Déjà vu

Capítulo 41


Eu não saberia responder se alguém me perguntasse quanto tempo fiquei na mesma posição, sem conseguir me mexer e olhando para as minhas mãos sujas de sangue. Embora eu soubesse que, apesar do pedido de silêncio, as salas de espera fossem locais relativamente barulhentos, o único som que eu conseguia ouvir era o meu coração batendo descompassado, completamente fora do ritmo normal e mais forte do que eu julgava possível.

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A tremedeira não havia passado, nem as lágrimas que ainda insistiam em cair, embora eu estivesse em silêncio tentando construir na minha mente em branco as cenas dos primeiros socorros que estavam sendo conduzidos a poucos metros dali. Nada, nenhuma imagem, nenhum procedimento, nenhum detalhe sequer do que eu fazia todos os dias me vinha à mente, aumentando minha sensação de completa inutilidade do lado de fora, enquanto a vida do homem que amo estava nas mãos de outra pessoa.

Desejei ligar para o Ron e pedir que ele fosse meu apoio mais uma vez, mas olhando em volta constatei que eu não fazia ideia de onde estava minha bolsa, e o celular jazia dentro dela, onde quer que fosse. Esse era meu único plano de conforto, sem a possibilidade de executá-lo eu estava perdida de novo.

Uma infinidade de tempo depois, ouvi passos decididos em minha direção e Colin parou na minha frente com um saco plástico nas mãos, que ele empurrou na minha direção enquanto dizia apressado:

—Seu tipo sanguíneo é O-, não é? - Assenti diante da pergunta, já entendendo o que aquilo significava.

—O do Harry também.

Nosso tipo sanguíneo era o mais usado em caso de acidentes, porque qualquer pessoa pode recebê-lo, o que fazia os estoques muitas vezes serem escassos e até mesmo inexistentes em algumas ocasiões. Mas só podíamos receber do mesmo tipo que o nosso, o que poderia ser um problema.

—Precisamos, você pode?

—Lógico. Como ele está? - Perguntei, aflita por notícias.

—Ele está estável, estamos subindo para a cirurgia. Vai logo. - Falou já saindo em direção aos elevadores. - Volto assim que puder. - Prometeu e se afastou.

Saí para o lado oposto e desci correndo as escadas que me levariam ao hemocentro, onde todo mundo já me conhecia. A enfermeira no balcão perguntou se era para alguém específico e eu dei o nome dele, informando que estava em cirurgia e era urgente. Menos de cinco minutos depois, eu já estava sentada enquanto a bolsa ao meu lado se enchia.

As coisas dele estavam no meu colo e eu olhei para aquilo por um tempo, pensando em quantas vezes eu mesma mandei um embrulho parecido para a sala de espera, porque era norma do hospital não manter objetos pessoais de pacientes caso houvesse um acompanhante. Olhei as peças de roupa que ele estava vestindo, dobradas às pressas antes de ser colocada ali dentro, o tênis enfiado de qualquer jeito em cima de tudo, e minha primeira manifestação de raciocínio foi lembrar que Harry sempre andava com o celular no bolso.

Revirei o conteúdo de qualquer jeito, tentando ser o mais rápida possível ao usar apenas uma das mãos, e respirei aliviada quando senti o aparelho em um dos bolsos da calça que ele estava usando quando saímos da sua casa. Assim que a tela se acendeu, vi que o relógio marcava nove e quarenta, mas me parecia impossível que em menos de uma hora tudo tivesse mudado tanto no meu mundo.

—Prontinho. - Um rapaz simpático anunciou, tirando a agulha do meu braço e colocando o curativo.

Ele sabia que as recomendações eram desnecessárias, porque eu também as conhecia, então só agradeci e saí de lá. A princípio passei direto pelo local onde os doadores se alimentavam, comer não me parecia uma ideia prioritária no momento, mas recuei alguns passos e entrei a contragosto quando pensei que eu poderia passar mal se não o fizesse. Eu precisava me manter bem, porque ele precisaria de mim quando isso acabasse.

Engoli metade do lanche e tomei o suco em três longos goles antes de devolver a bandeja e voltar para a sala de espera enquanto mastigava com mais calma o chocolate. Me sentei novamente, e precisei de três tentativas para forçar meus dedos trêmulos a digitarem corretamente a sequência numérica que desbloqueava o aparelho, e de mais quatro para acertar o número do meu irmão. Afundei o rosto nas mãos enquanto ouvia o som característico da ligação sendo feita, pensando em como começar a dizer sem que ele se desesperasse também.

