O sacolejar da água contra o casco da embarcação provocou um som que obrigou Joseph a abrir os olhos, sua mente derivando entre o sono e a exaustão. Partindo do Rio de Janeiro, estava a bordo do vapor nacional Senegal desde cedo pela manhã e por volta do meio-dia não suportava mais encarar a paisagem molhada imensurável e ter as conversas alheias em seus ouvidos. O sobrado naquela sossegada rua de Recife, que nunca lhe parecera casa, agora era tudo que ele desejava. Bem, não tudo, pensou com amargura ao virar-se para se deparar com um grupo de homens esbaforindo fumaça e mulheres o encarando.

Sentado à sombra sobre o pequeno baú que levara consigo, Joseph tentava fugir do sol escaldante que estava custando a se acostumar, o obrigando a vez ou outra puxar a gola de sua camisa. Onde ele estava com a cabeça quando, de muito bom grado, se ofereceu para levar a encomenda até o Rio de Janeiro? Mas Joseph não enganaria nem a si mesmo se tentasse. Sabia muito bem que estava furioso até os ossos de seu corpo e, conforme os dias foram passando, ele perdia a noção do porquê.

Desembarcara na capital do Império há quase duas semanas, sentindo-se irritado e covarde por perceber que estava fugindo. Que o dessem um desconto, considerou, por querer um pouco de paz. Mal sabia Joseph que paz era a última coisa que teria. Naqueles dias, se vira diante da frenética Rua do Ouvidor, onde Joseph constatou que parecia ser o lugar preferido para compromissos e socialização. Desgastara-se com contratos que lutou para fechar e se encontrou no Paço de São Cristóvão, beijando a mão do Imperador e da Imperatriz.

Joseph logo foi recebido com estima por comerciantes e empresários, ocupando suas noites com jogos, bebidas e falação. Fizera contatos e aproveitou para colocar o nome da biscoutaria sob bons olhos. Mas quando se sentava à sua cama na hospedaria, uma única coisa vinha a cabeça, a mesma que ainda a ocupava quando atravessou as águas pernambucanas, em direção ao porto de Recife. Joseph sempre gostou de achar que não se importava com o que pensavam dele e realmente aprendera a não se importar. Mas a desconfiança de Joana o pegara desprevenido, o deixando enfurecido ao notar que se importava com o que ela pensava dele. Era quase como se ele percebesse que durante todos os momentos que compartilhou com ela, uma parte de Joana não estava lá. Ela era capaz de ceder aos seus toques e o desejar, mas sua mente nunca estava por perto – ou estava, o odiando.

O que ele esperava? Ousava dizer que a cada dia conhecia mais Joana ao apenas observar o jeito impetuoso dela, as expressões em seu rosto. E se era do agrado dela se entregar, mesmo o detestando, não deveria ser um problema. O problema era que Joseph não sabia mais se era do agrado dele e isso estava tirando suas noites de sono.

— Senhor Fretcher! Já não era sem tempo!

Manoel o recebeu com sua voz grave chamando a atenção de todos na biscoutaria, assim que Joseph colocou os pés nela. O dia começara preguiçoso naquele meio de semana, uma quietação tomando conta do lugar. A medida que seguia Manoel pelo corredor, Joseph espiava pelo canto do olho, esperando não ser notado. Podia se imaginar encontrando Joana abruptamente bem ali, mas não havia nenhum sinal dela quando os dois homens sentaram-se à mesa do escritório.

— Conte-me como foi a viagem. Imagino que tinha vontade de conhecer o Rio de Janeiro, já que fizera tanta questão de ir.

Joseph passou a mão por sua barba, após limpar a garganta. Aquele estava longe de ser o motivo e ele seria sincero, se precisasse.

— Na verdade, não. Não tinha vontade de conhecer. Mas não me arrependo. Vi muita coisa, conheci muitas pessoas.

Balbuciando algo, Manoel continuou inclinado sobre a mesa, mantendo sua atenção no papel em que deixava as marcas da tinta. Estava se sentindo ótimo aquele dia, um pequeno sorriso ameaçando rebentar ao lembrar o beijo com o qual acordara Francisca mais cedo.

— E a encomenda? Algum problema?

— Nenhum. Tudo conforme o senhor desejava. Na verdade...

Joseph retirou papéis do caderno que carregava consigo, os deslizando pela mesa e conseguindo a concentração de Manoel para si.

— Acho que, apesar de quem fez a encomenda, o que aconteceu aqui esclareceu algumas coisas para mim. – apontando para dois nomes em específico, Joseph voltou-se a recostar em sua cadeira. – Rio de Janeiro e São Paulo, para começar. Se seus biscoitos são realmente tão bons, porque deixá-los apenas em Recife?

