Yabbat não parecia inteira recuperada quando Namor a acordou para comer. O príncipe deixou-a descansar por uma a duas horas, pois ela já havia dormido na descida para Atlantis, mas mesmo assim existia algo em sua face que escorria exaustão. Não que ela fosse se queixar, é claro. A Cisne Negro pouco reclamava sobre as condições de seu corpo, como dor ou fome. Estava acostumada à escassez, à sofrimento e insônia. Somente fritou o peixe que ele trouxera com sua visão de calor, se alimentou com parcimônia e enfim questionou como chegariam ao templo.

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Com o rosto sério, Namor prontamente respondeu que chegariam… Nadando. Ela não riu, nem debochou de sua tentativa inócua de irritá-la.

Agora, lá estavam os dois de volta a água.

Namor seguia acima das construções abandonadas, segurando o Cubo Cósmico enquanto Yabbat vinha atrás de si, protegida por sua esfera de energia psiônica. O oceano jazia muito silencioso, quase morto, mesmo que já tivessem percorrido um longo trajeto. Algas. Corais. Anêmonas. Crustáceos. Encontraram um cardume e outro, mas não sinais de atlantes.

O príncipe reprimia o pânico crescente em seu peito, embora sua garganta doesse e seus dentes pressionassem demais sua mandíbula. A cidade estava melhor que a colônia no Mar Mediterrâneo, no entanto o vazio das casas e das edificações públicas era inquietante. Parecia jamais ter passado por todas as reformas e restaurações que ele próprio havia promovido em seu planeta durante os anos de reinado, de modo que a miríade de cores que se lembrava de ver na capital se reduziram a um tom desvanecido, enevoado pelo azul profundo.

Mais uma vez, tinha que concordar com a afirmação mórbida da Cisne Negro: Algo aconteceu ao seu povo, ou melhor, contra o povo atlante daquela Terra. Algo antes de Thanos.

Mas o que? E onde estava a sua versão daquele universo, regente deste reino em pedaços? Morto? Desaparecido?

Apesar da calmaria das águas, o tumulto em seus pensamentos tornava-se um maremoto. Lembrava-se de seu povo na outra Terra, seu reino flagelado por uma guerra tola contra wakandanos. Tentou a paz com T’Challa e sua irmã, a atual rainha, e no fim… Destruição. Além disso, as Incursões ainda ameaçavam o universo, todos os universos, e se dependesse dos Illuminati, os atlantes seriam apenas alguns dos muitos a morrer num planeta prestes a ser abandonado.

Sabia do plano de Reed. Sobre a nave espacial, uma arca com poucos afortunados, que iria partir da Terra e deixá-la para saciar a fome de Rabum Alal.

Precisava tirar esses pensamentos de sua cabeça, portanto reafirmou o plano para si: Primeiro, abrir caminho interdimensional entre esta e a outra Atlantis por meio da Biblioteca de Mundos. Remover seu povo, ou o que restava dele, para esta capital. Depois, quando estivessem mais seguros, decidiam o que fazer com as novas Incursões. Não raramente, ele pensava em explodir o outro planeta.

Tudo poderia dar tão errado… E o vazio da cidade era uma lembrança constante do que perderia. Namor fechou os olhos com força por um breve instante, mas não desejava transparecer vulnerabilidade à Yabbat.

Ela estava sempre em silêncio, observando tudo para depois destilar verdades horrendas. Teria lido seus pensamentos? Teria conseguido acompanhar as ondas furiosas e salgadas de suas lembranças? A voz dela logo revelou, um tanto abafada por estar restrita a sua esfera de energia.

Não o alfinetou com deboches, porém. Cortou a quietude fazendo-lhe uma pergunta difícil, como sempre. Yabbat era uma mulher de questionamentos incômodos, o que o deixava intrigado. Como alguém assim era tão resoluto em sua convicção num deus devorador?

— Para um príncipe cauteloso, você confia muito em sua teoria de que tal porta levará à Biblioteca de Mundos. O que o faz o templo tão especial para ter tanta certeza?

O príncipe ficou aliviado por poder se distrair com explicações sobre Atlantis, mesmo que não fosse exatamente confortável com aquele templo envolvido, com aquela deusa em questão… Não se virou para responder, mas sua voz era forte o bastante para que Yabbat escutasse perfeitamente, mesmo debaixo d'água.