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—Oi, Harry.

Ensaiei me manter calma, mas foi impossível com a pessoa que me serviu de fortaleza em todas as vezes que desabei por algum motivo, a voz do meu irmão foi suficiente para que eu voltasse ao tom desesperado que refletia como eu me sentia.

—Ron, sou eu.

—Gin, o que foi? - Perguntou imediatamente alerta, mas eu não consegui responder de imediato. - Onde você está? - A movimentação já indicava que ele estava se mexendo, e eu podia jurar que se preparando para sair.

—No hospital. - Consegui dizer entre soluços.

—No que você trabalha?

—Uhum.

—O que aconteceu? Me fala! - Exigiu alarmado.

—Está acontecendo de novo, Ron, vem pra cá, por favor. - Pedi de uma vez.

Notei que ele hesitou um pouco antes de falar, não foi difícil imaginá-lo juntando os fatos: eu ligando do celular do Harry, meu tom de voz, o que falei. Eu sabia que seria suficiente para ele vir sem que eu tivesse que dizer mais nada.

—Não sai daí, estou indo. - Pediu apressado. - Daqui a pouco eu chego, não sai daí! - Repetiu enfático.

—Ta bom. - Confirmei antes de encerrar a ligação.

Revirei o aparelho entre os dedos, sem saber o que fazer para o tempo passar mais rápido e aquela espera acabar. Me assustei quando o senti vibrar na minha mão e emitir um som alto, indicando o recebimento de uma nova chamada. O nome do Michael na tela me lembrou que Harry estaria tranquilamente sentado no sofá e assistindo seu time jogar se eu não tivesse sido assaltada.

Se eu não tivesse deixado o carro na rua.

Se eu não tivesse ido até a casa dele.

Se eu não tivesse aparecido em sua vida.

Pensar que a culpa era minha doeu o suficiente para mais algumas lágrimas molharem meu rosto, e uma vez esse sentimento aqui era difícil espantá-lo.

Pensei em não atender, mas ele certamente ficaria preocupado e eu sabia que deveria ter a consideração de informar às outras pessoas que se importam com meu namorado.

—Oi, Mike.

Minha voz certamente deve tê-lo alertado de que algo não estava bem.

—Gin, tudo bem?

—Não. - Respondi sem rodeios.

—Cadê o Harry? - Perguntou da mesma forma, soando mais preocupado do que jamais o vi antes. Vendo minha demora ele prosseguiu. - Você está sozinha?

—Uhum.

—Onde?

—No hospital.

—Aqui perto? - Confirmei com um muxoxo. - Ok.

Antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, a ligação foi encerrada. Olhei em volta, me certificando de que nada havia mudado naquela paisagem e eu continuava sem saber o que estava acontecendo alguns andares acima, onde eu verdadeiramente queria estar.

Foquei meu olhar nas portas do elevador se abrindo ao fim do corredor e vi o Colin vindo em minha direção novamente, a expressão um tanto contrariada. Não consegui esperar sentada até que ele chegasse ao meu lado e caminhei apressada ao seu encontro, me chocando com ele no meio do caminho. Não precisei nem pedir para que ele me desse notícias, meu olhar já era suplicante o suficiente.

—Até agora está tudo bem, mas a Smith não quer que eu participe. - Informou de uma vez, quase se desculpando.

—Mas por que? - Perguntei exasperada, com uma vontade súbita de subir lá e enfiar a mão na cara dela.

—Ela disse que estou muito envolvido, quase me colocou para fora, não tive o que fazer.

—Eu não acredito. - Resmunguei, enxugando o rosto com raiva.

—Ginny! - Olhei para o lado ao som do meu nome sendo chamado por uma voz preocupada, e me deparei com Mike caminhando decidido em minha direção. - O que foi?

—Eu não sei, aquela vaca tirou o Colin de lá, Mike! - Desabafei em meio ao turbilhão de raiva e desolação que me acometeu.

—De onde? - Perguntou sem entender.

Antes que eu falasse alguma coisa, seu olhar desceu por mim e o vi mais alarmado a cada nova mancha de sangue que vislumbrava na minha roupa.

—Pelo amor de Deus, me fala o que aconteceu! - Pediu, me segurando de frente para ele. - Cadê o Harry?

