Eu podia sentir uma leve brisa tocando meu corpo, assim como a doce sensação de estar em um lugar familiar. Meus olhos estavam fechados. Eu sentia meus cabelos balançarem com a suave e úmida brisa que soprava. Abri meus olhos, tentando ver onde estava, mas estar com eles fechados ou abertos era a mesma coisa. Havia apenas escuridão. Dei poucos passos para frente, e senti minhas pernas baterem em algo. Tateei o espaço a minha frente e percebi que parecia haver uma espécie de cerca de madeira ali.

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Enfim meus olhos se acostumaram com a total escuridão e então eu pude ver algumas coisas. Havia pequenos pontos mais claros na escuridão. Eram estrelas, eu estava olhando para o céu. Apertei meus olhos, tentando enxergar mais ao longe, e a escuridão parecia se mover. Ela se movia, às vezes de forma suave, às vezes de forma agressiva, eram as ondas do mar.

Escutei uma voz me chamando, então eu me virei, dando as costas para o mar, e apoiei minhas costas na cerca. Eu estava na sacada de um quarto, e pude ver que havia uma pessoa se aproximando de mim. Apoiei-me mais pesada e preguiçosamente na cerca. Logo escutei um ruído seco, como o som de madeira quebrando. Mas quando tentei correr para longe da cerca já era tarde de mais, eu estava caindo. E não fazia a menor ideia de como o mar que me aguardava estava. Fiquei completamente em pânico, e gritei o mais alto que pude. Mas gritar de nada adiantaria. Estava tudo acabado. Fechei meus olhos, esperando o choque contra o mar repleto de pedras, e o fim inevitável.

Abri meus olhos com um desespero excessivo. Minha respiração estava pesada e irregular, eu podia sentir que meu corpo estava pegajoso, eu suara com o pesadelo. Levantei-me da cama enquanto repetia veementemente que aquilo fora apenas um sonho. Um sonho aterrorizantemente real, mas um sonho. Já devia ter amanhecido, estava muito claro para ainda ser noite.

Após pegar uma bacia com água quente, voltei para meu quarto, evitando encontrar Bonnie, Elora ou madame Agatha. Eu precisava ficar algum tempo sozinha. Tranquei a porta do quarto logo depois que entrei. E então larguei a bacia sobre uma mesinha, tomando cuidado para não virar a água. Ao lado da mesinha havia um amplo espelho que Elora havia colocado ali. Retirei minhas vestes com uma calma excessiva e parei na frente do espelho.

Olhei para a mulher que havia na minha frente, emoldurada como se fosse um quadro. Ela era bela. Seus cabelos eram de um vermelho vivo e caía em mechas lisas e disformes até pouco depois dos ombros. Seus olhos eram de um verde intenso, como duas brilhantes esmeraldas, daquelas que se vê nas joias da nobreza. Seu nariz era fino, em um ângulo reto, e embelezava mais ainda a face jovial. Seus lábios não eram muito volumosos, mas tinham um tom levemente rosado. Em geral, era um rosto muito belo, apesar de demonstrar cansaço, devido às pequenas manchas escuras abaixo dos olhos.

Olhei rapidamente o corpo nu da jovem mulher emoldurada à minha frente. Sua pele era clara, levemente acobreada. Era um corpo esbelto, um pouco mais alto que o comum para uma mulher, mas esbelto. E então olhei melhor. A bela pele acobreada possuía marcas, algumas grandes, outras pequenas. Havia uma marca que cobria o ombro direito e parte do braço, levemente mais escura que o tom da pele, era agourenta e disforme. Outra no braço esquerdo, horizontalmente, como um corte que há muito já fechara, deixando apenas uma marca levemente mais escura que o resto da pele. Mas a que realmente chamava atenção estava mais abaixo. Começava logo abaixo do seio esquerdo e descia na diagonal até pouco depois da cintura, era feia, a pele tinha um relevo estranho e até mesmo a textura era diferente, parecia lisa de mais. Dessa eu lembrava. Lembrava ao menos um pouco, lembrava-me da dor. Isso era o que madame Agatha dizia-me para mostrar aos clientes caso eles quisessem deitar comigo. Mas eles geralmente desistiam antes de ver essa, a pior. Amedrontavam-se apenas de ver as outras duas, e é claro, as que havia nas costas, as que madame Agatha não sabia que existiam. Algumas grandes, outras pouco menores, a maioria lembrando doloridos cortes de algo bastante afiado. Todas com o feio tom escuro e a feia pele lisa em relevo. Sorte deles que ao menos não chegavam a ver a pior.

