— Então, uh, aonde a gente vai? — Tyler perguntou, remexendo-se no banco estofado e apoiando o cotovelo sobre a janela aberta, por onde uma brisa arrepiante e bem-vinda soprava.

Era fim da tarde de sábado. O pôr-do-sol esbraseava o céu em tons alaranjados, mas talvez já fosse ser noite quando chegassem ao seu destino — levando em consideração que Lana já estava dirigindo há pelo menos quinze minutos e que Tyler, completamente sem pistas de para onde estava sendo transportado, começava a suspeitar que a amiga desejava sair da cidade e o abandonar no meio do nada.

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— Estamos quase chegando, então aguenta aí mais um pouco — respondeu ela, um sorriso lépido no rosto.

— Deve ser a quarta vez que você diz isso — retrucou ele, suspirando. Normalmente gostava de passeios de carro, ouvindo músicas e contemplando a paisagem ao redor como se fosse atemporal, e nem se importava quando a viagem era extensa. No entanto, isso constava para quando era um percurso relaxante, fosse a esmo ou com um ponto de parada definido. E se tinha algo que não estava agora, era relaxado, principalmente em virtude da existência de uma vaga ideia de quais eram as intenções da amiga com aquele passeio supostamente inofensivo.

Olhou de soslaio pra Lana. Ela parecia satisfeita com alguma coisa, como se estivessem seguindo todas as diretrizes de seu plano, com um meio-sorriso faceiro consolidado no rosto enquanto zumbia consoante a melodia da música transmitida pelo rádio.

Então a música anterior terminou e um ritmo muito — e infelizmente — familiar estimulou os ouvidos de Tyler.

— Cara — queixou-se —, parece que agora eu escuto essa música em todo lugar. E ela fica na cabeça. Antes até gostava dela, mas agora é intolerável.

— É a vida — respondeu ela, animando-se especialmente quando o refrão começou a tocar e acompanhando-o com a própria voz, alteando o tom apenas com a finalidade de provocá-lo: They call you a cry baby, cry baby, but you don't fucking care.

Tyler gemeu em desgosto e, daquele momento em diante, decidiu plugar os fones de ouvidos e se contentar com a própria playlist para evitar mais dissidências musicais.

Depois de aproximadamente duas músicas com uma média de quatro minutos cada e realmente ter escurecido mais um pouco, Lana finalmente anunciou que haviam chegado e estacionou o carro em um dos três espaços disponíveis consecutivos numa fileira de carros. À frente, mais carros se perfilavam e uma enorme tela preta se assomava a alguns metros dali, de um lugar em que poderiam enxergar o que passasse nela perfeitamente.

Tyler sorriu, e o ânimo que não sentira em hora alguma finalmente começou a se afirmar.

— Cinema drive-in! Gostei disso.

— É, e eu paguei seu ingresso, então você tá em débito comigo — disse Lana, num tom de arremate. — A propósito, você trouxe dinheiro? Porque eu resolvi não trazer comida de casa, então a gente vai ter que pegar alguma coisa dos foodtrucks se ficarmos com fome.

— Trouxe. Você quer comprar agora?

— Ainda bem que perguntou. Tô morrendo de fome.

Eles saíram do carro, e Tyler se surpreendeu ao sentir o frio encrespando a pele de seus braços — se soubesse para onde iriam, teria vindo mais agasalhado. Se Lana tivesse se prevenido e trazido um casaco pra ela e esquecido de avisá-lo, ela iria pagar.

— Que filme é? — Tyler perguntou, enquanto cruzavam pelos espaços entre os outros carros até os foodtrucks próximos à telona. O lugar estava cheio: um grupo de jovens adultos fumavam escorados aos carros, alguns adolescentes estavam sentados sobre os capôs dos carros, conversando e rindo, e certas pessoas haviam trazido toalhas de piquenique e comida de casa o bastante para se empanzinarem.

— Psicose, mas em melhor qualidade ou algo assim — respondeu. — Sei que é um clássico e tudo, mas nunca assisti.

Ele deu de ombros.

— Já vi, mas assisto de novo pela trilha sonora.

Chegaram aos foodtrucks — apenas três: um vendedor de pipoca, tanto doce quanto salgada, uma hamburgueria ambulante e uma sorveteria com uma pluralidade de opções. Tyler pediu um x-burguer e um copo de refrigerante; já Lana optou por um sanduíche natural vegetariano e suco de laranja, fazendo com que se sentisse um carnívoro nocivo com uma alimentação cem por cento insalubre.

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Já havia anoitecido e, como haviam chegado com antecedência para evitar complicações, o filme ainda demoraria um pouco para começar. Então, gastaram tempo perambulando por aí enquanto conversavam e comiam — por maior a aversão que Tyler tinha por lanchar em pé, quiçá em movimento, Lana parecia não conseguir ficar quieta —, até que tivessem acabado as respectivas refeições e Lana dissesse para irem ao carro para buscar um casaco pra ela.

Então, quando estavam no caminho de volta pro veículo, Tyler avistou de longe um carro familiar e ele se viu estancando no caminho involuntariamente. E, também involuntariamente, as palavras saíram de sua boca:

— Lana, aquele por acaso é o carro de Gray?

# # #

Mal as palavras saíram de sua boca e as duas portas dianteiras do carro se abriram — e não foi nem um pouco difícil reconhecer as duas pessoas que dele saíam. Cameron foi o primeiro a avistá-los, acenando tão naturalmente que foi o suficiente para deixar Tyler a par de que seu encontro não se tratava de mera coincidência. Já Gray, depois de trancar o carro e embolsar a chave, precisou seguir o olhar do amigo para identificar sua presença. Estava longe demais para de fato tirar quaisquer conclusões a partir de sua expressão facial, mas era inegável que sua reação divergia da de Cameron: ou seja, talvez não estivesse esperando vê-los ali. Ou talvez Tyler fosse de fato o único desavisado dali.

Tyler nem pensou duas vezes antes de enviar um olhar acusatório a Lana.

— Eu disse que Cameron poderia vir, não sou responsável por quem ele chama — disse ela, dando de ombros.

— Certo. Não, espere, tirando o detalhe de que você não disse, não — ironizou.

