Havia muitos. Certamente. Muitos espectadores. Alguns ainda um tanto hipnotizados, enquanto outros saíam de sua letargia, tomando ciência da chuva que os encharcava. Ninguém dizia palavra, ousando romper a tensão que se instalara após o fim da canção. Essas reações inesperadas fizeram o Kyrion se perguntar: quanto daquela experiência eles compartilharam com ele?

Sua visão inspecionou os que ali estavam, encontrando olhos brilhantes por vezes assustados, lábios entreabertos, orelhas erguidas em atenção ou achatadas em apreensão. Cristas erguidas em alarme, membros paralisados. Eram traços muito profundos para que eles somente tivessem presenciado uma música.

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O que lhe atraiu a atenção foi um movimento sutil, vindo de uma das extremidades da ponte. Alguém ousara se mexer. E como se aquilo fosse um sinal de largada, muitos outros começaram a mover-se e a falar, instalando um pequeno estado de caos ao redor do mendeva.

“Você viu?”

“Como você faz isso?”

“... vamos, saia da chuva!”

“...era tão...”

“Venha comigo, depois falamos...”

“...ensopado! Mas como...?”

O primeiro que se mexeu aproximou-se do Kyrion e lhe puxou pela manga. “Vamos sair da chuva e depois conversamos. Nokto ficará aborrecido se seu instrumento se molhar tanto.”

Kyrion seguiu-o cegamente, sendo guiado pela manga, enquanto cortavam a multidão que queria ora fugir da água, ora lhe dirigir a palavra. Sua mente não registrava bem as mensagens que lhe lançavam violentamente, açoitando-o com perguntas e furando-o com olhares intensos. Demorara muitos segundos para notar que quem lhe puxava era Aciru, com seu vestido encharcado.

Como aquilo aconteceu? Aquilo realmente aconteceu? O quanto fora percebido? Era aquilo o que ele era?

Em meio ao caos de palavras e gestos, sua única reação foi uma única palavra.

É esse meu elemento?

Uma única e inaudível palavra. “...ilusão...”

***

“Se eu puder saber, como você fez isso?”

“Isso o quê?”

“Está assim tão atordoado? Tudo bem, eu espero alguns instantes para sua lerdeza passar. Oras, era um belo vestido! Espero que possam dar um jeito na lavanderia. As meninas de lá fazem milagres.”

“Você realmente viu?”

“Refere-se à praia? Claro que sim. Todos viram. O que mais nos teria deixado imóveis embaixo de um temporal como plantas?”

Kyrion voltou-se para Aciru, com olhos interrogativos. Mas seus pensamentos se desanuviavam ao constatar o estado da pequena, ensopada que estava.

“Vamos para meu quarto, precisamos nos secar. Arranjo algumas roupas para você.”

“Claro. Pego uma camisa sua, faço um buraco no umbigo e finjo que é uma burca. Ou corto uma perna de calça e faço um vestido tubinho...” foi a resposta da outra, mas de fato começou a segui-lo. “Nem você preenche suas roupas, Phiyo.”

Chegando ao aposento, Kyrion pegou toalhas limpas para ambos, e deixou a pequena banhar-se primeiro. Coisa que ela fez com surpreendente rapidez, mal dando ao Kyrion tempo para procurar roupas adequadas. Entregou-lhe uma camisa que ela amarrou na cintura como um vestido com uma faixa, dando duas voltas.

“Você por acaso tem meias? Sinto frio nos pés.”

“Tenho. Acabei por ganhá-las junto com todas as outras roupas que me deram quando cheguei” disse o Kyrion voltando ao armário. “Mas nunca as usei. Além de estar quente, bem... só posso usar meias abertas nas pontas.” Ele usou a cauda para apontar os próprios pés. Tinham dedos quase tão compridos quanto os das mãos, com unhas afiadas. “Elas seriam uma miséria em poucos minutos.” Ele completou, fechando o armário e entregando o par de meias brancas a Aciru.

“Naturalmente” ela pegou as meias. Olhou uma delas longamente, e depois o Kyrion. “É. Você ainda está meio lerdo.”

“Por quê?” Perguntou o mendeva, pegando uma roupa para si. “Por isso. Veja-me”

Kyrion voltou-se, e viu a pequena Aciru com ambas as pernas enfiadas em uma única meia. Até os joelhos. A outra estava em sua cabeça.

Desestruturado como estava, Kyrion riu até ter de se apoiar na cama para não cair. Não se dera conta de que a dedicação da pequena, que recebeu logo quando chegou, havia se tornado esta intimidade divertida e irônica; sem medo de ofensas, o relacionamento dos dois era muito mais recompensador.

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“Você daria uma ótima sereia, Aciru.”

“Estou realizada. Sempre quis ser uma sereia desabrigada e anã de armário.”

“Esquente-se com as cobertas da cama. Só vou tomar um banho também.” E entrou no banheiro.

