Os eventos dos últimos dias ainda me apertavam o peito. Tudo acontecera com velocidade absurda e ainda era difícil pensar sobre. A morte de Liza e as milhares de dúvidas que eu tinha à respeito de Summer ocupavam os meus pensamentos e eu não conseguia focar em absolutamente nada que tentasse fazer. Coisas simples, como ler um livro, se tornaram tarefas complicadas. Eu relia a mesma frase repetidas vezes e ainda não conseguia compreender o seu significado. Lia uma página inteira antes de perceber que não havia prestado atenção em uma única palavra. Tentava escrever sobre o que sentia e me pegava encarando o lápis por minutos à fio. Dormir era quase impossível, e quando conseguia, tinha pesadelos. Não que isso não fosse normal, mas haviam mudado. Não era mais a face de um homem que me atormentava, era Liza. Seu corpo pendurado por uma corda no pescoço. Seu rosto sorria, morto. Isso era o mais aterrorizante. Não parecia ter encontrado paz.

Estava parada em frente a casa de Summer há tantos minutos que já conhecia cada detalhe da porta de madeira com tinta descascada. Eu não sabia como dizer o que eu tinha ido ali pra dizer, nem como perguntar o que eu queria saber. Não havia jeito sutil, e isso me fazia querer ir embora, desistir e tentar seguir a minha vida, mas eu sabia que eu não conseguiria descansar enquanto não ouvisse o lado de Summer na história. Não era justo com ela.

Bati receosa na porta.

— DAMON, VÁ EMBORA! Eu vou chamar a polícia, estou falando sério! — berrou do outro lado. Sua voz tremia, não conseguia disfarçar o medo.

— Summer? É a Lua. Está tudo bem?

Ouvi a chave rodando na fechadura e a porta se abriu rapidamente. Summer estava pálida, e suas olheiras profundas denunciavam sua falta de sono nos últimos dias. Abri a boca para perguntar o que estava acontecendo, mas, antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ela me puxou brutalmente pelo pulso para dentro de sua casa e bateu com desespero a porta atrás de si.

— Graças a Deus — disse soltando uma grande quantidade de ar. Parecia aliviada. Extremamente aliviada. Eu não entendia o que tinha acabado de acontecer, e quando estava prestes perguntar mais uma vez, fui interrompida pelo seu abraço urgente. Naquele momento ela aparentava ser pequena e frágil, o que não parecia ser comum.

A abracei de volta, tentando passar o conforto que ela precisava naquele momento. Não falei nada, apenas apoiei o queixo em sua cabeça e a apertei mais forte. Deixei que o silêncio acalmasse o ritmo das batidas do seu coração e colocasse seus pensamentos em ordem. Eu não a conhecia bem e nem sabia as coisas que se passavam em sua vida, o que quer que tivesse acontecido para deixá-la daquela forma era um mistério para mim.

— Desculpe. Está tudo muito turbulento — deu uma fraca risada enquanto secava as lágrimas com a manga do casaco que usava. — Mas, então, Lua. Seu corte melhorou bastante, né?

— É, melhorou — respondi tocando na testa automaticamente. — Summer, quem é Damon?

Ela não respondeu de imediato, parecia incerta sobre o que falar. Respirou profundamente várias vezes antes de me pedir pra sentar no sofá da sala, mas mesmo depois de minutos encarando o chão, ainda não havia soltado uma palavra. Não queria pressionar, então me foquei na televisão que estava ligada, mas o áudio estava no modo mudo. Passava uma reportagem sobre violência sexual. Mais uma menina havia sido violentada, e eu não queria de jeito nenhum ver aquilo, mas antes que eu pudesse desviar o olhar, a imagem que apareceu chamou a minha atenção.

— Summer — chamei para que ela também pudesse ver. — Summer, olha quem está na televisão.

Nós duas estávamos olhando agora. Maggie estava sendo entrevistada.

...Sim, aqui no grupo Escolhas nós estamos sempre tentando ajudar as vítimas. Não estamos aqui para denunciar ou julgar, e sim para tentar fazer com que elas consigam lidar de alguma forma com essa violência que sofreram, né? Falar muitas vezes alivia, e de certo modo, o que todos procuramos é aliviar o que está acumulado dentro de nós.

— Você tem algum recado pra quem passou por isso e não sabe o que fazer agora? — perguntou a repórter.

— Procure um psicólogo, um amigo em que você confie. Se tiver oportunidade, frequente grupos de apoio como o nosso. O anonimato é uma certeza, você não precisa nem mesmo dizer seu nome. Estamos reunidos pra ouvir suas experiências e dar suporte. Não há julgamento. É importante procurar ajuda.

— Falamos agora com Margareth Lewis, líder do Grupo Escolhas de Apoio à Vítimas de Violência Sexual...

A tela da televisão ficou preta. Summer havia desligado e estava em silêncio absoluto. Eu não conseguia acreditar naquilo.

— Nem uma única palavra sobre Liza — completou meu pensamento.

— Mas faz sentido — repensei. — O que ela diria? "A gente ajuda bastante sim, mas outro dia uma das pessoas que vinha aqui se matou, menina, acredita?". Ia provar o quanto essa merda não ajuda ninguém. Não faz sentido. Nada disso faz sentido.

Summer não respondeu, pensativa.

— É meu ex-namorado.

Olhei sem entender.

— Damon. Eu explico depois, mas, primeiro, está tudo bem? Por que você está aqui?

Respirei fundo antes de falar. Ainda não sabia como perguntar, mas não podia mais adiar.

— Eu liguei pra Christine para saber se ela a conhecia — soltei de uma vez e esperei sua reação, mas ela apenas continuou me fitando impassível. — Ela não admitiu de imediato, mas depois disse que você tem o Diabo no corpo. Pediu para eu ficar longe de você e não acreditar em nada que você disser. Parecia agitada, foi um pouco perturbador.