— Certeza? — disse ela, erguendo uma sobrancelha. Tyler não poderia dizer se qualificava-se como fingimento descarado ou não. Como Lana não tinha aptidão para atuar nem se sua vida dependesse disso, provavelmente não.

Certeza — respondeu, com veemência. A ansiedade, por algum motivo, começava a se enraizar em seu estômago. Pela visão periférica, podia perceber o movimento dos recém-chegados se aproximando.

— Oh. Então eu também não devo ter dito que chamei Alyssa, mas sem certeza da presença dela. — Tyler meneou a cabeça negativamente como confirmação. Lana franziu o cenho. — Mas me diga, qual é o problema? — Lana parecia genuinamente querer saber. — Você não disse que já tinham conversado? E que aparentemente estava tudo bem?

Poucos dias antes, logo depois de ter tido a conversa de resultados ambíguos com Gray e partido para o ônibus escolar, recebera uma mensagem de Lana perguntando como fora — ela havia notado que os dois estiveram dialogando — e ele havia respondido as exatas palavras que a amiga fraseava agora.

— Sim, mas não é tão simples assim — sussurrou, pressuroso, antes que os Cameron e Gray, que caminhavam até eles, pudessem ouvir; segundos depois, ambos haviam os alcançado, fazendo com que Lana não tivesse a chance de retrucar.

Cameron vestia um cardigã azul naval por cima de uma blusa branca e uma calça chino escura, enquanto Gray trajava uma jaqueta jeans manchada, que estava abotoada, e calças brim pretas. Tyler era o único sem nenhum agasalho dos quatro.

Ele se sentia um otário. Resistiu ao impulso de avaliar a própria roupa, que consistia numa camisa preta com uma ilustração do sorriso ensandecido e olhos do Gato de Chesire, calças jeans e tênis sociais. Um otário mal-vestido.

Devia ter trazido o moletom velho de sempre. Pelo menos não estaria quase congelando. Otário.

Tyler cumprimentou Cameron normalmente, mas o constrangimento suscitou um desejo de evaporar e uniformizar-se à atmosfera quando chegou a vez de fazer o mesmo com Gray, todo acenos de cabeça e sorrisos desconcertados, sem saber para onde olhar. Se lhe servia de consolo, Gray não pareceu muito diferente.

— Só vou pegar meu casaco no carro, gente, já volto — mencionou Lana novamente, e continuou seu caminho anterior. Tyler ficou plantado como um poste envergonhado por alguns segundos antes de embaraçosamente virar as costas aos dois e segui-la. Se seu desajeito já não estivesse óbvio antes, acabara de fazer o favor de clarificá-lo pra qualquer um.

Quando foi capaz de acompanhar o passo da amiga, ela o olhou de canto e perguntou:

— Tá, e por que não é tão simples assim?

Queria que a capacidade dedutiva de Lana fosse um pouco mais aguçada, para não ter que ficar dando explicações a respeito de coisas óbvias — explicações estas que ele mal conseguia arquitetar direito.

— Porque, uh, nenhum de nós disse nada desde então… — disse, por mais que tivesse soado insignificante até para ele.

— Vocês dois são uns chatos — opinou ela, muito assertiva. Haviam chegado ao carro; Tyler observou enquanto ela abria a porta do motorista e pegava um agasalho de lã todo amarfanhado do banco, sobre o qual ela provavelmente estivera sentada o tempo todo em que dirigiria, a julgar pela aparência dele. — Se vocês não haviam se acertado antes, vão se acertar hoje. Quero ver todo mundo feliz — completou.

— Você é a suposta boa samaritana mais mandona que eu já conheci.

Ela riu.

Awn. Mas não gostei do “suposta”.

Tyler suspirou, e foi arrastado junto dela até onde os meninos estavam esperando.

— Tô com fome. A gente devia pegar comida — reclamou Cameron, assim que se emparelharam com eles. Gray se mostrou imediatamente de acordo.

Tyler fingiu não notar os olhares enviesados que Gray lhe direcionava.

— Eu e Tyler já comemos, e eu me apressaria se fosse vocês. O filme já deve estar prestes a começar — aconselhou Lana.

E assim eles fizeram — Tyler e Lana acompanharam Cameron e Gray até os foodtrucks, onde o primeiro aproveitou pra comprar uma garrafa de água, e, depois dos outros dois terem pagado e recebido os respectivos lanches, regressaram aonde estavam estacionados os carros. Já com o céu quase totalmente enegrecido, a única iluminação — excetuando a tênue luminosidade proveniente dos postes de luz às esquinas e as lâmpadas dos caminhões — era originária da tela grande, que começava a reprodução do trailer. Conseguiram localizar os veículos com o auxílio das lanternas dos celulares de cada um, embora o facho de luz adicional não tenha se provado uma prevenção muito eficiente contra a incidência de tropeções — pelo menos não a Tyler.

Eles se dividiram e sentaram-se sobre os capôs dos dois carros: Cameron com Lana no carro dela — embora tivesse sido vítima de reprimendas por sujar a superfície metálica com o tênis —, enquanto restou a Tyler sentar-se ao lado de Gray, ombreando-o em meio a um desconforto palpável. Tyler podia jurar que tivera o vislumbre de um olhar conspiratório de relance por parte de Lana, mas ela sabia disfarçar bem, agindo com um descaso inocente em relação aos lugares de cada um.

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Antes que pudesse fazer qualquer coisa a respeito, Lana já estava entrosando com Cameron amigavelmente — de modo que fez com que se sentisse um tanto escanteado, por mais que nada o impedisse de entrar na conversa a qualquer segundo.

Tyler suspirou e ajeitou sua posição, cruzando as pernas com o cuidado de não manchar o carro com a sola do sapato, a garrafa de água no meio delas, um pouco incomodado por não ter nenhum encosto para as costas — e como não tinha costume nem paciência para ficar sentado ereto o tempo todo, sua coluna se degradaria cada vez mais. Apenas evitou se queixar para que não soasse tanto com a pessoa precocemente encarquilhada que devia ser.

Além disso, ainda havia mais alguns fatores para sua aflição: seu corpo tremia. Obviamente por frio. Mas temia que seu nervosismo tivesse algo a ver com isso, também.