Tentei me forçar a dizer, mas eu não conseguia verbalizar o fato de que ele estava lá em cima, com uma bala sendo retirada de dentro do peito.

Colin interveio e chamou sua atenção para ele.

—Harry foi baleado, está em cirurgia e até quando eu estava lá dentro estava tudo bem, mas a bala ainda não tinha sido removida. - Informou da maneira mais profissional possível para o olhar atônito dele.

—Como? - Perguntou, se virando novamente para mim.

—Foi muito rápido, eu não vi de onde ele veio e foi muito rápido. - Contei como consegui, gesticulando enquanto tentava organizar os fatos na minha cabeça.

—Colin, emergência. - A enfermeira responsável pelo pronto socorro o chamou e ele me olhou como quem se desculpa.

—Preciso ir, gata. - Se lamentou com a mão no meu ombro e eu assenti levemente para ele.

Assim que meu amigo se virou e saiu, Michael olhou em volta um pouco perdido e me puxou para um canto em que teríamos mais privacidade para conversar.

—Vocês foram assaltados? - Perguntou, tentando compreender.

Balancei a cabeça afirmativamente e por um tempo ele não soube o que dizer.

—Eu fui, meu carro, mas ele estava perto de mim e não deixou.

—Não deixou levarem o carro? - Falou confuso, como se não fizesse sentido.

—Não deixou me levar junto. Eu não tive culpa, Mike. - Embora eu soubesse que ele não diria isso, senti uma necessidade enorme de me explicar para alguém.

Limpei o rosto de novo e seu olhar se deteve nas manchas nas minhas mãos.

—Eu sei que não, Gin. - Afirmou convicto, me puxando para um abraço.

Encostei o rosto no peito dele e aceitei o pequeno conforto em poder dividir a minha preocupação e o desespero, eu tinha plena certeza de que Mike queria tanto quanto eu que Harry ficasse bem.

—Vem, você tem que lavar as mãos.

Não estranhei quando ele acendeu a luz do banheiro feminino ao nosso lado e entrou comigo. Mike esperou pacientemente do meu lado enquanto eu lavava as mãos e o rosto.

—Quer que eu saia para você usar o banheiro? - Perguntou sem saber o que fazer, mas eu neguei. - Vou pedir pra Lisa trazer uma roupa para você, ta bom?

—Obrigada. - Falei, me sentindo muito mais grata do que eu conseguiria expressar.

Abri a porta e voltamos para a sala de espera enquanto ele já falava com a esposa. Tentei não prestar atenção nos detalhes que ele lhe contou e me dirigi a onde estavam as coisas do Harry. Coloquei novamente o embrulho no meu colo depois que me sentei, e voltei a brincar com o telefone dele apenas para passar o tempo.

—Gin. - Michael me chamou quando se sentou do meu lado. - Você não precisa se culpar, eu faria o mesmo pela Lisa. - Sorri agradecida por ele dizer isso e voltei a olhar para baixo. - Ela vai trazer uma roupa limpa para você.

Antes que eu pudesse agradecer, vi o Ron passar apressado pela porta e olhar ao redor, me procurando. Me levantei para encontrá-lo no meio do caminho, mas seu olhar de pânico esquadrinhou minha roupa e ele estacou, checando se eu realmente estava bem, pelo menos fisicamente.

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—O que aconteceu, menina? - Perguntou preocupado, me apertando no abraço em que me joguei.

Com o Ron tudo era diferente, eu não conseguia me forçar a esconder dele o que estava sentindo e isso me fez afundar o rosto na sua camiseta e soluçar tudo o que eu estava com vontade, enquanto ele me apertava de volta. Eu queria dizer a ele o que aconteceu, mas não conseguia, então o ouvi pedir a Hermione, que até então estava do lado deslizando as mãos pelo meu cabelo.

—Descobre o que foi, por favor.

Notei que ela foi fazer o que ele pediu quando o seu carinho cessou e apenas o dele continuou. Um tempo depois, minha cunhada retornou e informou a ele o que aconteceu. Propositalmente cobri os ouvidos para não ter que ouvir aquilo de novo, e senti um beijo no topo da minha cabeça logo antes de ouvir bem próximo ao meu ouvido:

—Ele vai ficar bem, Gin. - Garantiu antes de continuar. - Harry faz tudo que você quer e você quer que ele fique bem, então ele vai ficar.