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Olhei para o tecido que um dia fora branco, mas que agora tinham um tom escuro do sangue que secara nele, que estava enrolado em meu antebraço, cobrindo as feridas que ali havia. Eu devia agradecer à Bonnie, graças a ela agora eu teria mais duas lindas cicatrizes para a coleção. Ao menos essas eu sabia como haviam surgido, não eram um completo mistério para mim.

Antes que as insistentes lágrimas de frustração, raiva e tristeza começassem a descer pela minha face, tratei de sair da frente do espelho e fazer o que pretendia desde o começo. Peguei uma pequena toalha e um vidro com um óleo que Luce me dera e tratei de limpar meu corpo, tomando cuidado com os lindos presentinhos de Bonnie. Com a demora excessiva em frente do espelho, a água amornara, mas ainda estava a uma temperatura agradável. Sequei-me e vesti o primeiro vestido que encontrei. Era de um roxo escuro e não possuía muitos detalhes na parte de cima, era cinturado, tinha mangas longas que eram justas no braço e no antebraço era repleta de babados, perfeita para esconder e não apertar minha ferida. Tomei o cuidado de não encostar a manga na ferida e a deixei levantada, torcida em torno do cotovelo. A saia do vestido era simples também, rodada e com largos babados.

Ouvi suaves batidas na porta e logo escutei a voz suave e conhecida. – Millie, você está acordada, certo? Abra a porta, quero trocar seu curativo.

Destranquei a porta e a abri para Elora, a pequena moça estava com um belo vestido azul, coberto de rendas e babados. Seus longos cabelos ondulados estavam puxados para trás, provavelmente presos em parte por uma fita. Eu estava tão acostumada com a presença de Elora que nunca parara para realmente observar sua face. Seu rosto tinha traços leves, femininos, seus olhos eram suaves, e como sempre, tinham uma expressão serena. Olhei melhor para eles, eram verdes, de certa forma lembravam a natureza. Olhando para ela eu não sabia dizer qual era sua idade. Mal podia deduzir se era mais nova ou mais velha que eu.

– Qual a sua idade Elora?

– Tenho vinte e nove anos, por quê? – Ela parecia surpresa, eu nunca havia perguntado a ela algo sobre ela mesma – Sente na cama para eu poder limpar a ferida.

Vinte e nove? Tudo bem que ela às vezes parecia séria e sensata de mais para a idade que aparentava, mas também não pensei que fosse tanto. Sentei-me na cama e ela logo sentou ao meu lado e puxou meu braço para o seu colo, limpando com um pano úmido primeiro em torno das feridas, dois cortes horríveis.

– Você parece ter menos.

– Está com medo que eu machuque você é? – Ela deu um sorriso doce e gentil, do tipo que eu me acostumara a ver em sua face. - Não precisa ser tão gentil, eu sei que já não sou mais tão novinha.

Não pude evitar rir. É claro que ela não me machucaria, ela cuidou daquela ferida horrível há tantos meses, e eu podia lembrar que ela fazia tudo da melhor forma possível. Num geral não doía quando ela limpava. Mas o extrato de ervas que ela passava costumava arder, e quando ela o passou nos cortes, soltei um suspiro e trinquei os dentes.

– Está ardendo, Millie?

– Ah, não. Estou sentindo um prazer intenso com isso, você sabe, sou masoquista.

– Engraçadinha. – ela revirou os olhos e continuou a cobrir as feridas com o extrato ardido.

Tentei ignorar a ardência do extrato, focando meu olhar na face de Elora. Sua expressão era tão serena e tão concentrada. Só de olhar a sua expressão eu podia saber que ela fazia tudo com o máximo cuidado. E então, de repente, lembrei-me de sua expressão na noite anterior, enquanto ameaçava Bonnie. Sua expressão era tão assustadora que, apesar da sua bondade natural, eu realmente acreditei na ameaça. Seu rosto gentil se distorcera de tal forma pela raiva, que naquele momento eu poderia dizer que ela realmente tinha vinte e nove anos. E que, definitivamente, havia muitos mistérios em torno de Elora.

