Greater Good — Interativa

I. ❝Tame Birds Sing of Freedom


CAPÍTULO I — ❝Tame Birds Sing of Freedom

Um ano antes

Cass queria voar.

Não — ele não queria, ele precisava.

Para certas pessoas, voar era como um instinto básico. Simplesmente fazia parte do modo como foram programados. No ar, ele não era um ser humano sem asas — era um aviador. E sua alma de aviador gritava dentro do peito, implorava pela altura, pelo horizonte infinito, pela vida. Era como implorar por ar; estar na terra consumia-o lentamente, de dentro de suas entranhas para fora.

Seu coração batia forte no peito, conseguia senti-lo em suas têmporas. Parou em frente à porta do escritório do pai e tentou controlar a ansiedade que crescia em seu peito. Não queria parecer desesperado, não queria se sentir prestes a ajoelhar no chão e implorar, implorar.

Estava engaiolado. Tudo que queria era sua liberdade por alguns minutos do dia. E depois ele retornaria, obediente, para os confins de sua cela, e passaria o dia cantando, como um bom pássaro.

Envolveu a maçaneta com a mão e abriu sem bater. Seu pai, surpreso, levantou os olhos cansados dos papéis que analisava sobre a mesa de mogno no centro do aposento. Atrás de si, uma janela que ia do teto ao chão exibia a paisagem pitoresca e distante da cidade.

Antes que abrisse a boca para qualquer coisa, o príncipe já se adiantava.

— Eu quero acesso ao hangar.

As palavras mal saíram de sua boca, mas Cass já podia ver a resposta; o modo como os braços do rei se cruzaram na frente do peito, como seus lábios se tornaram uma linha fina de desaprovação.

— E por que o súbito interesse?

Céus.

— Para voar, — Cass respondeu, simplesmente, um nó se formando na garganta. — Porque meus malditos códigos foram adulterados, e agora eu não tenho acesso nem a minha própria nave. Porque soube que Sua Majestade é quem deu a ordem.

O rei balançou a cabeça com uma risada final, voltando os olhos para os papéis em cima da mesa.

— Não seja tolo, — ele acenou com uma mão. — É claro que dei.

As palavras atingiram-no como um soco no estômago.

— O senhor não pode... — Cass se forçou a controlar o misto de fúria e desespero que escapava pela voz. Engoliu em seco e continuou, num tom mais lúcido e racional. — Eu sou um oficial da Força Aérea. Como Tenente-Coronel-

Seus dedos se afundaram no encosto da cadeira até os nós dos dedos esbranquiçarem quando foi interrompido.

— Como tenente-coronel, está submetido a poucas pessoas, — Orion roubou as palavras do filho. — Mas eu sou uma delas. E você irá acatar às ordens de seu superior, Cassian Schreave. Como um bom soldado.

Cass odiava se sentir daquele jeito, tão subjugado. Porque como o soldado que fora treinado para ser, conseguia entender. Mas ali, ali não se sentia como um soldado, não era tratado como tal — ali era um servo dos caprichos do rei.

— Pai, — ele inspirou profundamente, mas isso não impediu que a voz falhasse no final da sentença. — Pai, me ouça.

— Eu já ouvi, — ele tinha um tom impaciente. — E minha decisão permanece a mesma.

Conforme virava a passos largos para deixar a sala, ultraje cresceu dentro de si. Ninguém separava um cavaleiro de sua montaria, ou um piloto de sua aeronave. Ele queria se controlar, como um bom soldado, e aceitar seu destino. Mas seus superiores jamais impediriam-no de voar. Jamais. Não sem que ele houvesse merecido.

— Por que te incomoda tanto? — ele se virou, de súbito, arrancando a mão que já estava na maçaneta. — A felicidade? Eu já não tenho dezesseis malditos anos! Não preciso de sermões de Sua Majestade, o grande Rei Orion Schreave. Já tenho idade suficiente para decidir o que fazer.

Os olhos frios do homem encontraram os dele. E naquele momento, eram príncipe e rei, — não pai e filho, não soldado e comandante.

— Retire-se, Cassian. Antes que diga algo de que se arrependa.

Mas Cass continuou, incapaz de segurar aquela torrente de coisas que seriam melhores não ditas

— É por isso que Helen saiu naquele dia. Porque ela se sentia sufocada por você, é por isso que ela agora está-

— Silêncio!