Gray tinha acabado de terminar de comer seu cachorro-quente, enquanto o trailer progredia na telona, e pareceu notar seu esforço para manter-se aquecido, encolhendo-se.

— Tá com frio? — perguntou. Tyler fez que sim com a cabeça; instintivamente, abraçou os próprios braços.

Gray aparentou ponderar sobre algo por um segundo. Então, fez menção de começar a desabotoar sua jaqueta, mas o garoto interviu, forçando um sorriso.

— Não precisa. Depois vai ser você quem vai sentir frio.

— Nah, tô usando uma blusa de manga comprida por baixo. Ela é quentinha, então não precisa se preocupar. — Terminou de desabotoar, progressivamente tirando-a, mas foi detido mais uma vez.

— É sério, tá tudo bem. Eu vou sobreviver — disse, sorrindo para reforçar. Seus dentes, no entanto, tiritavam, então provavelmente não soou muito convincente.

Gray inclinou ligeiramente a cabeça para o lado em resposta, arqueando uma sobrancelha.

— Para de teimar — disse ele, enfim. Dessa vez, pôde enfim efetivar o que intencionara fazer desde o princípio, estendendo o agasalho despojado a Tyler com um misto de cortesia e desafio provocativo, um sorrisinho de canto nos lábios, como se o incitasse a tentar abjurar sua gentileza mais uma vez.

Tyler suspirou, mas não conteve o sorriso, dessa vez autêntico. Acasacou-se com a peça oferecida, satisfeito por finalmente ter algo com que proteger os braços antes descobertos do vento frio. Aproveitou também para abotoar a jaqueta, a fim de conservar mais calor.

Sentia o olhar dele pousado em si, e de alguma forma conseguiu retribui-lo. Então, Gray comentou, sorrindo mais livremente:

— Ficou legal em você.

Tyler também permitiu que o próprio sorriso se ampliasse.

— Valeu — respondeu, meio acanhado.

— Ei, vocês dois! — Lana, à sua direita, chamou, num tom ciciante. — O filme já vai começar, então fechem a matraca.

Tyler concordou, encolhendo os ombros. Gray parecia meio emburrado, mas acatou, de qualquer forma.

Após alguns minutos de filme, no entanto, ele voltou a falar, ainda que num tom bem mais baixo que o anterior:

— Não acredito que estou sendo forçado a assistir mais um filme de terror.

Tyler riu.

— Você é mais medroso do que eu imaginava.

Recebeu um muxoxo falso de irritação e um encontrão de leve no ombro como resposta.

— Você me respeita, viu? — exigiu, fazendo com que sorrisse.

— Claro, claro — fingiu indiferença, rindo quando Gray lhe fez uma careta.

Lana chiou mais uma vez para que ficassem quietos.

Aparentemente, não tinham outra escolha.

Tyler não conseguia prestar atenção no filme.

Depois de um tempo, sua autoconsciência o assolou e era como se precisasse sobrepensar acerca de cada ligeiro movimento que realizaria com o corpo. Além disso, o frio parecia se intensificar a cada segundo — e, ao que tudo indicava, não era o único que o sentia. Pela visão periférica, viu Gray começar a se acalentar, e se sentiu culpado por ter aceitado seu agasalho. Até chegou a oferecê-lo de volta, mas em vão: apenas recebeu um olhar repressor de “nem começa” como resposta.

Quando olhou para o carro ao lado, se deparou com Lana aninhando-se ao peito de Cameron, o braço dele envolvendo seus ombros. Trocou um olhar com o amigo, que se pôs a exibir um sorriso meio-envergonhado, meio-alegre, fazendo com que Tyler soltasse um riso anasalado.

Eles até que ficavam bem juntos, examinando-os melhor — Cameron com sua pele levemente escura e achocolatada, o cabelo aparado em estilo militar e os olhos ambarinos; Lana com seus olhos verde-oliva e a pele meio bronzeada, o cabelo castanho puxado pra trás em um rabo-de-cavalo improvisado, deixando apenas um chumaço de franja ocultar parte da testa. O contraste os embelezava como um possível casal.

Lana percebeu que Tyler os observava. Ela abriu um sorrisinho discreto e encolheu os ombros, descontraída. Não parecia estar com frio.

Por fim, voltou a tornar-se ao filme, mas não antes de Gray acompanhar o rumo de seu olhar e sussurrar:

— Aposto que vão acabar ficando juntos.

— Bem, eu também não duvido nada — respondeu, rindo baixinho pra que não chamassem atenção dos dois.

Um silêncio ameno pairou sobre eles, mas Gray parecia tão distraído e inquieto quanto ele. Sua intenção, pelo menos, claramente não era concentrar-se no que assistiam — ele lhe lançava olhares de relance o tempo todo, como se quisesse falar com ele sobre algo, mas não tivesse a oportunidade de introduzir o assunto.

Por fim, Gray tirou algo do bolso dianteiro da calça — uma embalagem toda esfarrapada —, pegou uma pastilha para ele mesmo e estendeu o pacote para Tyler.

— Quer uma?

— Hm, ok. — Abriu a palma da mão para que lhe fosse entregue uma, então jogou-a na boca. O sabor de hortelã agraciou sua boca, e uma lembrança suscitou na periferia de sua mente, fazendo com que um espectro de sorriso se apossasse de seus lábios. — Valeu.

Em virtude do infinitésimo — porém notável — sorriso de Gray, tinha a sensação de que seus pensamentos se assemelhassem aos dele de alguma forma.

— De nada.

Silenciaram-se e permaneceram assim por um tempo: os minutos passando, as cenas do filme se desenrolando com a trilha sonora arrepiante que Tyler com certeza teria apreciado em outras circunstâncias, mas estava ocupado demais com seus olhares de soslaio para a pessoa à sua esquerda e com suas digressões.

Ainda estava um tanto tenso, mas as coisas de algum modo pareciam estar indo muito melhores do que esperado — como se o gelo existente entre eles já tivesse começado a derreter desde as primeiras palavras e olhares trocados. Provavelmente, o único empecilho que deviam suplantar agora era o de arranjarem alguma forma de conversarem a sós; mas ao mesmo tempo que tinha esperanças de que isso não tardasse a acontecer, havia o medo exponencial — ainda que, talvez, irracional — de que as coisas desandassem mais uma vez.