– Elora... Por que você veio para esse bordel?

Elora parou o que estava fazendo para olhar-me com uma evidente surpresa no rosto. Ela certamente não estava esperando por algo assim, ainda mais em uma situação como essa. Logo ela retornou a tratar de meus ferimentos, absorta em pensamentos. Quando falou, continuou olhando apenas para o meu braço.

– A história é um pouco longa, Millie... – Ela disse, enquanto colocava a atadura, sua voz estava baixa, a expressão calma e reservada, mas ela logo deu seu sorriso gentil quando terminou o que estava fazendo e olhou em meus olhos – Mas eu acho que você diria que tem tempo de sobra, não é?

Apenas assenti com a cabeça. Eu queria saber mais sobre Elora, eu precisava saber mais sobre Elora. Ela arrumou delicadamente a manga de meu vestido por cima do curativo, escondendo-o completamente debaixo dos babados da manga. Ela arrumou excessivamente, e continuou a alisar os babados mesmo depois de cobrirem perfeitamente o curativo, e pude perceber que sua mente não estava mais ali. Estava distante, perdida em memórias.

Levou alguns minutos antes de ela enfim voltar a si e começar a falar.

– Quando eu tinha dezesseis anos, meu pai mandou-me para outra cidade para estudar medicina em um famoso colégio. Fiquei lá até os vinte anos, aprendi muita coisa. Era agradável lá, apesar de eu sentir falta de minha irmãzinha.

– Você tem uma irmã? – Não pude evitar interromper Elora, ela nunca falara da irmã, nem deu a menor ideia de que possuía uma.

– Ela tinha quatro anos a menos que eu. Foi difícil viajar e deixa-la por tanto tempo, apesar de eu visita-la sempre que possível. Ela era muito apegada a mim, desde que nossa mãe morrera, ela havia se aproximado mais de mim, procurando por carinho e amor, tudo que nosso pai não conseguia nos dar. Mas quando retornei, ela já não estava mais lá. Havia fugido de casa alguns meses antes, pois nosso pai queria casá-la com algum nobre idiota e nojento. Desde pequena ela era teimosa, certamente fugira na primeira oportunidade. Um ano depois, houve um incêndio em nossa casa, provavelmente culpa de algum inimigo político de meu pai, que era um conde. Eu deveria ter morrido lá.

Eu arfei, não consegui imaginar que ela pudesse ter morrido em meio às chamas. Ela não merecia uma morte assim, dolorosa. Mas ela sorriu para mim, indicando que isso não era tão ruim quanto soava para mim e logo retornou à sua história.

– Mas não morri, como pode ver. – Ela deu seu sorriso gentil novamente – Nunca gostei muito de ser nobre. Eles se importam apenas com si mesmos, são asquerosos. Por isso, aproveitei o incêndio para fingir minha morte e poder ser, de certo modo, livre. Passei a viajar de cidade em cidade procurando minha irmãzinha, mas já não tenho mais muita esperança.

Ela sorriu para mim novamente, tentando esconder a dor, mas eu podia ver a tristeza oculta em seus olhos. Instintivamente, abracei-a. Ela me ajudara tanto desde que eu chegara aqui. Talvez estivesse me usando como substituta de sua irmã, mas isso não me importa nem um pouco. Elora é a única família que tenho agora. Agora que não sei que é minha família.

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– Mas então – Ela começou a dizer enquanto afastava gentilmente meu abraço – como foi a noite com o senhor Marshall?

Ela sorriu para mim de uma forma que eu nunca vira, pelo menos não em uma conversa comigo. Era um sorriso malicioso. Ela parecia esperar algo de interessante. Mas eu definitivamente não sabia como explicar-lhe que não havia acontecido nada de interessante, exceto que... exceto que ele me beijou! Como pude esquecer isso? Um completo estranho me beijou, um estranho extremamente bonito, mas um estranho. Senti meu rosto esquentar assim que me lembrei do ocorrido, assim que me lembrei da sensação de seus lábios nos meus, tão quentes e macios.

– Conte-me tudo. - Seu sorriso ampliou-se.

Ela viu o rubor em meu rosto e certamente estava tentando imaginar o que havia acontecido, mas eu tinha certeza de que ela não iria se contentar enquanto eu não dissesse exatamente tudo que havia acontecido.