Cassian não podia dizer que já havia visto o pai perder o controle daquela forma. Não podia dizer que já havia presenciado o fogo que cresceu em seus olhos, a dor, o desespero. Mas principalmente a fúria. Antes que pudesse piscar, Orion já estava de pé. Antes que pudesse completar, já o havia alcançado.

— Não diga- — Orion apontou o dedo no rosto dele. — Não diga besteiras, não diga coisas sobre as quais não tem o mínimo conhecimento! E não aja como se se importasse, quando sequer se dignou a aparecer para dizer adeus, quando-

— Ela era minha irmã! — Cass bradou, agarrando o pulso do pai e tirando-o de seu rosto. — Minha irmã! Nós compartilhamos uma vida, e o senhor a sufocou até o momento em que ela entrou naquele avião. O senhor a matou, não percebe? Matou!

Com um golpe certeiro, Orion virou Cass contra a parede, o antebraço pressionando seu pescoço.

— Cale a boca! — Vociferou uma vez mais, entredentes, a mandíbula cerrada. — Cale a droga da sua boca! Não fale de Helen como se estivesse sendo controlada por marionetes, quando ela sabia perfeitamente o que queria e fazia.

Cass empurrou o peito do pai para trás, liberando a traqueia para respirar.

— Ela era muito melhor do que eu, — sua voz saiu rouca, num tom amargo, enquanto massageava o pescoço, — Para aturar esse chiqueiro de hipócritas que vocês chamam de realeza.

Orion deu alguns passos para a frente, e Cass se preparou para receber um golpe. Mas ele ficou ali, próximo demais, analisando-o com seus olhos acinzentados e, notou ele com uma pontada de surpresa, infinita tristeza.

— Você não passa de um jovem arrogante, egocêntrico e melindroso, que ignora seus deveres com seu povo em troca de alguns minutos de diversão superficial. — sua voz era baixa e controlada.

Cass olhou para o teto, e respirou profundamente.

— Eu não me preparei para isso. Eu não pedi por isso.

Isso, — Orion apontou para a vista atrás de si. — Pediu por você.

— Em troca de quê? — perguntou com um gesto abrangente — Uma casa legal e pronomes de endereçamento bonitos?!

— Em troca de ordem! Entenda que para que haja ordem, deve haver sacrifícios. Helen entendia, é por isso que seria uma governante sem precedentes. Ela entendia o sacrifício.

— E olhe que maravilhas isto lhe trouxe! — Cass riu naquele tom de cinismo que não estava acostumado a usar. Voltar a morar no castelo, ao que lhe parecia, trouxera certos hábitos da adolescência que esperava ter aniquilado de uma vez por todas.

Uma sombra cruzou os olhos acinzentados de Orion Schreave.

— E o que lhe traria abandonar seu povo em tempos de crise, tenente-coronel? Você fez um juramento de lutar e proteger.

— Nas linhas de frente! Não atrás de uma mesa, vestido de palhaço num circo armado.

— Ser “palhaço num circo armado” é o que o povo precisa. Deixe a luta para os soldados. Você é substituível nas linhas de frente. Você é indispensável aqui. Então me diga: o quê?

Cass encarou o rei. Seus olhos queimavam.

— Felicidade, Sua Majestade, — disse ele enquanto abria a porta. — Mas não esperaria que você soubesse o significado disso.

Um golpe baixo, sim. E assim que enunciou as palavras, desejou não tê-las dito.

Cass deixou a sala, tomando cuidado para não bater a porta atrás de si, como a criança petulante que Orion o acusara de ser, e seguiu em direção ao plano B.

Contrariar ordens diretas do rei pode ser considerado traição, além de crime federal. Cass contrariou não só as ordens de seu soberano, mas de seu pai.

O Estado não pune filhos rebeldes.

Nem príncipes em desacordo.

Mas pune soldados que desobedecem ordens de superiores.

E era exatamente isso que faria.

— Eu preciso do seu SkyArrow.

Lorcan ergueu uma sobrancelha sem sequer desviar os olhos de uma PHI — projeção holográfica interativa — que Cass não se importou em tentar decifrar. Seus olhos espertos se moviam com rapidez, algoritmos e rascunhos geométricos dançando nas lentes de seus óculos de armação fina.

— Eu achei que não gostasse de lixos ultrapassados como meu SkyArrow.

Cass se recostou na parede.

— É, eu também.