As coisas estavam indo ótimas até que Tyler distraidamente abriu a garrafa d’água e, depois de tomar um gole, destrambelhou-se ao tentar tampá-la e fez com que ela inclinasse em um ângulo considerável e, consequentemente, entornasse quase todo seu conteúdo no peitilho da camisa antes que pudesse tentar encarrilhar a situação.

Praguejou, tentando lidar com a frustração enquanto desabotoava a jaqueta e avaliava o estrago. Pediu desculpas a Gray, que só riu e disse que não era nada de mais.

— Pensa pelo lado bom, pelo menos não é refrigerante — ele o consolou, seus olhos ainda cintilando com divertimento.

— É, acho que você tem razão — murmurou, embora ainda estivesse desapontado consigo mesmo. Mas não surpreso.

Já havia passado por incidentes piores, no entanto, então não deixaria que algo tão símplice estragasse seu humor. A lembrança do primeiro encontro efetivo deles — e de sua pregressa desgraça — foi o suficiente para fazê-lo rir sozinho. Aquilo sim havia sido um verdadeiro e magistral mico.

Gray o relanceou de soslaio, provavelmente curioso pelo motivo de sua risada. A manutenção do seu bom-humor, infelizmente, acabou por tornar-se insustentável conforme o frio retornava a seu corpo, um invólucro gélido e nem um pouco bem-vindo no momento. Seus lábios já deviam ter começado a arroxear, e a umidez das roupas eram de efeito desagradável contra sua pele.

Gray também parecia um pouco perturbado por ele, encolhendo-se e afagando os próprios braços. Ainda não estava frio demais a ponto da respiração enevoar-se em contato com o ar, mas tal queda de temperatura era possível.

— Tyler? — chamou, num tom inquisitivo. Tyler, unindo novamente as lapelas do casaco numa tentativa de se aquecer com mãos trêmulas, zumbiu em resposta. — Você prefere que a gente fique dentro do carro?

Direcionou os olhos aos dele, que detinham um quê de preocupação.

— Acho que sim — foi a única coisa que conseguiu pensar em responder, a indigesta mistura do frio com a apreensão nebulizando seus pensamentos.

Uma vez dentro do conforto quente do carro, Tyler se afundou no estofado da cadeira ao lado da do motorista. Tentou relaxar, apesar de que o questionamento de que aquilo era de fato uma boa ideia ainda vociferasse na periferia de sua mente.

Não tinha ideia do que dizer, então esperou que a iniciativa partisse de Gray — a princípio, a questão de quem se pronunciaria primeiro contracenou como um impasse, mas logo depois suas expectativas foram correspondidas.

— Dá pra ver um pouco melhor o filme lá de fora, e não dá pra escutar muito bem com os vidros fechados aqui — o proprietário do veículo comentou, como se sugerisse que voltassem.

— Por mim tanto faz. Não é como se eu estivesse perdendo algo inédito. Prefiro isso a morrer congelado — disse, ainda que não sentisse confiança nas próprias palavras. Não gostava da ideia que estava pensando em oferecer, mas a verbalizou mesmo assim: — Você pode me deixar aqui e sair se quiser, sério.

— Não é como se eu estivesse conseguindo prestar atenção em qualquer coisa no filme de qualquer forma. Ou quisesse fazer isso. — A tensão também estava presente na voz de Gray, que tamborilava os dedos no volante e detinha um aspecto um pouco distante enquanto falava. Seus olhos, outrora inquietos, focalizaram em Tyler quando disse a última frase.

— Hm, tudo bem, então — falou, só para não cultivar o silêncio.

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No fundo, receava que Lana e Cameron estranhassem seu recolhimento assim, no meio do filme, por mais que existisse justificativas plausíveis por trás disso — não era culpa sua se era tão pouco imune ao frio. Por mais suspeito que pudesse parecer, não era como se fosse algo com que devesse se preocupar. A partir desse pressuposto, devia parar de pensar em coisas tão inúteis assim. E estava tentando. Só não tinha certeza se alguma hora sairia bem-sucedido.

Além disso, a pendência quase esmagadora de assuntos entre eles era provavelmente algo mais digno de contemplação.

Gray se inclinou até o console do carro e ligou o aquecedor, pelo o que Tyler agradeceu.

— Quer ouvir alguma música para distrair? — propôs.

— Pode ser — falou, e passou a se empolgar ao lhe ocorrer que o gosto musical de Gray era elogiável e bastante compatível com o seu; além disso, sugestões e descobertas de músicas desconhecidas era algo para que sempre estava disposto.

Gray ligou o aparelho de música — que já continha um CD — e adiantou para a terceira faixa. Imediatamente, uma voz e melodia familiares foram reproduzidas e passaram a imperar no espaço, e Tyler não tardou a reconhecê-las, exclamando:

— Eu conheço essa! Time is running out, certo? Adoro Muse.

— Eu imaginava que você gostasse ou fosse gostar — respondeu Gray, parecendo radiante. — Estou orgulhoso.

Tyler sorriu meio sem jeito.

— Que outras bandas e artistas você também gosta? — Eles já tinham conversado sobre esse assunto várias vezes, mas era sempre bom relembrar e reafirmar. Além disso, pelo que lembrava, essa pergunta exatamente nunca havia sido feita ainda.

— Ah, sei lá, cara. São tantas. Eu escuto de tudo. Cem por cento eclético. — Ele fez uma pausa para pensar melhor, pendendo a cabeça pro lado. — Ou não... E quanto a você?

Tyler se atrapalhou um pouco para explicar que seu gosto musical não era exatamente muito definido ou restrito num só gênero, mas também nem tão variado quanto poderia ser, e que tinha épocas que tendia a ouvir mais um tipo do que outro; mas, no fim, conseguiu ser compreensível o bastante. Além disso, discorreu sobre como era o tipo de pessoa que, caso se interessasse muito por um artista, ouviria praticamente a discografia inteira dele.

— Sei como é — Gray respondeu, gesticulando de modo animado. — Tanto que o espaço para armazenamento do meu celular tá quase no fim, e vai ser um sofrimento quando acabar.