A pequena acocorou-se na cama por entre as cobertas montando nelas algo parecido com um iglu. Esperou até que o outro saísse, repassando calmamente as visões que tivera com a música. Tinha muitas perguntas, mas era sábia o bastante para guardá- las para si, percebendo o amigo tão inquieto ou mais do que ela própria. Ele devia saber pouco sobre o ocorrido. E, somando-se a isso, era por demais orgulhosa para se mostrar ansiosa por informação como um ignorante.

Quando Kyrion saiu do banho com roupas limpas e confortáveis, dirigiu-lhe a palavra. “Sei que era bem encerado, lustrado e sabe-se lá mais o que, mas você faria bem em checar o instrumento de Nokto depois de um banho daqueles.” Sua frase causou profunda impressão no mendeva, que correu ao instrumento. Depois de armado todo o caos, esquecera-se completamente dele.

Por sorte, ele parecia perfeito. Depois de seco, não tinha nenhuma mancha, inchaço ou deformação. As cordas produziam os mesmos tons claros e perfeitos. A caixa não trazia água em seu interior. Kyrion admirou-se, considerando que o instrumento de madeira jogara a sério com sua fortuna.

“Imaginei que estaria ótimo, mas achei por bem checá-lo” disse Aciru, da cama, enquanto o mendeva pousava o instrumento em sua bancada de costume e vinha para a poltrona ao lado da cama. “Ele foi confeccionado por um mestre, e é bem mais que um reles instrumento. E sendo de posse do Nokto há anos, é bem provável que tenha também seus segredos, e proteções. Aquele bibliotecário é um bom pedaço de esperteza. Sorte nossa que guarde tão boas intenções para conosco.”

Kyrion pensou se conseguiria encarar o pacato amigo como um usuário perigoso de seus conhecimentos. Concluiu que sim, justamente porque ele parecia o oposto disso. E seu amigo era muito inteligente para deixar parecer qualquer coisa que ele realmente fosse.

“Acha que o que aconteceu pode ter sido obra do instrumento?”

“Por melhor que seja sua esperança, não.” Respondeu Aciru, compreensiva. “Ele produz música formidável, mas não aquela proeza. Não tem ideia do que foi?”

“Não muito clara. Acho que foi como uma... ilusão. Um delírio tornado visível.” O cinzento dizia lentamente, como se cada palavra tivesse um pequeno ferrão que pudesse machucá-lo ao escapar de mau jeito. “Será que foi realmente visível para todos ali?”

“Tenho certeza que o foi para quem quer que estivesse perto o bastante para ouvir. E todos os que ouviram devem ter parado, assombrados. Depois que a chuva começou nem todos se precipitaram na água, e de qualquer forma o som da canção foi abafado. Por isso a multidão não foi maior.”

“Achei que fosse algo em minha própria mente. É engraçado pensar que estava ali, para todos, já que não vi ninguém.”

“É provável que todos tenham se visto como sozinhos naquela praia, mas que todos tenham visto a mesma coisa. Foi o que eu vi, e ouvi outros dizendo.”

As longas pernas do Kyrion se dobraram e se recolheram na poltrona, sendo depois enlaçadas por seus braços. “O quanto você ouviu?”

“Vários minutos, não sei dizer. O sol ainda não se tinha posto por completo e mal começava a chuviscar. Mas como já havia um bom número de hipnotizados, devo ter perdido parte do espetáculo. Uma pena.” A pequena deu de ombros.

O outro parecia mais uma vez mergulhado em seus pensamentos. Seu queixo repousou sobre os joelhos, e seus olhos se perderam no vazio. O movimento fez seu cabelo molhado cair para o lado, e Aciru tomou o pretexto de arrumá-lo para desviar a atenção do amigo de um possível acesso de autopiedade.

Seus dedos começaram a desembaraçar os fios prateados enquanto falava “Por que parece tão consternado? Ninguém ficará mais do que resfriado. Não havia crianças ou idosos para adoecer ou se assustar. Você somente proporcionou um espetáculo único para os habitantes daqui.”

Kyrion soltou um suspiro. “Estou cansado de ser e fazer coisas que eu mesmo não compreendo.”

“Todos nós fazemos coisas que não compreendemos, Phiyo. Só que enquanto você cria tempestades numa praia paradisíaca imaginária, a maioria só compra um chapéu muito, muito feio, ou algo do tipo.” O amigo deu um risinho, e ela continuou. “Sei que deve ser cansativo estar à eterna busca de sua própria natureza. Mas os mendevas parecem estar sempre cumprindo missões terríveis ou fantásticas em lugares inimagináveis. Aproveite seu descanso, se tem a oportunidade, e simplesmente viva aqui.”

Phiyo tinha noção disto, como bem sabia ser necessária a paciência. “Eu queria continuar sendo útil, ao menos.”

“Muito simples. Proporcione mais desses espetáculos para nós.”