Houve um momento de completo silêncio. Manoel encarava estarrecido os contratos em suas mãos. Então um sorriso surgiu em seus lábios e de repente se transformou em uma risada.

— Eu sabia que não insisti em te contratar por nada.

Joseph não disse nada quanto àquilo, sabendo que aqueles contratos eram tudo que Manoel queria e dessa vez concordava com as ideias dele. A biscoutaria já tinha ido muito além ao ser a primeira fábrica de biscoitos e a primeira a ter uma maquinaria. Mas aquilo, no futuro, se estagnaria e tanto investimento agora poderia não trazer benefícios daqui a anos. Não havia nada de errado em ter os biscoitos DeCastro percorrendo o Brasil inteiro e Joseph estava satisfeito por ter aproveitado cada oportunidade que o Rio de Janeiro o trouxera.

Mas não tão satisfeito quanto Manoel, com um sorriso que não abandonava o rosto.

— Meu dia não poderia ficar melhor. Eu sabia que as máquinas e essas encomendas eram um sinal de que algo grande estava por vir. Aqui está a prova. – disse, balançando os papéis no alto antes de se levantar, sem interromper a fala.

— Precisamos comemorar. Na sexta-feira darei um jantar para alguns familiares e amigos. O senhor estará lá.

Familiares. Joana.

— Eu não acho que...

— Não vou aceitar “não” como resposta, senhor Fretcher.

Sem esperar por mais uma negativa, Manoel deixou o escritório, agarrado aos seus preciosos contratos. Joseph ficou para trás, perdido em pensamentos e preocupações. Não era como se ele tivesse como evita-la para sempre, pensou, constatando logo em seguida que Joana realmente não estava na biscoutaria. Assim como não aparecera até o final do dia seguinte, quando Pedro entrou sorrateiramente pelos fundos da biscoutaria, embrenhando-se pela cozinha e ganhando biscoitos de Aurélia.

— Você fez mesmo isso? – ele questionou, o dedo repuxando uma correia.

Joseph permaneceu debruçado sobre seu caderno, onde desenhava o rascunho do que viria a ser uma prensa a vapor, com quatro formas.

— Sim.

— Parece ter dado trabalho.

A resposta de Joseph fora apenas um resmungo que provocou um sorriso em Pedro. O garoto estava pronto para remexer na máquina mais uma vez, quando Aurélia entrou na cozinha, radiante e com um prato de biscoitos nas mãos.

— Mais biscoitos de canela?

— Sim, senhora. Jamais recusarei esses. – Pedro avançou sobre o prato, alcançando uns com a mão e colocando outros na boca.

— Por favor, Aurélia, pare de trazer esses biscoitos ou esse garoto não vai embora nunca.

Permanecendo de costas, Joseph não vira a risadinha dada por Aurélia, muito menos a expressão azeda que Pedro fizera.

— Muito engraçado. – o garoto finalmente falou, quando Aurélia já não podia mais ser vista.

Puxando uma cadeira para sentar-se ao lado de Joseph, Pedro tentou espiar o que o homem tanto escrevia no caderno.

— Tem visto a senhorita Joana?

A ponta metálica da pena riscou o papel com mais força do que a necessária quando Joseph virou-se para encarar Pedro.

— Tem mesmo que perguntar isso?

— Foi apenas uma pergunta. – ele movimentou os ombros com desdém, voltando a comer um biscoito.

— Não, não foi. Acho que já te conheço bem o suficiente.

— Sim, porque somos amigos. – Pedro empurrou Joseph com o cotovelo, dando uma risada logo em seguida que fizera Joseph revirar os olhos, apesar de estar sorrindo.

Os dois se distraíram novamente com o que seguravam em mãos, um silêncio se instalou, antes que Pedro arrastasse Joseph novamente para um terreno que ele não queria pisar.

— Um dia vai me contar porque falar sobre ela te incomoda tanto?

Ele iria? Ou melhor, ele queria? Joseph permaneceu com o olhar fixo sobre a pena que segurava, tentando descobrir o que deveria responder. Não duvidava que Pedro guardaria segredo, caso ele pedisse. Mas Joseph não queria ter que dar nome ao que sentia em relação a Joana, quando ele ainda não sabia exatamente o que era. Iria descobrir sozinho. Ou com ela, se ainda houvesse a possibilidade de estarem perto um do outro sem trocar insultos.

— Um dia eu terei algo a te dizer sobre Joana.

Foi tudo que Joseph respondeu e Pedro fingiu não notar o tom casual que ele usara para falar dela.

— Mal posso esperar.

Outra vez Joseph estava revirando os olhos, com humor estampado em seu rosto. Então percebeu que seria impossível se concentrar com Pedro ao seu lado, mastigando aquele biscoito e encarando cada traço que ele fazia. Deixou o material de lado, cruzando os braços ao inclinar-se para o olhar melhor.

