Eu de Letras, ela de Irônicas

Capítulo 24 – Quebrador de Corações (você vem mesmo?)


Anna ouviu passos. Alguém descia as escadas.

Não eram os passos de Anabeth e, pesados que eram, duvidava que fossem os de Ellie. Ela já sabia quem vinha ao seu encontro.

Os passos haviam parado. Ele estava ali.

Ela evitou olhar para trás, mas não teve alternativa quando Andrew chamou seu nome:

— Anna?

Ela já sabia que ele estava sozinho. Entretanto, ainda foi capaz de se surpreender ao vê-lo ali, parado, sem outro alguém por perto. Talvez fosse o rebuliço de sentimentos dentro de si, que querendo ou não acabavam por deixa-la com a guarda mais enfraquecida.

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Anna também se surpreendeu ao notar que sentira estranheza em ter seu nome dito pela voz dele. E para ela, foi estranho o fato de ter sido estranho. Não que fosse ruim, mas mexia com o vendaval dentro de si e aquilo não era exatamente agradável.

— Hum? – emitiu o que foi capaz naquele exato momento.

Ele estava sério. Não transparecia irritação ou qualquer outra coisa, estava somente sério.

Andrew inspirou profunda e audivelmente antes de soltar o ar e dizer:

— Precisamos conversar.

Aquela frase fez algo dentro de si reagir com endurecimento. Igualmente séria, ela sustentou o olhar por um instante. Era verdade e ambos tinham consciência do fato. E ela precisava daquilo, por mais que se recusasse a admitir. Então se virou para devolver o livro que segurava à estante e, enfim, nada mais impedia. Anna balançou a cabeça concordando.

Então foi em sua direção e parou bem à sua frente. Olhos nos olhos, se encarando ao mesmo tempo em que resistiam à troca de qualquer sentimento ou palavra não dita entre si. Apenas encarando, sérios, azuis intensos versus castanhos suaves – quase antônimos entre si.

Andrew inspirou e engoliu em seco, finalmente desviando o olhar para, aparentemente, começar a falar. Provável que estivesse reunindo e organizando os argumentos.

Ela tomou a voz antes que ele começasse:

— Ei, isso vai demorar. Podemos ao menos tomar um banho antes? A tinta ainda não secou totalmente e, além de eu não querer sujar os móveis, quero me sentar e ficar mais à vontade. Meu corpo também está coçando e vou ter o cabelo e pele ressecados se não me limpar logo. Só um banho e voltamos para cá, pode ser?

Ela dera bons motivos e em uma quantidade suficiente. Sabia que ele concordaria.

Andrew a observava com uma sobrancelha levantada antes de concordar, de fato:

— Claro. Afinal... podemos entrar e sair daqui a hora que quisermos. Ao que parece, a casa é nossa.

— É. É sim – ela falou, antes de passar por ele e parar de repente bem em frente ao primeiro degrau. Sabia que ele a acompanhava com os olhos – Pensei por um momento: seria o castanho antônimo do azul? – perguntou sem se voltar para ele.

Logo se arrependeu do que dissera. Não tinha mais jeito.

— Te vejo daqui a pouco – despediu-se e subiu rápido.

Anabeth e Ellie não estavam mais por ali. Nem dentro nem fora da casa – Anna constatou. Nesse momento, seu celular emitiu um bipe indicando uma nova mensagem. Anabeth. Estava com Ellie no quarto, a segunda tinha concordado em ajudar a começar a arrumar tudo para a mudança.

Anna se pôs a caminhar rumo ao encontro das duas com a cabeça e o coração (ela sabia) ocupados demais. Foi bom porque compensou a falta de companhia e encurtaram o caminho.

Já de frente para a porta, Anna abriu sem bater, devagar, e viu Anabeth receber ajuda para guardar algumas roupas em uma caixa organizadora de plástico cor-de-rosa. Ambas se viraram apenas para conferir quem estava entrando, embora Anabeth já desconfiasse. Anna avisara o que tinha sido decidido antes de começar a tratar dos assuntos pendentes com Andrew.