— E você está aqui porque quer ouvir o meu lado — concluiu. Fechou os olhos com força e inspirou profundamente se virando na minha direção. Parecia estar tentando se controlar, mas seus olhos pegavam fogo. — Você vai precisar me escutar agora, Lua. De coração aberto. Sem julgamentos, sem me apedrejar. Isso é algo muito pessoal, e você vai entender meus motivos quando eu terminar. Eu juro. Só te peço uns minutos pra me ouvir, mas me ouvir de verdade, está bem? Christine não está totalmente errada. Esquece o que eu falei sobre ser irmã de Liza. Eu menti pra você, Lua.

— Lua. LUA!

Dei um pulo na cadeira. Minha mãe estalava os dedos na frente do meu rosto. Olhei para ela buscando uma explicação para o susto desnecessário.

— Estou te chamando faz um tempão, Ana Lua. Um tempão — reclamou. Cansada, não respondi, apenas mexi na comida que, até então, não havia tocado. — Não vai me contar o porquê de você estar tão distraída nos últimos dias?

— Não quero falar sobre isso, mãe. Licença — pedi, já me levantando para que não houvesse tempo de ser impedida, mas senti sua mão agarrando firmemente o meu pulso.

— Ana Lua. Sente agora. Nós vamos conversar! Sou sua mãe e estou preocupada com você. Você sai de casa igual a um furacão, pega o carro, fica não sei onde por horas e horas e volta com um corte gigantesco na testa — reclamou agitando as mãos. — GIGANTESCO! Eu e seu pai quase morremos de preocupação! Você quer nos matar, Ana Lua? Onde você foi, Ana Lua? Como você se machucou desse jeito? Que ligação foi essa que te deixou daquele jeito, minha Nossa Senhora! E onde você foi hoje? Preciso saber, porque voltou pior do que estava antes!

— Mãe, esse corte está longe de ser gigantesco. Longe. A senhora está exagerando.

— Eu te fiz um monte de perguntas e você só prestou atenção no que eu falei sobre o corte! Ela só prestou atenção no que eu falei sobre o corte, José Carlos! Só nisso que ela prestou atenção! — exaltou-se. Meu pai apenas acenou com a cabeça e me fitou. Seu olhar me disse que eu não sairia da mesa até termos aquela conversa. Não adiantaria mais tentar evitar.

Respirei fundo e um nó se fez em minha garganta. Não seria fácil falar.

— Eu conheci uma menina no grupo de apoio que vocês me forçaram a ir. O nome dela era Elizabeth e ela tinha quinze anos. É, tinha — acrescentei quando meus pais me olharam esperando o pior. — Ela se matou. Se enforcou com uma corda amarrada em um ventilador de teto. A primeira ligação foi Christine, sua mãe. Meu número era o primeiro na lista dos mais recentes, pois eu tinha mandado uma mensagem no último domingo antes da sua morte. Acho que ela não tinha muitos amigos.

"Quando Christine me disse que ela havia se matado, eu fui consumida pelo ódio. No início eu não entendi o porquê de estar tão brava, já que eu mal a conhecia. Então eu peguei o carro e saí pra ver se conseguia pôr os pensamentos no lugar. Me isolar era a única coisa que fazia sentido naquele momento. Eu pensava que estava tudo sob controle, mas a cada segundo que se passava eu ficava com mais ódio e não consegui mais prestar atenção no que estava acontecendo fora da minha cabeça. Meus pensamentos gritavam. E então eu vi aquele caminhão vermelho, e o carro girou, e eu bati a testa no volante. Foi assim que eu consegui esse corte. Depois que o carro parou de girar, em vez de alívio, eu senti uma tristeza muito profunda. Em um nível que eu nunca tinha sentido. Mas mesmo tamanha tristeza não conseguiu impedir a raiva de voltar. Fui até o lugar onde acontecem as reuniões daquele grupo e elas já sabiam do suicídio da Liza. E lá estava Summer. Ela disse que era meia-irmã de Liza, mas que não tinham muito contato pelo fato de Christine a odiar com todas as suas forças. A gente conversou bastante, mas já estava ficando tarde e eu imaginei que vocês estariam desesperados, então eu voltei pra casa. A segunda ligação fui eu quem fez. Liguei pra Christine para saber se ela conhecia alguma Summer. Não dei muitos detalhes. Só o tom de voz dela já bastaria para eu saber se ela conhecia ou não. Ela não é uma mulher muito controlada. Obtive a minha resposta. Summer é quem diz ser. Foi só isso. Está tudo bem"

Não era só isso. O que mais me aterrorizava, eu não podia contar, pois não dizia respeito a mim. Não me admira que Summer tenha mentido. Ela e Elizabeth não eram irmãs, eram namoradas. A família de Elizabeth era inteira de fanáticos religiosos. Liza foi estuprada pelos primos e tios para que aprendesse a gostar de homem, mas aguentou tudo isso e buscou ajuda. Eu nunca conheci alguém tão forte assim. Christine sabia de tudo e permitia. Fazia questão de negar a homossexualidade da filha. Liza pediu que Summer se apresentasse como sua meia-irmã para as outras pessoas, para que não houvesse mais problemas. Elas se ajudavam em tudo. Uma sempre estava presente quando a outra precisava. Até que o pai de Liza teve um surto de raiva em um dia que Summer tinha ido buscá-la em casa para sair. Ele a estuprou, e foi naquele momento que Liza morreu. Não foi depois, quando ficou pendurada, sem ar. Foi ali.

O suicídio de Elizabeth foi a morte do seu corpo, pois sua alma já estava morta.