— O que você quer fazer o resto da sua vida?

Podia ser uma pergunta complicada para Pedro, mas Joseph não encontrou momento melhor para dar voz ao que vez ou outra passava por sua cabeça. Sim, ele pensava no futuro de Pedro. Que o condenassem por se importar.

— Bem, não sei... Com certeza meu pai vai querer que eu cuide da estalagem, então...

O garoto chacoalhou os ombros de novo, parecendo despreocupado, o que causou um franzir de testa em Joseph.

— Então é isso? Você nem mesmo gosta daquele lugar.

Como aquilo era verdade, Pedro pensou, se desmanchando em uma risada, porque realmente achava aquele assunto muito engraçado.

— É verdade, eu detesto. Mas é assim que as coisas são. Às vezes, nós só aceitamos.

Joseph não poderia estar mais horrorizado com o rumo daquela conversa. Não iria permitir nem por um segundo que Pedro se acomodasse à uma vida que ele não gostava. Via nele vivacidade e sagacidade suficientes para o levaram tão longe quanto ele pudesse imaginar.

— Para alguém que fantasia tanto, você me parece um pouco sem ambições. – Pedro apenas desdenhou com os ombros mais uma vez, levando outro biscoito à boca. – Você não quer, eu não sei... Estudar? Construir uma carreira?

Mais uma risada.

— Estudar? O que eu poderia estudar?

— Não sou eu que vou responder isso por você.

Logo que Pedro percebeu que Joseph falava sério, sua expressão suavizou, até se tornar intrigada.

— Mesmo que eu quisesse estudar algo, meus pais não podem pagar algo assim.

— Apenas pense nisso. Eu cuido do resto.

Um brilho travesso estava nos olhos de Pedro quando observou Joseph levantar-se, o seguindo depressa.

— Isso quer dizer que vai me levar para Londres com você?

— O que? Mas é claro que não! Só se eu tivesse perdido o juízo.

Soltando o ar, Pedro bufou enquanto os dois atravessavam o corredor. Joseph bagunçou o cabelo do garoto quando passou por ele, se perguntando pela primeira vez em algum tempo, se ou quando ele voltaria para Londres.

*

Era fim de tarde da sexta-feira e Joana caminhava tranquilamente pelo casarão, as mãos firmes em um livro de receitas. A leitura da receita de biscoitos de vinho era a décima que fazia naquela semana, a qual mais tarde ela faria anotações prontas para serem reproduzidas na biscoutaria. Era a sua forma de amenizar o peso em sua consciência. Não esteve na biscoutaria um dia sequer durante aquela semana. Observar as mudanças que aconteceram no lugar despertavam o pior tipo de insegurança em Joana, retumbando no peito e a deixando inquieta. No sábado, quase discutira com Aurélia sobre o modo como a massa de biscoitos de milho deveria ser feita e isso foi o que bastava. Não era para ser assim. Por isso Joana limitou-se a ficar pela casa, anotando e testando receitas, desculpa de que estava fazendo algo pela biscoutaria.

Mas estava tão infeliz que seus dias pareciam um enfado infinito. A carta de Olivia ainda repousava escondida em sua penteadeira. Há dois dias soubera da volta de Joseph, mas todas as vezes em que decidia ir até ele, todas as coisas que tinha para dizer desapareciam de sua mente. Então Joana desistiu. Por ora.

— Tudo bem?

A voz de Matilda provocou um sobressaltou em Joana, que nem percebera estar parada no centro do salão de jantar, o olhar perdido entre as letras do livro. O salão, de onde iam e viam pessoas a todo momento, obrigando Joana a afastar-se. Faziam tantos meses que seus pais não ofereciam um jantar que ela quase esquecera do caos de tecidos, louças e cheiros maravilhosos impregnando o ar.

— Sim. Por que a pergunta?

— Estava com uma expressão estranha no rosto.

Uma apressada Prazeres atravessou o salão, acompanhado do criado que era quase o braço de direito de Manoel, Domingos. Os dois deixavam um assado sobre a mesa e Joana se distraiu por um momento.

— Joana, estou falando com você.

— Estou ouvindo.

Matilda apenas suspirou, agarrando o pulso de Joana. – Só quero que saiba que, apesar de você ser teimosa como uma mula e um pouco esquentada, tenho muito orgulho de ser sua irmã.

Com o cenho franzido, Joana fechou o livro lentamente, a confusão clara em seu rosto.

— Você está me elogiando ou me insultando?

E o que já estava esquisito se tornou ainda mais quando, após uma curta risada, Matilda a prendeu em um abraço.