— Você vem também, né?! – Anna dirigiu-se à melhor amiga.

— Anabeth respondeu sem olhar para si, dobrando algumas roupas de forma que coubesse no compartimento:

— Somente se você quiser que eu vá, embora você saiba que eu jamais a abandonaria de qualquer maneira. Porém, falamos sobre isso depois. Vá resolver sua vida pessoal com o cara por quem se apaixonou. Eu e Ellie vamos cuidando daqui.

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Anna olhou para Ellie, que lhe lançou uma piscadela confirmando o discurso de Anabeth. Anna sorriu em agradecimento e pediu à Anabeth qualquer coisa para vestir enquanto ia em direção ao banheiro.

Anabeth bateu à porta não muito tempo depois e entrou assim que o shorts jeans de Anna foi ao chão. Mesmo com uma camada de roupas por cima, a tinta havia conseguido sujar sua pele e até mesmo partes da lingerie salmão suave. Anna entrou no box, a amiga deixou as peças limpas sobre a tampa da privada e pegou as sujas do chão, saindo em silêncio logo depois.

Anna era sempre muito grata à amizade de Anabeth. A amiga estava presente para tudo o que ela precisasse na hora em que precisasse, sempre. E Anabeth sabia que era recíproco, embora precisasse bem menos vezes se fossem comparar. Anna sorria enquanto tirava as peças restantes por ser acometida com algumas lembranças inevitáveis que tinha ao lado da melhor amiga.

Água morna desceu com o giro do registro, levando consigo a tinta de seu corpo para o ralo, que recebia água colorida e misturada entre si diversas vezes. Observando aquela cena, Anna pegou-se pensando se o que tinha com Andrew terminaria daquela forma. Literalmente, de alguma maneira, pelo ralo. Impossível, ela constatou, visto que amizade não é um elemento tangível.

Essa percepção clara da lógica das coisas serviu para lhe acalmar um pouco o coração.



Ele observava a água, que de incolor não tinha nada, sendo engolida pelo ralo de maneira impiedosa. Ininterrupta. Refletia em uma coisa e em várias ao mesmo tempo e não sabia o que estava sentindo e se era certo ou não. Mas estava ali, aquela sensação estranha e diferente, por tanto tempo esquecida. Não era boa nem ruim. Na verdade, parecia mais como uma ligeira ansiedade aliada a algo um tanto quanto mais infeliz e o fato era que Andrew não estava sabendo lidar com aquilo.

Então ele permanecia lá, apenas sentindo a água quente do chuveiro descer por seu corpo, lavando-o; retirando suor e tinta, momentos felizes e confusos, alegria e frustração... Um mix de tantas coisas, assim como a água multicolorida a seus pés.

Havia chegado rápido até o apartamento – até mesmo ele havia se surpreendido. Subira as escadas correndo, não se importando com os vultos que apareciam nos arredores (passara tão rápido e absorto em si mesmo que as pessoas que apareciam pelo caminho eram como vultos ao seu redor) e até se surpreendeu com a força e velocidade do modo automático que se encontrava quando abriu a porta do quarto. Com medo de assustar Chad, foi logo entrando e pedindo desculpas enquanto fechava a porta atrás de si com um pouco mais de força que o desejado – acabara por escapulir. Chad não estava para variar. Havia apenas o quarto vazio, com a luz poente das cinco tornando a visão das camas e pertences de ambos ligeiramente épica, em um tom de dourado-pôr-do-sol. Aquilo o inspirou de uma forma estranha, trazendo algumas vontades incomuns lá de dentro do seu âmago. Andrew permitiu-se agir por aquela excitação crescente de estar com adrenalina correndo por seu sangue, a percepção de estar sozinho no quarto e a ansiedade (e ligeiro temor inegáveis) que a conversa trazia. Andrew permitiu-se sair um pouco da zona de recato que estabelecera para si próprio, puxando a camisa suja e ainda meio molhada de tinta e (mais de) suor e atirando-a para frente antes de chutou os tênis outrora pretos de qualquer maneira e soltar o cinto – descendo todas as peças restantes de uma vez só. Calça e cueca permaneceram jogadas de qualquer jeito no meio do quarto. E ele não se importava. Não naquele momento.