Sentado na mesa, Lorcan moveu uma das mãos para o lado, fazendo com que a projeção desaparecesse no mesmo instante. Ordenou em voz alta que o vidro fumê atrás de si se tornasse transparente, permitindo que a luz entrasse na sala. Então apertou os olhos, desacostumado com a claridade. Cassian apostaria que fazia um bom tempo desde que Lorcan vira a luz do dia.

— E o que fez Sua Alteza reconsiderar seus padrões? — Perguntou, puxando uma das pernas para cima da mesa.

Cass deu de ombros.

— Circunstâncias extremas pedem medidas extremas.

O primo cruzou os braços, alisando os micro-sensores na ponta dos dedos enquanto olhava para o príncipe com um ar suspeito. Era mais velho que Cassian apenas um ano, e parecia mais jovem, de certa forma. Mais uma prova de que o serviço militar endurecia os jovens rapazes para se tornarem homens feitos antes de atingir os vinte e dois.

— Vai fazer alguma coisa ilegal? — perguntou, direto como sempre.

— Possível crime federal, militar e moral.

Lorcan ficou em silêncio por alguns segundos, os olhos ainda fixos no primo, o polegar batendo distraidamente no queixo. Arrancou os nanosensores das pontas dos dedos, pedaços extra sensíveis de nanotecnologia que se moldavam ao redor das digitais como uma segunda pele e as descartava numa lixeira próxima

— Ótimo.

Cass estalou as mãos num gesto animado.

— Ótimo.

Lorcan se esticou para o lado pegar o par de muletas encostadas contra a parede, e apoiou o peso nelas para se colocar de pé. Cambaleou por um breve momento, tentando encontrar uma posição confortável para as pernas fracas.

— Sob hipótese alguma, — Lorcan lhe lançou um olhar ameaçador. — Deixe o sistema sobrecarregar.

Cass revirou os olhos, impaciente — Você fala como se eu tivesse dezesseis anos e nenhuma experiência.

Deu de ombro, aliviando o pescoço da tensão de ter ficado numa mesma posição por tempo demais.

— Minha belezinha é sensível e delicada como uma mulher prestes a atingir o ápice. Seus instintos brutos e militares matariam-na.

Ele torceu o rosto e seguiu Lorcan em direção à plataforma do tráfego aéreo. O vidro transparente sobre seus pés, mostrando ao vivo e em cores os vários metros entre ele e o chão, nunca falhava em lhe dar uma belíssima sensação de vertigem, — como piloto, Cass gostava de altura, mas odiava não ter controle algum sobre ela.

Ele engoliu em seco e desviou os olhos para as costas de Lorcan, onde os músculos por baixo da blusa azul tensionavam conforme levava as muletas à frente do corpo e puxava as pernas bambas para frente.

— Essa sua analogia é bastante específica, — disse, abrindo a jaqueta quando uma onda de nervosismo o invadiu. Tentou pensar em qualquer outra coisa que não fosse a altura absurda. — Quem é a belezinha sensível e delicada que você tem levado ao ápice?

Lorcan riu, mas não disse nada. Recostou-se contra as portas traseiras do carro estacionado no final da plataforma enquanto abria a dianteira, se jogando no banco do motorista. Liberou as muletas dos antebraços e as atirou no banco traseiro enquanto Cass entrava.

— Rowan Goselyn sempre me pareceu um pouco… quadrada.

Lorcan arregalou os olhos por trás das lentes, então olhou para frente e envolveu o volante com as mãos.

— Não sabia que Sua Alteza Real tinha tempo para ler revistas de fofoca, — o carro levantou voo, e Cass sentiu uma onda de alívio.

— Ossos do ofício, — Lorc digitou a destinação no painel que se abriu a sua frente. — Mas Rowan Goselyn? Ela é o mais baixo na cadeia alimentar.

— Cale a boca, Schreave, — seu tom de voz era irritadiço.

Cass sorriu, satisfeito.

— Então é verdade?

Lorcan o fuzilou com o olhar.

— Eu agora preciso de autorização real pra transar? Vai à merda.

— Como seu melhor amigo-

— Sério?

Como seu melhor amigo, — Cass insistiu, — Eu me sinto na obrigação de alertá-lo. Aquela mulher é uma oportunista de primeira. Ela transforma dor e sofrimento em notícias de primeira página, e se deleita no caos absoluto. Ela não-

— Eu sei o que ela é, Cassian, — explodiu, levantando as mãos de uma só vez. Depois se recuperou, inspirando profundamente e retornando os olhos para o tráfego incessante de carros. — Eu não sou burro, e já sou grandinho pra decidir quem eu levo pra cama. Não é como se eu compartilhasse segredos de estado com ela. Nós fazemos sexo. É só isso.