Meu irmão não saiu do lugar enquanto eu não me soltei dele espontaneamente, e continuou deslizando a mão em um carinho reconfortante pelo meu braço enquanto eu limpava o rosto e lançava a ele um sorriso muito pouco convincente. Ele indicou com a cabeça alguma coisa atrás de mim, e eu me virei para encontrar o olhar cheio de solidariedade de Lisa, que estava segurando uma pilha de roupas.

—Obrigada, Li. - Agradeci, puxando as peças para mim e saindo em direção ao banheiro.

Notei que assim que virei as costas os quatro se organizaram em uma pequena rodinha e começaram a conversar. Apressei o passo em direção ao meu destino, porque eu não queria ouvir aquele assunto. Troquei as peças sujas pelas limpas e cheirosas que ela me trouxe, e dobrei de qualquer jeito minha roupa antes de sair do pequeno banheiro. Assim que me viram, eles se detiveram e me olharam cautelosos.

Eu sabia que as intenções eram as melhores possíveis, mas não consegui evitar me sentir um pouco irritada com isso. Passei direto e me sentei novamente onde estava antes, colocando minhas roupas dentro da embalagem onde estavam as do Harry.

O tempo todo eu me concentrava em manter os pensamentos o mais longe possível do que estava acontecendo naquela sala de cirurgia e de todas as complicações que eu sabia serem possíveis em casos como esse. Eu tinha que acreditar que tudo acabaria bem, porque esse é o único resultado com o qual eu saberia lidar.

Olhei as horas novamente: onze e quinze.

Me lembrei de repente que Lily e James estavam em uma conexão a caminho da Austrália, enquanto o único filho deles estava em uma mesa de cirurgia, era meu dever avisá-los. Mas como eu diria a ela o que aconteceu? Me arrastei até onde Ron, Mione, Michael e Lisa ainda estavam conversando e me virei para o melhor amigo do meu namorado.

—Temos que dizer aos pais dele, você pode fazer isso, por favor? - Pedi no modo automático.

Ele assentiu e saiu com o celular já nas mãos, eu me virei e voltei para onde estava sentada.

Pressionei a testa com os dedos, me sentindo subitamente cansada de tudo isso e querendo desesperadamente poder levar o Harry para casa comigo, trancar a porta e mantê-lo seguro do meu lado, longe de toda aquela confusão. Eu queria ouvir sua voz normal outra vez, queria sentir aquela empolgação que me contagiava, queria dizer que o amo. Me senti culpada por não dizer isso a ele com mais frequência, apenas demonstrar não me parecia mais ser suficiente.

Lisa veio até mim e se abaixou na minha frente.

—Eu preciso ir para casa, Meg está com uma vizinha. - Falou se desculpando, afagando carinhosamente meus joelhos. - Me deixe levar isso para você. - Apontou para as roupas sujas que eu ainda estava abraçando.

Entreguei a embalagem sem dizer nada. Antes de se levantar, ela abriu e puxou de dentro as chaves e a carteira dele.

—Fica com isso, pode ser que precise. - Me devolveu e se levantou, dando um beijo no meu rosto. - Vai ficar tudo bem, Gin.

Assenti olhando para baixo e virando os objetos que ela me entregou nas mãos.

—Li. - Chamei quando ela deu alguns passos para longe, mas se virou para mim. - Pode jogar tudo fora, por favor.

Abri a carteira dele para ter o que fazer, e logo de cara, no primeiro compartimento, encarei uma Ginny muito sorridente em uma foto que ele tirou sem que eu visse e, segundo ele, era sua preferida. Me encarei por um tempo antes de virar aquele e passar aos próximos, sem necessariamente prestar atenção no que estava vendo.

—Gin. - Mike chamou, andando em minha direção. - Lily quer falar com você.

Nem pensei em negar esse pedido, apenas recolhi as coisas no meu colo, peguei o celular que ele me estendia e caminhei para fora do hospital, longe dos ouvidos de todos os outros, sozinha para conversar com quem provavelmente estaria sentindo muito mais do que eu o que aconteceu. Não pude deixar de pensar se, depois de saber com detalhes o que houve, esse seria o momento em que ela deixava de gostar de mim.

—Oi, Lily. - Cumprimentei com a voz miúda, me sentando em um dos degraus que desciam para o estacionamento.

—Como aconteceu, Ginny? Você estava junto, eu quero saber sua opinião como médica, como foi? - Pediu alarmada, claramente chorando.