Seu coração batia acelerado com aquela sensação de liberdade contida (já que estava sozinho dentro de um quarto), mas que ainda era sensação de liberdade e ele permitiu-se aproveitar daquilo respirando fundo. Podia sentir os pelos de seu corpo eriçando-se com a novidade e ele, por um momento sentiu-se bem. Que engraçado era ser humano: estava amargurado e há muito frustrado, irritadiço e confuso, mas ainda podia ter sensações boas. E sensações boas sobrepondo-se às ruins. Isso era fantástico, na verdade. Evitava que ele afundasse em negatividade, pra variar...

Deus era um cara que sabia bem das coisas...

Andrew virou-se estranhamente energizado e, indo em direção à porta de entrada, girou a chave trancando-se. Então partiu para o chuveiro, permitindo-se mais uma coisa: deixar a porta do banheiro aberta.

Ele observou a si mesmo no espelho uma vez antes de entrar na ducha: o cabelo escuro multicolorido e arrepiado com a tinta que secara, pescoço, a barba por fazer e parte do peito antes branco, agora, os olhos azuis que brilhavam com o misto repentino de sensações positivas por sob camadas de tinta de cores diversas... Comparou a si mesmo com uma obra de arte moderna, uma pintura realista que trazia consigo alguma mensagem forte sobre caos interno e sentimentos – que praticamente escorriam por seus olhos – e ele pegou-se refletindo por um instante que aquilo que via poderia ser uma representação muitíssimo bem feita do termo “humanidade”. Mas então a imagem de Anna lhe acometera e, como se nunca tivesse estado lá, aquela efêmera epifania foi sugada pelas sensações que a imagem lhe causava. Ele entrou no box e girou o registro, extremamente reflexivo.

O que conversaria com ela, afinal? Ele não tinha mais certeza – e só naquele momento tinha se dado conta do fato. O que ele teria para dizer a ela? E o que ela teria para lhe dizer? Ele pensava enquanto retornava de seu ligeiro flashback de alguns instantes enquanto observava a água, que de incolor não tinha nada, sendo engolida pelo ralo de maneira impiedosa.

O que ele diria a ela e o que ela diria a ele?

E outro excelente ponto: ele estaria aberto a receber?

Sentia que esse momento seria decisivo de alguma forma para ambos. Temia isso. Ansiava por isso. Estava em conflito(s).

Andrew esfregou o cabelo de forma até mesmo bruta – torcendo para que de alguma forma o gesto limpasse não só a tinta em sua cabeça, mas também seus pensamentos. Obviamente só funcionou com a tinta.



Quando Anna retornou ao porão aconchegante da casa, Andrew já estava lá, sentado no sofá como se ainda não tivesse saído. Entretanto, a pele branca imaculada e os cabelos escuros ainda meio molhados denunciavam o óbvio. Ele levantou-se do sofá da direita, que ficava encostado à parede, quando ela entrou.

— Não há necessidade de formalismos – Anna cortou.

Ele sentou-se novamente sem dizer nada. Ela sentou-se no sofá da esquerda, ficando bem de frente com ele. Seguiu-se um pequeno intervalo de tempo em que o silêncio quase constrangedor se instalou entre ambos.

— É a primeira vez que te vejo de chinelos – ele comentou casualmente, observando os pés de Anna.

Estaria ele nervoso? Anna não conseguia lê-lo. O tom de voz não denunciava muita coisa, embora estivesse sentado completamente ereto, podendo indicar certa tensão. Talvez estivesse em um estado de espírito ambíguo.