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— É um templo dedicado para a deusa regente do mar infrutífero, das zonas abissais. Einalia. Ela tem muitas facetas, — Disse sem parar de nadar, cada vez mais próximos do seu destino. — Uma delas é de conhecedora dos caminhos ocultos e encruzilhadas, portadora da tocha de fogo lunar. A chave é um dos seus símbolos e em seu templo há a porta guardada por serpentes, que se abrirá para trazer a salvação aos fiéis atlantes.

— Nunca foi aberta?

— Não.

— Por que?

Ele finalmente se virou para encará-la.

— O culto a deusa foi abandonado com o passar dos anos. As pessoas foram deixando de venerá-la por seu aspecto sombrio… E no fim, seu templo foi incluído numa das áreas a receber oxigênio. — Ele deu de ombros. — Ninguém mais ia lá e ninguém mais se importava.

— Pensei que honrasse mais o deus que às vezes fala. Netuno. Mas parece saber muito desta deusa…

— Eu honro Netuno, Cisne. Não preciso parar de honrá-lo para conhecer outro deus… Sem falar que faz parte da história atlante e é dever de um príncipe dominá-la.

Ela retribuiu o olhar com cautela. Ele, por sua vez, não diria que ia até lá para escapar da dura juventude na corte atlante, para fugir das ofensas de seu avô Thakorr e as humilhações por suas origens mestiças. Ele nunca revelaria à ninguém e o mais próximo que chegou disso foram reclamações vagas de sua infância que fez a Rogers, Jim e Barnes.

Mais grave que suas histórias inúteis e tristes, ele não diria à Yabbat que as lendas atlantes sobre Einalia mencionavam que o portal somente se abriria a um rei digno de sua salvação, um regente incorruptível… E ele já tinha passado desse ponto há muito tempo. Portanto, apenas falou:

— É um lugar silencioso para mentes ocupadas.

Ela soube que existia algo mais naquela história, mas deixou passar.

— Então ela é uma deusa de águas mortas e aquela que ilumina a escuridão. — Yabbat concluiu. — Ela rege o submundo e, ainda assim, é uma salvadora?

Namor tinha os olhos atentos ao contornos de sua pele branca dentro da bolha de energia psiônica, os cabelos ainda úmidos sobre os ombros.

— É. Ela pode ser.

*

Chegaram no templo, uma estrutura relativamente afastada das demais construções da capital atlante. A entrada era uma caverna esculpida de modo que seus entalhes e inscrições parecessem naturais, e seus largos corredores cintilavam com o brilho de certas plantas bioluminescentes. Era fácil se perder nos caminhos labirínticos do templo, entre estalactites e as cortinas de algas, mas Namor havia memorizado o percurso até o cômodo central, hoje injetado de oxigênio… Ou ele esperava que sim, naquela realidade.

O lugar havia passado por tal reforma há muitos anos, antes mesmo do príncipe nascer. Como já havia sido abandonado, o oxigênio impedia que animais marinhos tentassem se abrigar lá e assim danificassem o templo. Foi usado também durante um breve período pela monarquia como um local para torturas e confissões, pois era repleto de figuras assustadoras, além do ar para asfixiar os inimigos da coroa. Depois foi abandonado de novo, sem nenhuma função.

Submergiram no salão principal, o que deixou o príncipe mais aliviado. O caminho foi descer e descer para então subir para aquele bolsão de ar. Realmente havia oxigênio, mesmo que estagnado. A água por onde vieram formava um largo poço no centro, dividindo o recinto de pedra em dois. Namor acreditava que Yabbat não conseguiria enxergar na escuridão, então pediu que ela aguardasse enquanto se dirigia até o mecanismo que acendia o fogo lunar. Houve um tranco e tremor, pois há muito tempo não se mexia em nada ali.

A luz veio do alto, das três imensas esculturas de serpentes. As escamas de obsidiana delas refletiram o brilho azul esverdeado, seus olhos se acenderam na mesma cor. Pareciam vivas e sibilando. Duas delas jaziam com expressões serenas, a terceira - no meio - tinha a sua boca aberta e dentes longos, feroz. A Cisne permaneceu na água salgada, contemplando a beleza sombria do teto. Havia algo de místico em vê-la dessa forma, mesmerizada sob o fogo lunar, e Namor parou um instante para observá-la. Tudo o que Yabbat disse foi:

— Você disse serpentes. São dragões.

— A nomenclatura está nos textos antigos.

— O do meio tem patas. Dá pra ver as garras dele. Não pode ser uma serpente.