— Você pode achar que sim, mas Rowan é como uma víbora. Traiçoeira. Ela ataca quando você menos espera.

Lorc soltou um suspiro exasperado.

— Olha, você quer meu SkyArrow ou não? Porque você está começando a encher o raio do meu saco, e eu estou considerando te ejetar daqui neste exato momento.

Cass ergueu as mãos num gesto de rendição.

— Eu só estou te alertando.

— Anotado. Agora coloca a droga do cinto.

Cassian desceu do SkyArrow sentindo que podia, finalmente, respirar. Ele desfez o velcro no peito e tirou os braços das mangas do macacão térmico, se livrando dos óculos escuros ao colocá-lo na gola da camiseta. Ah, sim. Depois daquele voo, podia passar o restante da semana sendo indulgente, submetendo-se às obrigações reais que sugavam tudo de bom e maravilhoso de dentro de si.

Estava tão feliz, ainda saboreando a sensação de cortar as nuvens, que não viu o golpe acertá-lo. Não um golpe físico, propriamente dito, mas chegou bem perto de um nocaute.

A cena que se desenvolveu ali, no hangar, fez com que seu estômago tivesse aquela velha sensação de vertigem; sua mãe, num vestido conservador e discreto, caminhava em sua direção em passos largos sobre os saltos. Os cabelos negros, como os seus, esvoaçavam ao redor dos ombros e os olhos azul-safira, também como os de Cass, brilhavam num tom indecifrável.

Atrás dela vinha Lorcan, fazendo o possível para acompanhar as pernas longas e ágeis da Rainha Alina.

— Cassian Starkov Illéa-Schreave, — ela vociferava conforme se aproximava. — Estivemos tentando localizá-lo pelas últimas três horas.

Ele olhou da mãe para Lorcan, que lhe lançou um olhar de quem tentou impedir o desenrolar da situação.

— Eu estava… Ocupado.

— Ocupado? Você estava com a cabeça nas nuvens!

Este, meus caros, é o problema de voltar a morar com os pais, refletiu ele. Eles nunca vão te tratar como um adulto.

— Pelo que sei, não disponho de nenhum chá real pra comparecer hoje, mamãe, — ele a desafiou, os olhos fervendo.

O escárnio passou despercebido, ou ignorado, pela rainha.

— Você se acha tão imune, — ela disse, respirando com dificuldades. — Contraria ordens diretas...

— A senhora está aqui para dizer que eu não devo voar? Porque meu pai já fez um belo trabalho nessa questão.

Ela inspirou profundamente, fechando os olhos. Quando os abriu, havia recuperado a calma e controle habituais.

— Não, Cassian. Eu estou aqui para dizer que seu pai sofreu um ataque cardíaco por conta de uma discussão ridícula, que tomou rumos que definitivamente não deveriam ter sido tomados.

— Ele o quê? — ele piscou os olhos, atordoado.

— Honestamente, Cass, — a voz da mulher assumiu um tom brando, quase triste, mas alheio, vítreo. — Você acha justo ter jogado Helen contra ele? Helen?

— Mãe, — Cass segurou seus cotovelos, sacudindo-a de leve, — Mãe!

Ela piscou, como se apenas agora processasse a situação. Seus olhos azuis transbordaram em lágrimas enquanto ela olhava para seu rosto. Ele viu os traços maturos de mulher se contorcerem, e o queixo tremer enquanto tentava recuperar o fôlego.

— Ele… — ela abriu a boca diversas vezes, incapaz de falar devido ao aperto na garganta. — Ele está bem... agora. Por enquanto.

Quando ela começou a chorar, Cass prendeu sua cabeça contra seu corpo e a abraçou com força.

— Ah, Cassie, — ela lamentou entre as lágrimas, os sons abafados pelo peito do filho. — Ah, meu pequeno Cassie… Eu não posso perder você também. Por favor- por favor, não-

Ele beijou o topo de sua cabeça, e voltou os olhos para Lorcan, que os assistia atentamente, o rosto indecifrável.

— Não se preocupe, mamãe, — ele disse, os lábios ainda enterrados nos cabelos dela. — Ninguém vai a lugar algum.