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De fato, a moça estava um pouco mais casual que ele próprio: usava um suéter fino e marrom simples de manga longa, shorts jeans e os chinelos. Os cabelos soltos e também úmidos caíam pelos ombros despreocupadamente. Andrew trajava calças jeans azul escuras, uma camiseta branca aparentemente confortável e All Star. Seu cabelo, em contrapartida, estava penteado como o de um bom menino.

Andrew suspirou pesado.

— O.k., por onde começamos? – iniciou.

E então, algo nele depositou em Anna uma pontada de algo não muito bom. Lá no fundo do seu ser, de maneira que poderia ser até mesmo discreta. Mas estava lá.

Anna sentiu o piscar de seus olhos vacilarem ligeiramente.

Era estranho, porque ela não fazia ideia do que era nem o que causava, embora suspeitasse que fosse o homem sentado à sua frente, que olhava para algum lugar qualquer parecendo extremamente concentrado nos próprios devaneios. Mas era incapaz de decifrar aquilo com plenitude. Só sabia que... céus, ele estava lindo. E mexia consigo, embora ela soubesse mas não admitisse. Ou talvez sim, visto que estavam ali...

Então, ela reparou: ele havia se barbeado. E aquilo lhe trouxera uma pontada de irritação, porque quando estava com o rosto liso, Andrew rejuvenescia de uma forma que, não só em sua personalidade, mas também em seus traços físicos, aquela inocência insana dele ficava acentuada. E ela não queria o Andrew inocente naquele momento. Queria o Andrew que, ela sabia, ainda não havia se mostrado direito: Anna queria irritação, emoção, raiva ou até mesmo fúria, frustração e desejo expostos, jogados para fora. Não queria uma capa de educação e bom senso, como sempre tinha. Não, ela queria mais. Queria quebrar os muros dele e trazê-lo, o Andrew de verdade, à tona. Ela queria humanidade e não uma casca de contenção e barreiras protetoras; queria vê-lo perder a cabeça de alguma forma para, então, saber que era mesmo real. Tudo aquilo, por mais que doesse.

Ela queria sinceridade. Nada mais.

Era estranho ao cubo, mas Anna realmente desejava que ele sentisse o que muitas vezes ela havia sentido e estava sentindo naquele exato instante. Não por vingança, repito, mas para ter certeza de que tudo aquilo era real, de que eram duas pessoas normais sentindo coisas que pessoas normais sentiam, por mais doloroso que fosse às vezes. Assim, quem sabe, ela talvez pudesse ter certeza de que, ao menos, vinha sofrendo por algo de verdade. Então, de alguma forma, tudo aquilo não só faria sentido como também valeria a pena de algum jeito. Por mais que doesse. Porque ela precisava acreditar que não era irreal ou inexistente. Por mais que doesse...

“Droga, Andrew! Por que você sempre me surpreende assim? Era pra ter deixado a barba como estava. Você sempre tem algum detalhezinho para me pegar desprevenida, como um tipo de trunfo do mal.”

Andrew era previsível – fato – porém, ainda assim, às vezes ele era capaz de apresentar algumas dificuldades para si na tarefa de lê-lo. E, se não podia lê-lo, Anna sentia-se completamente despreparada para bater de frente em qualquer aspecto e detestava aquilo, pois se sentia injustiçada. Mas a paixão, afinal, podia muito bem ser um jogo injusto.

Ele olhou para ela, diretamente para ela e todos os pensamentos sumiram num instante. Em contrapartida, a sensação inicial aumentou mais rapidamente.

— Bem, quer falar alguma coisa? – ele perguntou. – Não sei por onde começar – confessou em seguida, após uma breve pausa seguida por um ligeiro sorriso de canto de boca, como que pedindo desculpas.

Aquilo a surpreendeu.

Aquela falsa vulnerabilidade aliada à falsa inocência. Junto com a frase. Junto com... aquele sorrisinho. Cínico. Isso a irritou, mas Anna prometera a si mesma que não perderia a cabeça – o alvo, afinal, era o outro. Acontecesse o que acontecer, ela permaneceria inabalável – ao menos aparentemente.