— Exatamente! — exclamou, rindo. Então percebeu que sua entonação tinha se sobressaído um pouco alto demais devido à sua empolgação, e pôde sentir o aquecimento típico subindo pelo pescoço. Tentou disfarçar e, felizmente, Gray não pareceu notar.

Acabou que a atenção que devia ter sido devotada à música havia sido totalmente dirimida — quando o fluxo do diálogo cessou, ou ao menos enfrentou uma pausa, o CD já estava no final da quinta faixa.

Uma parte de Tyler se contentava — nunca teria esperado que ambos iriam falar um com o outro assim, tão naturalmente, como se nada tivesse acontecido. Mas outra parte se incomodava com a existência de alguma coisa que ainda precisava ser discutida.

No entanto, não era como se fosse trazê-la à tona agora.

Gray pausou a música.

— Na verdade, já estou meio cansado desse CD porque o tenho ouvido o tempo todo. Quer colocar alguma coisa sua?

— Ok — disse, desembolsando o celular. Como não lhe ocorria nenhuma canção em específico para mostrar a ele, colocou a playlist no aleatório e deixou tocando a primeira música sorteada.

Os acordes suaves começaram a tocar, e instintivamente começou a cantarolar em volume desprezível junto ao cantor homônimo — e teria prosseguido até o fim da música, se não tivesse se retesado ao perceber tardiamente o olhar de Gray em si, ainda que inofensivo, e o conteúdo da letra.

Can’t Help Falling In Love With You, sério? — riu-se ele, mas seu tom não era de zombaria.

— É cover de uma das minhas bandas preferidas — arguiu, na defensiva. — E qual é, a música é boa.

Twenty One Pilots? Reconheci pela voz.

Não pôde conter o sorriso de expandir-se em seu rosto. Sua companhia riu de sua reação quase pueril, complementando:

— É, eu conheço, e as músicas são ótimas.

— São mesmo — concordou, limpando a garganta para mascarar a excitação.

As últimas notas e a voz do cantor foram rescindindo sutilmente até chegarem oficialmente ao fim. O dono do celular, por não saber se deveria permitir que suas músicas continuassem reproduzindo, pausou a próxima antes que ela tivesse chance de começar. O silêncio preencheu o espaço, destoante com a leveza do breve diálogo.

O desconforto de Tyler voltou a se instaurar, e ele se encolheu novamente contra o estofado do banco, as mãos sob suas coxas. No entanto, Gray não parecia notar nada de errado.

— Então… — principiou o último, com cautela. — Estamos bem?

Ele arqueou as sobrancelhas, um sorriso singelo tomando forma no canto dos lábios. Gray continuava objetivo como sempre; ele, em contrapartida, provavelmente não teria coragem de fazer aquela pergunta, especialmente depois de terem interagido tão normalmente um com o outro momentos antes.

— Acho que sim? — Era pra ser uma afirmação, mas sua inflexão soou mais interrogativa do que desejado. — Espero que sim. Se pensarmos bem, não tem por que não estarmos, tem?

Gray soltou um suspiro aliviado, como se tivesse se preparado para péssimas notícias. Ele correu a mão por seus cabelos, as pontas levemente cacheadas cascateando em seu rosto; e, agora, sorria de orelha a orelha.

— Fico feliz de ouvir isso. Estava falando sério quando me desculpei. Não queria te deixar bravo. Aquela hora, eu realmente tive medo de que tivesse cometido um grande erro.

Tyler abanou a mão, como que para tranquilizá-lo.

— Sei que estava, e aprecio isso. Todo mundo erra. — No entanto, como que em uma retaliação atrasada, inclinou o corpo para o lado e deu uma sutil cotovelada no flanco dele. — Só não faça de novo.

A vítima de seu ato soltou um gemido de dor e afagou a área atingida, mas depois riu.

— Sabe, eu continuo realmente gostando de você.

Aleatório.

Apesar de se sentir meio sem palavras, era melhor não se manter omisso agora.

— Eu também — confessou, deflagrando um sorriso gratificado do outro. — As coisas só estão… complicadas.

O sorriso alheio enfraqueceu.

— Entre a gente?

Aquela realmente podia ser uma interpretação plausível.

— Não! Não, relaxa. Só… no geral mesmo.

— Oh, ok. Ainda bem… ou não. Mas sei como é. Quer falar sobre isso?

— Agora? Pra quê? Eu tô bem. Vamos falar sobre outras coisas — disse, tentando passar um ar de animação.

Gray pareceu considerar uma escolha sábia.

— Ainda tá com frio?

— Até que não. Por quê?

— Oh, eu ia falar que eu podia te esquentar — comentou, com a casualidade de quem comenta sobre seu cotidiano. — Uma ótima oportunidade de ser clichê, mas eu estava torcendo pra que você achasse romântico.

O estômago de Tyler pareceu borbulhar, e ele sentiu como se flores desabrochassem entre os ossos das suas costelas. Era estranho e familiar ao mesmo tempo. Inquietante e caseoso, mas bom, de alguma forma.

— Sério mesmo, Gray?

— Sim — disse, desavergonhado.

Tyler o avaliou, calculou a distância aproximada entre eles, contando com o espaço entre as poltronas, espiando por sobre o ombro. Depois, encarou-o.

— Quer ir pro banco de trás?

Gray piscou, atônito.

— Uh, claro.

Tyler agradeceu internamente por ele não ter questionado o motivo.

Ele fez um aceno com a cabeça em indicativa para que fosse primeiro — porque devia ser terrivelmente embaraçoso se ele acabasse se atrapalhando ao se manobrar até a parte traseira do carro, e se recusava a se submeter a esses possíveis constrangimentos. Gray encolheu os ombros em concordância; no entanto, quando estava a acatar a seu pedido silencioso, se desequilibrou e esbarrou o cotovelo no centro do volante.

Pego de surpresa, não pôde cobrir os ouvidos antes da buzina ensurdecedora e enervante retumbasse por aproximadamente três segundos.

Quando a tortura sonora acabou, não tardou a desatar a gargalhar da careta de choque e culpa de Gray, num reconhecimento tácito de que acabara de passar vergonha, a postura retesada contra o estofado.