Levei um segundo a mais do que o necessário para organizar as ideias e então contei com as minhas palavras, pela primeira vez:

—Eu estava saindo da casa dele para voltar ao trabalho, ele me acompanhou até a frente do prédio e nós nos despedimos, mas antes de entrar no carro eu fui abordada por um cara pedindo a chave. - Parei um momento para limpar o rosto de novo, porque eu não estava precisando de muito esforço para chorar nesse momento e contar não ajudou. - Eu entreguei, mas ele queria que eu fosse junto e eu neguei. Ele me puxou para o carro, mas o Harry entrou no meio e ele atirou. - Terminei e respirei fundo para conter os soluços. - Como médica, tenho certeza absoluta de que não acertou o coração e isso é ótimo, talvez tenha acertado nas costelas, o local do ferimento não sugere que tenha atingido um órgão vital, mas eu não sei o ângulo que a bala entrou, e isso pode mudar tudo. Quando chegamos ao hospital os sinais vitais estavam bons, mas ele perdeu bastante sangue. - Mordi o lábio ao fim da narrativa, quando a ouvi soluçar. - Lily, eu fiz tudo o que podia na hora, eu juro, mas eu não tinha nada comigo, a gente estava na calçada em frente à casa dele, não tinha muito o que eu fazer. Eu fiz tudo o que podia!- Mesmo aos meus ouvidos, soei desesperada ao dizer isso, porque de todo mundo ela era quem eu mais queria que acreditasse que eu faria tudo o que pudesse e fosse possível pelo nosso rapaz.

—Eu sei, meu amor, não tenho dúvidas de que você faria tudo por ele, você f... - A frase foi morrendo aos poucos enquanto ela chorava e os soluços aumentavam, até não restar mais nada além desse som angustiante que espelhava o meu. - Me dá, Lily. - Ouvi a voz do James.

—Gin, você está bem? - Ele perguntou, genuinamente preocupado.

—Não. - Respondi entre minhas respirações entrecortadas.

—Fisicamente você está bem? - Explicou pacientemente, a voz bondosa.

—Uhum.

—Você ainda tem seu celular?

—Não, mas estou com o dele. - Respondi com esforço para dizer a frase toda de uma vez.

—Ótimo. Nós estamos voltando, estou fazendo o que posso para conseguir um voo de volta ainda hoje, eu te ligo quando souber. - Concordei com um som abafado e ele continuou. - Querida, precisamos nos manter informados e não há ninguém que possa fazer isso melhor do que você, por favor, qualquer coisa que acontecer, e assim que ele sair da cirurgia, nos avise.

—Claro, James. - Concordei com a mão cobrindo o rosto, ainda sentindo meus ombros chacoalharem vez ou outra.

—Obrigado, Gin, por tudo. - Agradeceu, soando completamente sincero e a chamada foi encerrada.

Ainda fiquei um minuto ali antes de pegar as coisas do Harry do meu colo e voltar para dentro, onde os três me aguardavam ansiosos.

—Obrigada. - Devolvi o celular do Mike. - Eles estão voltando.

—Onde eles estão? - Mione me perguntou confusa.

—A caminho da Austrália. Aniversário de casamento. - Informei e caminhei até um dos bancos novamente.

Ron se acomodou ao meu lado e ofereceu seu ombro para que eu me encostasse. Me mantive nessa posição e aproveitei o silêncio dentro da minha cabeça para me dividir entre desejar profundamente que tudo estivesse bem e olhar as fotos que ele tirou nos dias em que passou com os pais. Algumas me fizeram rir, mas até nesses momentos eu precisava limpar uma ou outra lágrima teimosa que escorria.

Senti o coração disparar quando, por trás do celular na minha mão, avistei a figura prepotente de Anne Smith andando na minha direção. Essa era a hora de saber de tudo, e o fato dela ter vindo pessoalmente dar a notícia podia significar uma notícia ruim, ou então ela fazia questão de estar no comando sobre o paciente. Deixando toda a posse de lado, pedi a Deus que meu segundo palpite fosse o correto.

Enfiei o celular dele no meu bolso e me levantei, indo ao encontro dela. Michael parou ao meu lado ansioso, Ron e Mione se mantiveram um passo atrás para ouvir também.

—E então? - Perguntei quando ela parou, mantendo a distância habitual entre médico e familiares.

—Alguém da família já chegou? - Ignorou minha pergunta e olhou em volta.