Era difícil, mas ela iria conseguir! Afinal, ela também sabia ser cínica quando necessário.

Anna endireitou-se mais ainda. Já tinha a frase pronta em mente. Sabia como agir:

— Eu vou ser extremamente direta com você.

Ela sabia, ah, ela sabia que ele não seria perfeito nesse tipo de autopreservação. Por mais que estivesse acostumado, Andrew não suportaria manter os muros erguidos para sempre e haveria de baixa-los por um instante, mais cedo ou mais tarde. Em algum momento extremamente bem pensado, ele começaria a agir de maneira previsível – e era só disso que ela precisava.

Ela havia captado toda a atenção dele com a última frase e sabia disso. Sentia pelo peso do olhar sobre si. Ótimo, era assim que começava.

— Você sempre é. Não espero nada diferente dessa vez. – Ele respondeu atento aos movimentos da outra.

— Eu vou te pedir uma coisa e recuso-me a aceitar o contrário. – Anna determinou.

Andrew franziu levemente a testa e, ainda sem desviar o olhar, perguntou:

— Que seria...?

— Sinceridade. Eu quero ao menos desta vez poder ter alguma chance de entender você. Porque esta conversa precisa me libertar.

— Te libertar...?

— De você. Do que eu sinto. Porque não há nada pior do que você esperar algo de alguém e ser frustrado. Mas, mais do que isso: não há nada pior do que você despertar o interesse em alguém, saber que é recíproco, mas não receber nenhuma devolutiva clara. E não há nada pior do que você respeitar o tempo da pessoa quando, na verdade, só querem brincar com os seus sentimentos. Não há nada pior que dar chances pra um cara que entra no seu jogo ao mesmo tempo em que se mantém distante. E não há nada pior que repetir isso e se envolver até chegar num ponto onde mesmo desistir não é mais possível. Porque você já está maldita e suficientemente apaixonada pela pessoa a ponto de não conseguir estar com outro alguém sem se pegar pensando nela. O que foi que você fez comigo, Andrew? E por que comigo?

Ele a olhava perplexo, surpreso e confuso.

— Mas o quê? Eu não fiz nada com você!

Anna sorriu com ironia e olhos marejados:

— Você é tão cego a ponto de ignorar isso ou faz de propósito? De verdade, eu prefiro levar um tapa a descobrir que você é um cafajeste – por favor, não seja esse tipo de cara. Não me deixe saber que eu me apaixonei por um sedutor barato. Eu não mereço isso, está me entendendo?

Ela se levantou do sofá. Ele se levantou junto. Soando indignado, foi sua vez de falar:

— Ei, eu não sou um cafajeste.

Anna rebateu rápido:

— Então por quê? Se não estava realmente interessado, por que me deixou acreditar que estava? É só isso que eu quero saber. Por que você brinca comigo dessa forma?



Ela estava extremamente ofendida, eu podia sentir. Só que eu não fazia por mal, de verdade, e teria de achar uma forma de explicar isso.

— Eu não quis te dar falsas esperanças. Jamais faria isso com ninguém, Anna. Quanto mais alguém como você.

Com os olhos começando a marejar, ela rebateu:

— Não consigo acreditar em você... Desculpe-me, mas eu não consigo.

Eu entendia. De uma forma que ela jamais poderia imaginar. Fora exatamente o que eu dissera. Ela, então, trouxe facas em suas palavras:

— Entende? Não parece. Porque você age como se estivesse incrivelmente bem com tudo isso. Quase como se gostasse, porque não existe outra explicação pro que você faz, quebrador de corações.

Aquilo me golpeou. E doeu naquela região mais sensível de mim, a parte obscura do meu ser que mexe com meu passado e presente.

— Nossa... – foi o que consegui dizer.

Ela endureceu o olhar:

— Você ainda não me respondeu. Vamos lá, agora talvez nem importe mais, mas mesmo assim: por que me deixou acreditar que era recíproco, Andrew?