Pelo vidro para-brisa do carro, pôde ver Lana e Cameron inclinando-se para enxergar dentro do veículo, a fim de ver o que acontecera, rindo sem pudor.

Gray pressionou a palma da mão contra o rosto e murmurou:

— Que vergonha. — Mas depois começou a rir também.

— Sabe, é reconfortante saber que não sou o único suscetível a acidentes vergonhosos nesse relacionamento.

Apesar da informação, o outro pareceu satisfeito com sua escolha de palavras, erguendo as sobrancelhas diante da última e sorrindo bobamente.

Enfim, ambos conseguiram passar para a parte traseira sem maiores complicações.

— Então, por que quis vir pra cá?

Tyler deu um sorrisinho suspeito.

— Não lembro.

Gray fez uma expressão indignada, e pareceu prestes a iniciar uma invectiva de reclamações.

No entanto, antes que pudesse completar sua linha de raciocínio sobre como ele havia sido sujeitado a passar vergonha sem propósito algum, Tyler começou a rir. E, antes que fosse interrogado sobre o motivo, puxou-o pelo colarinho até que seus lábios se encostassem.

Tinha certeza que ele não se irritaria por ser interrompido assim.

# # #

Algum tempo depois, os créditos finais do filme reproduziam na telona à uma música dramática, e ambos decidiram que era melhor que deixassem o carro, antes que sua ausência fosse desconfiada — apesar de provavelmente já ser. Gray teria saído do automóvel, impassível, se Tyler não tivesse o detido e alertado sobre a evidência quase ostensiva de seus cabelos desgrenhados e de suas roupas amarrotadas, ainda mais estando igualados aos dele. Ambos fizeram o possível para tentar camuflar essas pistas, ajudando um ao outro. Gray ajustou o colarinho da jaqueta emprestada à Tyler — que tentou devolvê-la nesse momento, mas sem êxito — para tornar as sutis marcas latentes.

— Na verdade, pode ficar com ela — havia dito Gray, um sorriso brincando nos lábios — , e me devolver a hora que bem quiser. Além do mais, é um bom disfarce. E você tá precisando.

Ele não teimou dessa vez e aceitou a oferta vantajosa.

Os lábios de Tyler ainda formigavam e provavelmente estavam inchados, ele sentia fantasmas dos toques em seu pescoço e um calor escaldante da cabeça aos pés. Se não fosse pelo maldito bom senso, podia tranquilamente continuar naquele ambiente apertado com ele pelo resto da noite.

Por fim, saíram do veículo e de encontro com o ar quase enregelante da noite. A maioria das pessoas já se retiravam, algumas indo a pé e outras sentando-se para esperar carona. A agitação no lugar, no entanto, já era caótica; carros já davam rés e se preparavam para zarpar, causando um engarrafamento e uma cacofonia de buzinas e vozes misturada à confusão de luzes e fosfenos, de uma forma bastante desorientadora.

A desordem reduziu consideravelmente depois que a maior parte dos veículos partiram, poucos ainda estacionados em meio à maioria de vacâncias. O lugar, que já era um pouco afastado, parecia desertificar-se aos poucos.

Quando encontraram-se com Lana e Cameron escorados na traseira do carro dela, eles compartilhavam a aparência um pouco além do estado de normalidade. Tinha certeza que também tinham aproveitado o fato de não estarem à vista deles. Ambos se queixaram por terem basicamente “se ausentado” — embora mal tivessem saído do lugar — o filme todo, além do acréscimo de Lana comentando que estava chateada por Alyssa não ter sido capaz de vir, porque ela estava passando mal, além de preocupada com ela.

— O que ela tem? — perguntou Gray.

— Ah, diabete. Parece que teve o começo de uma crise de hipoglicemia, mas ela me garantiu que já está bem.

Ele ergueu as sobrancelhas, surpreso.

— Caramba, melhoras pra ela.

— Felizmente, ela disse que não é muito comum, no caso dela. E eu já tinha brigado com ela por ter andado comendo pouco… Mas enfim. — Ela virou-se para Cameron, cuja mão roçava na dela como em um pedido para que se segurassem, mas ela não parecia notar. Ela segurou-o pelo ombro, e ele arregalou os olhos, meio surpreso com o gesto súbito. Tyler se esforçou para não rir. — Busca meu agasalho, por favor? Deixei ele no capô do carro.

Ela lhe deu um sorriso charmoso. Cameron suspirou, dominado, e se dirigiu a passos flácidos até sua destinação.

Naquele meio-tempo, Tyler ergueu as sobrancelhas à Lana em um inquérito silencioso sobre seu dom de persuasão, mas ela apenas deu de ombros. Então, sorriu. E, antes que Cameron retornasse, afastou-se com ele e Gray sorrateiramente, empurrando-os pelas omoplatas.

Ela pigarreou, e ondulou as sobrancelhas.

— Então. Fico feliz por terem resolvido as coisas entre vocês dois. E espero que tenham se divertido. — Ela sorriu de novo, transpirando inocência. Então, deu uma piscadela sugestiva.

Gray desatou a gargalhar ante ao gesto cômico, enquanto Tyler simplesmente encobriu o rosto com a palma, para refletir a decepção amarga e vergonhosa que sentia por dentro.

— Do que vocês estão falando? — indagou Cameron, pegando todos de surpresa. Havia retornado e não parecia contente por ter sido deixado de lado, sobrancelhas franzidas e lábios carnudos embicando em um trejeito cômico.

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Lana riu e apertou sua bochecha, de forma carinhosamente violenta.

— Nada, nada.

Gray e Tyler se entreolharam, o último respirando fundo. Uma discussão silenciosa se estabeleceu entre eles nesse breve momento, e ele perguntou apenas com movimentos labiais: devo contar?

Felizmente, Gray pareceu entender. Sorriu e apertou, de modo reconfortante, o ombro de Tyler, repousando em seguida a mão em suas costas. Respirou fundo mais uma vez, então fixou o olhar nos olhos ambarinos de Cameron, que parecia confuso. Lana, ao seu lado, parecia orgulhosa, e ofertou-lhe um sorriso e um meneio positivo de cabeça de “você consegue”.

Por algum motivo, sentia-se otimista quanto a isso, então resolveu seguir em frente.

