma mãe mais presente na vida de Helise. Sei que nos últimos meses a nossa relação tem sido complicada demais. — ela respirou fundo — Espero que ela possa entender que essa mudança é necessária para tudo o que tem acontecido de ruim na nossa vida. Estou cansada de ver como as pessoas nos olham em público. É pedir demais que ela possa levar uma vida como qualquer outra pessoa? Me dê forças para continuar lutando por ela e pela sua saúde.

Rapidamente Helise se afastou da porta indo em direção ao banheiro. Seu coração estava acelerado e ela temia que sua mãe pudesse descobrir que ela ouvira algo. Por que é que Geórgia ainda insistia em fazer com que tudo se resolvesse de algum jeito? Não havia como voltar atrás depois que a desgraça estava feita. A jovem não conseguia entender muito bem o que acontecia para que sua mãe sempre mudasse os seus pensamentos. Viver com ela era o mesmo que estar pisando em ovos todos os dias. Tinha que ter muito cuidado ou a sujeira se espalharia. Fez tudo o que precisava antes de voltar definitivamente para o seu quarto.

***

A manhã estava fria. Helise se recusava a sair de debaixo das cobertas. O seu mau humor já se fazia presente desde que ouviu o caminhão da mudança encostando na frente de sua casa. Não precisava ser tão cedo. Queria que aquele dia passasse o mais lento possível, pois assim teria tempo de desapegar dos mínimos detalhes que um dia compuseram a sua vida. Com um pouco de esforço ela logo foi cuidar de sua higiene matinal antes de dar continuidade ao trabalho da noite anterior.

Ver todo aquele movimento de um lado pelo outro era de dar tontura. Os homens que ajudavam a carregar as inúmeras caixas eram bem fortes. Jamais que ela conseguiria carregar uma daquelas caixas sozinha. Geórgia apareceu diante da filha toda sorridente. Ela não entendia o motivo de tanta alegria. Apenas deu de ombros e se trancou no banheiro pelos próximos minutos.

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Estava doendo demais ver a casa no estado em que se encontrava. Já não havia mais nada que deixasse claro que uma família um dia ali viveu completamente feliz. Não havia registros e nem uma identidade. Era apenas um espaço vazio, frio e sem vida.

— Helise, precisa terminar de embalar as suas coisas. — disse Geórgia simplesmente.

— Faltam poucas coisas. Não vai levar muito tempo.

Imediatamente a garota retornou para o quarto e retomou a tarefa da noite anterior. Assim como ela havia dito não levou mais tempo do que o necessário. Ouviu Geórgia dizendo onde ficava o quarto da garota e alguns dos homens pediram licença para retirarem as caixas. Seu quarto era o único a ser esvaziado. Em três viagens todas as caixas já estavam dentro do caminhão. Seguiam em direção ao seu novo "lar". Antes mesmo de seguir para o carro, Helise deu a última olhada em cada canto que pode. Seu coração ficaria para sempre ali junto com as melhores experiências. Queria acreditar que a sua nova jornada seria produtiva de algum jeito. Nunca foi tão positiva quanto a sua mãe, mas sentia que precisava fazer um pouco de esforço para que o universo colaborasse.