Eu estava sem fala. O que poderia dizer numa hora dessas? Não fazia ideia do impacto que não me posicionar tinha causado. Se bem que, por outro lado, não fui eu quem começou nada disso… Senti um pouco de raiva aflorar.

— Engraçado — um riso irônico curto escapou —… Uma vez que quem começou tudo isso não fui eu.

Anna me olhou como se não tivesse entendido.

— Você surgiu e fez questão de permanecer na minha vida, se aproximar de mim e me deixar conhecer você melhor. Você se permitiu envolver e, por não ser correspondida, tem um ataque de nervos? Por acaso faz ideia de como todos os seus joguinhos e charminhos mexeram comigo?

Parei para respirar um pouco. Estava ficando cada vez mais nervoso.

— Você se deixou envolver, você se permitiu. Eu não tenho controle sobre isso, muito menos posso carregar essa culpa. Não — olhei diretamente em seus olhos — eu não irei carregar essa culpa. Ela é só sua, Anna.

Anna olhava para mim com uma expressão assustada e até um pouco estarrecida. Imagino que jamais esperaria uma resposta dessas. Ela permaneceu em silêncio, me fitando.

— Sinto muito, mas ter um coração partido faz parte de ser humano. Se você nunca passou por isso, me desculpe, mas dizem que tudo tem uma primeira vez.

Lembranças desagradáveis surgiram aos montes em minha mente.

— E você não sabe os meus motivos para a minha resistência… — engasguei — Então, por favor, pense duas vezes antes de chamar alguém de cafajeste da próxima vez. As pessoas têm elementos que muitas vezes são desagradáveis em seus passados.

Posso ter pegado um pouco pesado. Anna permanecia sem reação, me olhando como se eu tivesse me tornado uma coisa esquisita. Suspirei.

— Olha, eu… Eu gosto de você. Mas não consigo… Eu não…

Não dava pra continuar falando. As palavras se amontoaram em minha garganta, recusando-se a sair.

Instantes de troca de olhares silenciosos se seguiram. Até que ela suavizou o olhar e relaxou os ombros.



Agora começava a fazer sentido o fato de Andrew jamais ter mencionado muita coisa em seu passado. Anna ligava os pontos em sua mente, mas faltava um resquício, algo mais, só um pouquinho mais para confirmar o que ela cogitava.

Sem titubear, ela recuperou seu dom da fala e mandou de uma vez:

— Você já teve um coração partido, não é?

O olhar dele, antes transitando entre irritação e mágoa, se sobressaltou. Não só o olhar, mas Andrew literalmente levou um pequeno susto com aquela pergunta.

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Ele cerrou os lábios e baixou os olhos. Era isso.

Ele sofria.

Anna não pôde evitar o sentimento de compaixão que aqueceu-lhe o peito. Devagar, ela se aproximou:

— Conversei com Ellie há pouco tempo e ela me disse algumas coisas que me abriram os olhos, de certa forma.

Parando em frente a Andrew, que permanecia aparentemente abalado, ela reduziu mais ainda o tom de voz:

— Alguém que você gosta muito te machucou bem aqui — delicadamente ela pousou uma das mãos no centro do peito dele —. E isso de alguma forma te traumatizou. Agora você prefere adotar uma postura de evitar qualquer contato que porventura possa se tornar íntimo…

Ele levantou o olhar e seus olhos se encontraram de novo. Uma sensação de conforto aliviou um pouco o peso acumulado no peito de Anna.

— Entendi — ela disse.

Como Andrew permaneceu quieto e triste, Anna acabou com a distância que havia entre ambos passando os braços pela cintura dele. Ele enrijeceu o corpo e ela apertou o abraço. Ficaram assim por um tempo.

— Você tem razão, eu posso ter me deixado levar pela frustração e ter te julgado mal. Me desculpe, Andrew. — Ele não cedeu. Ela acrescentou — Não sei quão grande foi sua decepção, mas saiba que você não tem que carregar isso pra sempre. Eu te conheço o suficiente para saber que tem um bom coração e dói em mim ver você sofrendo assim. Não sei exatamente por quê.