— Então, Cam — começou, sorrindo e estralando os nós dos dedos em nervosismo. — Eu tenho... aliás, eu e Gray temos uma coisa para contar.

O amigo, ainda que aparentemente ressabiado, assentiu, em uma sinalização para que continuasse. Tyler espiou por sobre o ombro para encontrar o olhar do parceiro, que o sustentou, encorajando-o. A mão que estava em suas costas deslizou para a dele, entrelaçando os dedos com os dele, o braço de Tyler dobrado atrás de seu corpo para que não pudessem enxergar o gesto.

Espiritualizado, tornou-se outra vez para o amigo ouvinte e tentou manter contato visual.

— Não sei se você já chegou a desconfiar, mas… Eu e ele estamos… saindo, eu acho? — Ele franziu o cenho e balançou a cabeça, esperando não estar confundindo demais os termos. — Ah, bom, resumindo, acho que pode-se dizer que estamos juntos. Não oficialmente, quer dizer; na verdade, não sei, mas…

Gray soltou uma risada jovial, apertando sua mão afetuosamente.

— Acho que ele entendeu, Thay.

Ele sorriu, e exalou uma grande quantidade de ar pela boca. Desenlaçou a mão atrás das costas com a de Gray para segurá-la com a outra, à mostra de qualquer um.

O sorriso de Lana parecia plastificado em seu rosto, os olhos cintilantes; os músculos de seu rosto deviam estar doendo.

— Bem, é isso. Espero que esteja tudo bem pra você.

Cameron piscou, abriu a boca para articular uma resposta e tornou a fechá-la. Ele entortou o corpo em um ângulo estranho para encarar Lana com um olhar acusatório; depois, encarou o recém-assumido casal com um dedo em riste a eles, boquiaberto.

— Como eu não percebi isso antes?! — exclamou, por fim, ainda atônito.

Tyler, que estava temendo algo próximo a uma detonação de uma ogiva nuclear, riu, mais de alívio do que tudo. Os outros dois uniram-se a ele.

— E como é que ela soube antes de mim? Porra, eu conheço os dois há mais tempo! Eu devia ser o amigão de confiança! — ralhou ele, cruzando os braços.

— Pfft, eu sou obviamente mais mente-aberta que você, e mais digna de ser a confidente fiel do casal — treplicou Lana, jogando o cabelo sobre o ombro de forma esnobe.

— Você acabou de me chamar de mente-fechada? Cara, eu estou ofendido... Mas feliz por vocês terem me contado. — Finalmente, ele sorriu, deixando de lado a atitude exaltada. Em seguida, semicerrou os olhos, quase de forma difamatória. — Agora eu entendo porque vocês dois também pareciam tão... bagunçados depois de saírem daquele carro.

Gray assobiou, como quem não sabe de nada. Lana balançou a cabeça, estalando a língua.

— Você é muito ingênuo, Cameron — disse ela.

Tyler suspirou, a vergonha manifestando-se cristalinamente em seu rosto.

No entanto, a alegria em seu peito também era cristalina. E ele não tardou a estar sorrindo quase que permanentemente, enquanto segurava a mão de Gray.

Escorados nas laterais dos carros, os pares lado a lado e de frente pro outro, eles passaram mais alguns minutos confabulando, despretensiosos, como se o tempo houvesse sido congelado e como se o lugar não estivesse sendo abandonado com velocidade alarmante.

— Ah, gente! — exclamou Gray, de supetão, como se tivesse acabado de ser arrebatado por uma epifania. Os três olharam pra ele em confusão. Estava aleatoriamente cortando o assunto sobre os melhores e piores professores com os quais haviam estudado durante seu tempo de vida, com direito a mimetismos caricatos de suas características peculiares. Cameron era excepcionalmente bom em imitar o sotaque irlandês do professor atual de matemática. — Eu esqueci de contar que semana que vem é meu aniversário. Estou planejando de última hora o que vou fazer para celebrar, mas obviamente vocês estão convidados. Ah, pode chamar a Alyssa também, Lana.

Tyler piscou. Aquilo era meio inesperado.

— Realmente, como eu nunca cheguei a perguntar quando você fazia aniversário? — falou, quase indignado. Gray, imediatamente ao seu lado, riu e deu de ombros.

Lana comemorou com uma interjeição animada e jogando as mãos para o alto e Cameron começou a fazer comentários de chacota sobre como Gray era o caçula dos quatro.

— São só meses de diferença, cabeção. Não é culpa minha se fui nascer no último mês do ano — retrucou o futuro aniversariante, na esportiva.

— Espera, eu não sei quando o Thay nasceu. Talvez o Gray não seja o caçula, no final das contas — raciocinou Lana. Todos os olhares se voltaram para Tyler.

— Uh. Eu faço aniversário no final de janeiro… — disse, preparando-se para sua nova alcunha.

Gray emitiu uns grunhidos estranhos e inadvertidamente o puxou para perto, apertando suas bochechas sem dó nem piedade. Tyler se debateu para se livrar da tortura, resmungando.

Cameron pareceu realizar algum tipo de cálculo mental.

— Oh. Você deve ter sol em aquário. Agora tudo faz sentido.

Tyler, que havia conseguido se desvencilhar, franziu as sobrancelhas.

— O que você quer dizer com...

— Tyler, acredite. Você não quer saber — disse Lana, com um tom de voz sepulcral.

Ela parecia falar sério. Ele se resignou, dando de ombros.

A amiga olhou ao redor, um ligeiro traço de preocupação desfigurando-lhe as feições ao perceber como o lugar havia sido esvaziado.

— Ok, gente, nós devíamos ir. Deve estar bem tarde… — Quando ela conferiu o horário para averiguar sua hipótese, soltou uma torrente de palavras consideradas impronunciáveis por muitos pais. — Olha o horário! Meu pai vai me matar se eu chegar muito mais tarde que isso.

— São 20h00, não tá tão tarde — argumentou Cameron.

— Você não conhece meu pai. Ele valoriza horários marcados. Até demais.

Chegaram num consenso de que já era hora de partirem, mesmo.

Antes que fosse embora, Tyler surpreendeu Lana com um abraço de urso amigável.