Kyrion estava inseguro, temendo ser incapaz de materializar uma nova visão quando se permitisse tocar outra vez. E estava quase igualmente temeroso de consegui- lo, uma vez que perceber poderes estranhos fora de controle não lhe parecia lá algo muito seguro. No entanto, talvez fosse absolutamente inofensivo, e apenas a coincidência da tempestade emprestara características tão ricas à sua ilusão.

“Posso tentar novamente, embora não saiba se sou mesmo capaz.”

A pequena ajeitou-se em seu iglu de cobertas, deitando-se com os cotovelos apoiados na cama, e o rosto repousando nas duas mãos. Continuava com uma meia de Kyrion na cabeça. “Muito simples. Como se sente agora?”

O outro franziu o cenho. “Agora? Simplesmente normal. Confuso, com um pouco de fome. Nada que não tenha passado umas mil vezes antes.”

“Então tente fazer de novo.”

“Aqui?”

“Se quiser, podemos ir para o banheiro. Ou para a praça, se a chuva for imprescindível. Prometo deixar as meias aqui, mas a camisa terei de levar, ou estarei nua.”

Aciru tinha o dom da naturalidade, não obstante quão malucas ou irônicas fossem suas palavras, de forma que era quase impossível adivinhar se ela falava sério, ou brincava. Normalmente, eram ambas as coisas.

“Prefiro aqui.” Disse Kyrion estendendo o braço para o instrumento na bancada.

“Foi o que pensei.”

“Não sei bem como começar...”

“Como começou da última vez?”

“Não fiz nada. Só estava praticando, e tudo começou.”

“Ótimo. Então pratique, e veja se algo começa.”

“Sua praticidade me comove” disse o Kyrion, começando a dedilhar seu treino com o instrumento atravessado no colo.

“Obrigada. Se eu fosse enrolada, depois desses anos todos, estaria louca.” Respondeu Aciru piscando. “Por que toca com o instrumento nessa posição?”

Kyrion não interrompeu o dedilhar, tentando disfarçar seu constrangimento. Ele nada dissera a Aciru sobre o seu braço. “Uma bobagem perto do ombro. Não se preocupe. E acabei por me acostumar com ele assim.” A pequena balançou sua cabeça solene e nada perguntou, pelo que Kyrion foi grato.

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Alguns minutos se passaram sem que os dois trocassem palavra. Quando o mendeva já começava a perder as esperanças, sentiu crescer o sentimento familiar, que se interpunha no comando dos dedos. A princípio, por instinto, ergueu resistência. Mas depois, ciente de que era seguro e que Aciru saberia lidar tranquila com a situação, entregou-se sem mais reservas ao impulso de criar, e compôs nova canção.

Esta apresentou o cheiro agridoce de terra molhada e plantas selvagens. Tinha o cricrilar de mil insetos, o farfalhar de mil folhas, o transitar de mil sombras. Uma floresta à noite, repleta de vida, de movimento, de repouso e ansiedade. De caça e de fuga.

Aciru viu igualmente essa paisagem tomar forma ao redor deles, primeiro difusamente, para depois tomar corpo, como se a realidade se esgarçasse, deslindando uma nova camada de ser, algo que ela quase podia tocar. Com seus conhecimentos, depreendeu que aquilo era mais rústico que uma ilusão, e mais etéreo que a realidade material. Deleitou-se, em seu ego tão sábio quanto vaidoso, por ser a única espectadora deste pequeno milagre.

***

“Eu sabia que conseguiria. Ah, é com muita tristeza que tenho de partir. A propósito, agradeço por ter pedido o jantar.” Aciru dizia ao Kyrion enquanto se encaminhava para a porta. Depois da canção sobre a floresta, este saiu e foi até o refeitório, onde pediu refeição para duas pessoas, que foi trazida alguns minutos depois. Após a refeição, o mendeva compusera várias canções sobre diferentes temas naturais, e uma abstrata, semelhante a um sonho.

“Eu é que lhe devo agradecer, pelo apoio e pela companhia. Vou aprimorar as canções... talvez venha a apresentar alguma coisa. A um público maior, quero dizer.”

“Seria maravilhoso. Não se preocupe, também lhe ajudarei a resolver os mal- entendidos que surgirão a partir de seu pequeno prodígio na ponte.” Kyrion sorriu, por poder sempre contar com a sensatez e discrição da amiga. “Por gentileza, pode me deixar emprestada essa echarpe de dragão?” Ela referia-se à meia em sua cabeça. “Ela aquece maravilhosamente as minhas orelhas. Já me basta ir descalça.” Disse a pequena. Ficara combinado que Kyrion mandaria lavar a roupa na manhã seguinte.

“Eu lhe emprestaria uma sandália, mas...”

“Se me emprestar também um animal, posso usá-la de trenó.”

Kyrion riu da resposta. “Pois é.”

“Não seu preocupe, estarei bem. Boa noite, Phiyo.”

“Boa noite.”

E a pequena saiu caminhando, parecendo altiva mesmo com uma camisa por vestido, a manga dobrada ao meio para servir, e uma meia na cabeça.