—Sim, Smith, estamos aqui e queremos saber como ele está. - Repeti impaciente, tentando a todo custo não ser rude.

—Por família eu quero dizer pais, irmãos ou cônjuge, Weasley. - Explicou irônica. - Não podemos dar informações para quem não é da família.

—Pelo amor de Deus, faz mais de dois anos que você o vê entrar e sair daqui comigo. - Argumentei alguns tons mais alto do que o normal.

Ainda calado ao meu lado, senti quando o Mike segurou meu braço.

—Namorada não é família. - Deu de ombros com um sorriso presunçoso no canto dos lábios. - Você conhece o procedimento, quando alguém da família chegar mande me chamar. - Frisou bem a palavra "família" e começou a se virar para voltar à área restrita.

—Sua vaca! - Explodi, me lançando sobre ela.

Antes que eu alcançasse, ouvi um coro de "Nãos!" muito alarmados ao meu redor e os braços do Michael me segurarem com força no lugar, impedindo que eu completasse meu impulso agressivo.

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—Volta aqui, sua desgraçada! - Ordenei e ela se virou para mim, ainda com superioridade. - Você vai me dizer agora como ele está! - Exigi e ela continuou como estava, sem dizer uma palavra.

Senti meus olhos pinicarem com lágrimas que agora eram de raiva, e me forcei para longe do aperto que me segurava.

—Me solta, Mike, preciso ligar para a Lily. Se você faz tanta questão de uma porra de uma autorização, espere aí e escute, sua filha da puta.

Com as mãos trêmulas, levei o celular ao ouvido e só precisei esperar chamar uma vez até a voz da minha sogra soar do outro lado.

—Gin, tem notícias? - Pediu alarmada.

—Ainda não, Lily, porque a vaca da médica ridícula que o atendeu não quer me falar como foi porque eu não sou da família. - Falei exasperada, preocupada em encarar com a maior quantidade de raiva possível a mulher à minha frente. - Preciso que você autorize essa filha da puta a me dizer o que houve e me autorizar a acompanhá-lo no pós operatório.

—Deixa eu falar com essa vaca. - Exigiu transtornada.

Estendi o telefone para ela, que o apanhou me lançando um olhar quase assassino. Pensei ter ouvido Michael disfarçar uma risada com uma tosse enquanto esperávamos que ela terminasse o que eu imaginava ser uma ligação nada amigável. Menos de um minuto depois, ela concordou com um breve "ok" e me devolveu o aparelho.

—Pronto, autorizado. - Lily anunciou orgulhosa.

—Obrigada, eu te ligo daqui a pouco. - Sem esperar resposta, encerrei a ligação e me virei para a médica. - Você conhece o procedimento, fala logo. - Exigi, sem nenhum resquício de paciência.

Ela demorou um segundo a mais que o normal propositalmente, trocou o peso de uma perna para a outra e falou soando entediada:

—Foi tudo bem, não atingiu nenhum órgão vital, mas ele perdeu muito sangue. A condição é estável, mas se ele não acordar nas próximas vinte e quatro horas não tem muito o que eu possa fazer.

—Onde ele está? - Interrompi sua narrativa, quase antes que ela terminasse.

—Na UTI, pós operatório. - Falou a contragosto. - Você pode ir até lá.

—Eu sei que eu posso e já conheço o caminho. Obrigada. - Agradeci com a maior quantidade possível de ironia e virei as costas para ela, olhando os rostos aliviados atrás de mim.

Mike afundou o rosto nas mãos e respirou fundo, relaxando os ombros pela primeira vez desde que chegou.

—Vai logo! - Mione me incentivou com um sorriso encorajador e eu não demorei nada em obedecê-la.

Já com o celular no ouvido para dizer aos pais dele que as notícias eram tão boas quanto podiam ser nesse momento, corri pelos corredores que eu conhecia tão bem, desviando de quem estivesse na frente.

—Me conta. - Minha sogra pediu desesperada.

—Ele está bem. - Respondi aliviada, me permitindo sorrir enquanto ela exclamava um muito sonoro "graças a Deus" que eu repeti mentalmente. - Não atingiu nenhum órgão, Lily, e ele provavelmente vai dormir até amanhã, mas está bem.

—Obrigada, querida. - Agradeceu com tamanho alívio que eu não consegui evitar suspirar também. - Se ele acordar antes de chegarmos diga que o amamos e mandamos um beijo.