Ele finalmente relaxou o corpo.

— Só… me deixa te ajudar. Você não precisa carregar uma mágoa dessas, por mais que seja lógico querer isso. Você não merece, Andrew.

— Ninguém pode me ajudar com isso. — Ele falou com um pouco de rouquidão na voz.

— Desculpe, mas você está enganado. Você merece ser feliz.

— Como eu faria isso?

— Abrindo mão da mágoa e permitindo que seu coração se cure. Estou disposta a ficar do seu lado se você quiser. Não tem que passar por esse processo sozinho.

Um momento de silêncio.

— Anna, eu… eu não sei lidar mais com sentimentos românticos. Seria um peso pra qualquer um. É melhor ficar sozinho do que desgastar outras pessoas...

Anna se afastou um pouco para poder olhá-lo nos olhos. Então segurou o rosto de Andrew com as mãos. Ele fechou os olhos em contato com o toque dela.

— Pessoas fazem escolhas todos os dias. A cada instante. Da mesma forma que quem te machucou escolheu fazer isso, você tem o poder de escolher se libertar. Não se mantenha preso ao passado, Andrew. Isso não faz bem a ninguém. E, ei… Quando eu digo que estou disposta, quero dizer que eu escolho estar com você, para te ajudar, para fazer companhia. É uma decisão minha que faço por nó… Por você. E por mim.

— Por que escolher algo assim? — Ele franziu o cenho, confuso.

— Eu já lhe disse o motivo. Gosto de você.

— Só isso?

Anna sorriu descrente:

— “Só?”. Você acabou de me falar sobre traumas e sentimentos, mas parece não ter experiência alguma com isso. — Anna riu. — Que fofo!

Andrew franziu o cenho mais ainda.

— Você é realmente uma gracinha. Parece um bebezão de um metro e noventa e setenta quilos de músculo. Mas sim. Só por isso.

Então, ela estendeu a mão:

— Vem comigo. Vou te mostrar que relacionamentos nem sempre são um desastre doloroso. Mais ainda, vou te mostrar que você pode sim ser feliz ao lado de alguém que goste.

Ele olhou da mão estendida para os olhos de Anna desconfiado.

— Eu não sei…

Anna cortou:

— Seja sincero consigo mesmo: você quer?

— Anna…

— Quer ou não? Sim ou não?

— … Quero.

Ela sorriu.

— Então vem. Vai ser muito melhor dessa vez.

— Como você pode ter tanta certeza?

— Porque, sozinhos, nós dois vencemos cinco outros grupos numa competição. Porque eu me divirto demais quando estou com você e sei que você também gosta. Porque há reciprocidade. Porque somos adultos. Porque é comigo que você está falando e sou eu quem afirma.

— Porque somos a melhor dupla.

E apesar da leve ironia, do tom brincalhão e do charme jogado, Andrew sabia o que ela queria dizer com aquilo.

Vacilante, ele levantou a mão.

— Você confia em mim, Andrew?

Ele inspirou fundo. Valia a pena tentar(?).

A mão dele se aproximou sem pressa. Envolveu a dela, com suavidade, e se fechou.

A mão decidida dela apertou a relutante dele de modo a transmitir confiança. O toque para ambos foi reconfortante.

— Confio.

Anna sorriu. O coração de Andrew também.

— Então, temos um novo acordo. Você me fará feliz e eu continuarei te fazendo feliz também. Sem pressão, sem cobrança. Apenas porque somos dois adultos e estamos escolhendo isso. Aceita?

Ele piscou e engoliu em seco. Então assumiu um olhar mais determinado e balançou a cabeça:

— Aceito.

Anna deu um sorriso de contentamento genuíno. E surpreendendo Andrew mais uma vez, agarrou-o em um abraço sincero.

— É muito bom te abraçar, moço! — Comentou satisfeita.

Ele retribuiu o abraço.

— É muito bom ser abraçado por você, moça.

E sorriu porque era verdade.