Ele massageou as próprias têmporas com uma mão, segurando o Cubo Cósmico na outra. Namor sabia que era considerado uma pessoa inconveniente por muita gente, mas achava que a Cisne poderia superá-lo.

— Eu não vou discutir fisionomia de dragões e termos corretos com você, Yabbat.

A Cisne o encarou com desprezo e saiu da água, embora tenha ido até a face oeste do cômodo, um pavimento no lado oposto de onde estava Namor. A face oeste era um pavimento igual ao leste, mas em vez do imenso portal na parede, redondo e inteiro entalhado em pedra, existia um grande espelho de obsidiana. Tanto o espelho quanto o portal eram emoldurados por abalone, o que conferia um tom esverdeado ao recinto.

Enquanto ela conferia os estranhos detalhes do templo, como as duas imensas ânforas e as inscrições de atlante arcaico, Namor se virou ao portal. A abertura para a tal chave ficava ao centro, exatamente onde os desenhos tracejavam um redemoinho. Ele levitou suavemente até este ponto, suas mãos hesitantes. Einalia requisitava um rei honrado. O Cubo Cósmico tinha um custo.

— Você vai seguir em frente?

A voz de Yabbat ecoou do outro lado. Talvez tivesse sentido seus pensamentos, talvez não.

— Sim.

Esperava que todo o seu ser, seu luto, sua ira e seu espírito fossem o suficiente, pois não tinha mais nada a oferecer. Aproximou o Cubo da abertura para a chave, sentindo sua energia latente assim como sentiu ao segurar a Joia do Poder há muito tempo, e por fim liberou o seu poder.

Era como segurar uma estrela pulsante com as mãos nuas. Derretia e inflamava suas veias com uma sensação que jamais havia tocado seu corpo, iluminando seus olhos e todo o interior do templo. Ele gritou longamente, entre uma súplica e outra em sua língua nativa para os deuses. Que ele fosse forte o bastante. Que seu povo vivesse. Que encontrasse um caminho, uma solução, por mais que o resto de si perecesse.

Os alicerces da construção vibraram devido a energia. A luz se intensificou.

Mas ele não tinha uma chave. Não era honrado aos olhos da deusa. E não conseguia arcar com os custos do artefato em seus dedos.

Indigno. Menos que nada, como assim sempre foi lembrado.

O clarão do Cubo se tornou um diminuto lume azul e caiu antes que Namor se ajoelhar no piso frio, diante do portal de Einalia... Ainda fechado.

Silêncio.

O príncipe tremia, seus punhos cerrados. Fechou os olhos, rangendo os dentes num lamento indistinto.

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— Príncipe…

Ouviu o sussurro da Cisne Negro, um chamado distante. Ele não se virou, nem ao menos a encarou de esguelha. Seu punho acertou o portal a sua frente num gesto repentino enquanto um urro de fúria escapava de sua garganta. Soube que imediatamente que sua pele começara a sangrar, mas não conseguiu se importar com isso ou com os estalos que seu golpe provocara na pedra. Seu desespero, sua dor e sua cólera estremeceram o templo e oceano, mas a porta permaneceu selada, indiferente ao seu sofrimento.

Não era um rei honrado.

Ele esperou a risada da Cisne Negro entre o ruído do tremor, acusando-o de ser tolo e indigno, no entanto aquele som jamais veio. Namor se levantou, virou em sua direção e congelou no mesmo instante.

Ela segurava a própria cabeça com as mãos, seu rosto torcido. Piscou seus olhos, lapsos de luz azul escapando de suas pálpebras, assim como o Cubo Cósmico cintilava no chão. Era igual ao seu surto anterior, quando ocorreu uma Incursão azul.Namor deu um passo à frente, mas as rachaduras provocadas por seu soco se alastraram pelo templo e feriram as esculturas de pedra. Com um barulho mastigado, a serpente central do teto fraturou-se. Sua imensa figura de obsidiana preta despencou nas águas que separavam os dois, levantando ondas.

E com esse novo abalo no templo, a Cisne Negro - já debilitada - se desequilibrou e caiu nas espumas salgadas.

Yabbat!

Somente bolhas responderam. A Cisne tinha boa constituição física, aguentaria um pouco da pressão das profundezas… Mas respirava oxigênio, como todas as criaturas da superfície; além disso, estava fraca. Namor não parou para pensar, apenas deixou o Cubo Cósmico e mergulhou atrás dela.