Sem verbalizar, pensei que ele tem que acordar muito antes de eles estarem aqui.

—Claro, eu direi. Conseguiram as passagens? - Perguntei com pressa de encerrar a ligação, porque eu estava chegando ao meu destino.

—Ainda não, mas te avisaremos assim que conseguirmos. - Prometeu.

—Tudo bem, eu aguardo o contato de vocês. Vou vê-lo agora, Lily, nos falamos depois, tudo bem?

—Claro. - Seu tom demonstrava a vontade gritante que ela tinha de estar aqui também. - E obrigada mais uma vez, Gin.

—Não precisa me agradecer, você sabe. - Respondi com sinceridade e paciência. - Beijos.

Encerrei a ligação e deslizei o celular dele para o bolso da minha calça, depois virei correndo o último corredor necessário para ver a porta de entrada do pós operatório onde Harry estava. Parei em frente ao quadro informativo de pacientes e corri os olhos por ali até encontrar o nome dele e o número da sala individual onde se encontrava.

Após identificar o número, apressei meu passo em sua direção, sentindo os olhares dos enfermeiros responsáveis pela área me acompanhar, mas sem me deter para falar com nenhum deles. Alcancei o leito vinte e três e abri a porta sem cerimônia, dando de cara com um Harry muito mais corado do que a última vez que o vi.

Fechei a porta atrás de mim e me encostei nela por um minuto, olhando seu peito subir e descer no ritmo de uma respiração normal, e não em curtas e rápidas expirações como anteriormente. Respirei fundo para acalmar meu próprio ritmo cardíaco e só então me aproximei.

—Ei, Ursinho. - Cumprimentei apertando sua mão entre a minha e deslizando os dedos por seu cabelo, já sentindo minha voz embargada novamente.

Constatei que Harry não estava com febre e nem com a pele gelada, e ainda que estivesse com um pequeno tubo de oxigênio no nariz, não foi necessário entubá-lo. Procurei os sinais clínicos que comprovavam que Anne tinha razão ao dizer que ele estava bem, e felizmente encontrei todos os que eram visíveis apenas a olho nu e com uma breve inspeção.

Me perdi um tempo fazendo carinho na mão dele e bagunçando ainda mais seus fios pretos enquanto o olhava ressonar tranquilamente. Eu já tinha visto Harry dormir inúmeras vezes, então usei esse tempo para esquadrinhar todos os detalhes e expressões, tentando me certificar ao máximo de que se tratava apenas de um sono como qualquer outro e ele acordaria às oito da manhã, morrendo de vontade de correr para um de seus livros chatos e incomodado porque não pode arrumar a cama do hospital.

Reprimi a vontade de olhar como estavam os pontos da cirurgia, porque minhas mãos não estavam esterilizadas e eu não tinha onde fazer isso antes de mexer em um corte tão invasivo. Depois de me convencer que não havia mais nada que eu pudesse avaliar nele, e ainda me sentir ansiosa e nervosa com a situação, cheguei à conclusão de que isso não passaria até ele falar comigo de novo, de preferência no tom e velocidade normais, lançando mão dos sorrisos que iluminavam todo aquele rosto bonito que estava pacífico demais para o meu gosto.

Me abaixei e dei um selinho em seus lábios fechados, apenas para ver se ele se retrairia como faz quando eu o beijo enquanto dorme, e não foi com satisfação que o vi tão quieto e parado quanto antes. Mudei o foco dos meus lábios e beijei sua testa, depois sua bochecha e me detive um pouco mais ali, em um meio abraço enquanto seu cheiro me inundava, mesmo que misturado ao odor de tantos produtos hospitalares. Eu queria senti-lo pelo menos um pouco assim mais perto, Harry permaneceu completamente imóvel.

Arrastei para mais perto da cama a poltrona que era destinada ao acompanhante. Forcei meu lado profissional a me convencer de que dopado de remédio como estava, ele não se retrairia nem que eu deslizasse uma pedra de gelo pelo seu peito aquecido sob a manta.

Empurrei a força para longe qualquer pensamento ruim e baguncei seu cabelo uma última vez antes de dizer em um tom claramente imperativo:

—Vamos, Harry, acorde porque eu quero ver seus olhos.

Obviamente, ele sequer se moveu além do movimento necessário para respirar. Ainda com sua mão presa na minha me afundei no assento atrás de mim, decidida a não sair dali até que me obedecesse.