— Obrigado por ter me trazido pra cá — falou, finalmente esclarecendo o gesto de afeto súbito, que não era acostumado a distribuir. A amiga sorriu largamente.

— Não foi nada, Thay.

Na volta, haviam decidido que Cameron iria no carro de Lana, e Tyler, no de Gray, e ele estava inexplicavelmente satisfeito com essa resolução. Depois de todos se despedirem, com promessas de reencontro na segunda-feira, ambos estavam novamente naquele quase-santuário. Em contraste de quando entrara ali hoje pela primeira vez, todo seu desconforto e tensão haviam derretido e sido substituídos por um sentimento celestial, cuja essência era a mesma de quando tudo estava bem entre os dois.

Ninguém disse nada enquanto o motorista saía do estacionamento e manobrava o carro pelas primeiras milhas de ruas agitadas pelo influxo de carros. No entanto, então ele pensou que não havia um motivo para deixar o silêncio governar por tanto tempo sem intervenção.

— Sabe, eu estou realmente feliz por a gente ter contado pros dois.

Embora mantivesse os olhos na estrada, o sorriso de Gray era bem visível.

— Eu também. Disse que não tinha tanto com o que preocupar, não sobre eles.

A risada de Tyler pareceu flutuar no âmbito. Ele sentia-se quase eufórico.

— É, você tinha razão, mas era difícil ter certeza. Eu me sinto tão mais leve, como se não tivesse carregando mais essa carga nas minhas costas… Não sabia que fazer isso seria tão… libertador? Ah, sei lá. Mas eu agradeço por seu incentivo. Sem isso, acho que estaríamos no mesmo.

Sua companhia continuou sorrindo, mas ele estranhou sua quietude. Talvez estivesse muito concentrado na estrada. Não sabia que ele fosse tão cauteloso assim. Além disso, parecia ter decorado o caminho para sua casa, cometendo só alguns erros na trajetória por estarem vindo de um lugar inusual.

Foi só quando finalmente alcançaram um semáforo em vermelho que ele finalmente disse alguma coisa.

— Fico contente que esteja se sentindo assim, Thay — respondeu, os olhos nos dele. Tyler sorriu. Mas o contato visual não durou muito. Depois de uma pausa, ele continuou: — Sabe, eu tinha pensado em contar para os meus pais.

Tyler estagnou naquela posição, os músculos subitamente retesados.

— Quer dizer, não sobre nós — tranquilizou ele. — Não ainda. Mas sobre mim, me assumir.

Aos poucos, seus membros pareceram reaver a elasticidade e ele pressionou as costas contra o espaldar do banco.

— Oh, entendo. E como acha que eles vão reagir? — arriscou.

O sinaleiro esverdeou, o carro recomeçou a andar. Gray respirou fundo.

— Acho que tenho motivos para ter esperanças. Esses dias pra trás, meu pai me chamou para conversar, “de pai para filho”, depois que discuti com ele e minha mãe. Dentre várias outras coisas, ele disse que, mesmo sendo ausentes, eles se importam. E querem me dar apoio. E que eu posso confiar nele pra contar o que eu quiser — revelou, o sorriso há tempos reduzido a um firme crispar de lábios. — Apesar de tudo, talvez eu devesse dar uma chance a ele. E, se tudo desse certo, eu contaria pra minha mãe depois.

Tyler umedeceu os lábios, sentindo a garganta ressecada.

— Pode ser uma boa ideia — opinou, por fim.

— Ou não — considerou Gray, a tensão se esvaindo aos poucos de sua compleição. Talvez contar-lhe aquilo houvesse sido bom para ele. — Você já pensou alguma vez nisso, Thay?

— Não — respondeu, redondamente.

— Entendi. — Gray sorriu, por fim. — Desculpa introduzir esse tema tão de repente assim, mas achei que seria uma boa ideia contar pra você.

O fato de que o outro estava mais relaxado agora contribuiu para que se aliviasse da leve apreensão, também.

Depois de mais alguns minutos, que consistiram em apreciar silenciosamente as músicas do CD de Gray e a paisagem escurecida das ruas, o carro finalmente foi estacionado rente à fachada da residência de Tyler.

— Eu adorei hoje — disse Gray. — De verdade.

Ele sorriu.

— Eu também. De verdade.

Tyler se despediu, abriu a porta dianteira e apeou do veículo.

Depois, repensou e entrou nele novamente, recebendo um olhar inquisitivo de Gray.

Antes que qualquer coisa fosse dita, inclinou-se em sua direção e, segurando-lhe o queixo, Tyler o beijou — deliberada e longamente, num sutil toque de lábios e línguas.

— Boa noite, Gray. Te vejo segunda.

O sorriso dele era a melhor recompensa por aquele pequeno gesto.

— Boa noite, Tyler. Até mais.

Horas depois, quando o carro já havia partido há tempos e Tyler já havia se acomodado em casa, respondido às perguntas da mãe (“Como foi sair com sua amiga? Se divertiu?”) brevemente e jantado em união à família toda, enviou uma mensagem, tentando ser sucinto, a Gray.

Tyler: Eu já queria ter te falado isso muitos dias antes, mas fiquei com vergonha. Então, dizendo com algum tempo de atraso… eu finalmente terminei a pintura praquele concurso. E adoraria saber o que você acha.

A resposta não demorou mais do que instantes para ser recebida.

Gray: QUERO VER

Sorrindo irrestritamente, enviou a foto, preparada dias atrás.

Tyler enviou uma foto.

Gray: cara……

o que eu acho?

acho que você é um artista muito, muito talentoso

posso me casar com um desenho?

Tyler: você pode se casar com o autor dele…

Gray: PODE SER

Tyler: brincadeira

Gray: poxa

para de me iludir

Ele não conseguia parar de sorrir, um regozijo borbulhante no peito.

Gray: mas sério, ficou incrivelmente bom. perfeito

Tyler: Você não faz ideia do quanto fico feliz em ouvir isso.

No fim, continuou trocando mensagens com ele por horas, com direito a desde gracejos provocativos até debates aleatórios, como, por exemplo, sobre os elementos que eles definitivamente não mudariam na vida deles.

Tyler foi dormir depois das três da manhã, mais feliz do que nunca.