— Tudo bem, o que a mamãe te disse?

Joana não podia reparar, mas Matilda estava sorrindo diante da perspicácia que a irmã sempre tivera.

— Que você não está bem e que precisamos te apoiar porque somos uma família.

Aquilo atingiu o coração de Joana em cheio. Permaneceu abraçada à Matilda, a visão se tornando distante até ela não notar as pessoas em volta das duas e ter certeza de que não iria começar a chorar ali mesmo. A segurando pelos ombros, Joana trouxe o olhar de Matilda para o seu.

— Estou bem, Matilda.

— Você sempre mentiu muito mal, Joana. Venha, vamos nos arrumar.

Era surpreendente como as três possuíam seu próprio jeito de se entender. Trocavam provocações e riam ao mesmo tempo, enquanto Matilda vestia-se e Isabel se matinha ocupada prendendo os cabelos de Joana. No reflexo, uma Joana agora quieta analisava o tom de azul de Prússia e dourado de seu vestido, que se estendia em arabescos bordados até a barra com babados. Matilda estava em verde e Isabel brincava com os tons bordô e joias, as três uma explosão de elegância que deixaria Francisca orgulhosa assim que pusessem os olhos nelas.

— Parece que papai convidou nosso tio, Luiz Dantas e Mello. – Isabel segredou, enquanto elas desciam pelas escadas em direção ao salão onde poucas pessoas já eram recebidas por Manoel e Francisca.

— Ah, não.

Fora o murmúrio estrangulado de Matilda, seguido de um “tsc” produzido por Joana.

— Por favor, Joana, não o acerte com a louça.

Isabel pediu, fazendo Joana voltar-se para as duas quando finalmente chegaram ao salão.

— Como você pode achar que eu faria isso?

— Você faria.

Luiz era provavelmente o parente que mais possuía a habilidade de irritar Joana, a deixando a ponto de responder às bobagens que ele falava. Mas ela tinha que promover o nome da família – entreter os convidados, conversar polidamente. Ela podia fazer isso. Ou podia tentar.

— Oh! Senhor Fretcher!

O anúncio caloroso de Isabel funcionou como um golpe em Joana, que bruscamente a fez voltar-se para vê-lo atravessar a porta de entrada. O olhar dele encontrou o dela e quem respondera àquilo fora o coração de Joana, estrondeando em seu peito. O que ele estava fazendo ali? E porque, a cada passo que ele dava na direção dela, ela percebia mais e mais que sentira falta dele?

Após cessar algumas mesuras e apresentações, Joseph as cumprimentou, não se demorando mais que dois segundos na direção de Joana, o que ela prontamente percebeu com chateação.

— Não sabíamos que o senhor viria. – Matilda confessou, justificando a empolgação das duas irmãs mais novas.

Joana seguia em silêncio, encarando a movimentação. Ela viu o momento em que seus pais cumprimentaram o tio Luiz e desviou o olhar, os dedos nas mãos enluvadas torcendo-se até Matilda colocar a mão sobre a dela, a fim de para-la. Aquilo chamou a atenção tanto de Joana quanto de Joseph, que voltaram a se olhar por um breve instante. Ele tinha algo estranho no olhar direcionado a ela, mas Joana não quis sustenta-lo para descobrir o que era.

— A Joana está inquieta ultimamente. Na verdade, ela sempre é. É só que...

Joseph não estava mais ouvindo. Examinava o modo como Joana tentava dar uma sutil cotovelada na irmã que não parava de falar, o olhar percorrendo desde o cenho franzido até os lábios que ele provara tantas vezes. Ela não parecia diferente para ele. Talvez mais irritada e desconfortável do que Joseph lembrava, mas a última coisa que ele imaginaria é que ela o recebesse jogando-se nos braços dele. Joseph cerrou os punhos quando o pensamento lhe causou arrepios.

Logo Joseph precisou se afastar e nada mais foi dito. Também não houve tempo para prolongar as conversas, pois sem demora Prazeres anunciara que o jantar estava servido. Todos pareciam animados com a perspectiva de uma boa refeição, com exceção de Joseph, que nunca estivera tão carrancudo, e Joana, que percebia com horror onde fora colocado seu lugar. À sua direita estava o tio Luiz, sorrindo cinicamente para todos, e não precisava de um mínimo movimento da cabeça para encontrar Joseph à sua frente. Maravilha.

A comida sempre era incrível e Joana quase suspirou ao levar um pedaço de filé à boca, sentindo o poder de suavizar os humores que só uma boa comida possuía. Ela quase se sentia mais descontraída, até Luiz chamar a atenção da conversa para ela.

— Manoel, fiquei sabendo de algo e queria que me dissesse que não estão fantasiando por aí. Sua filha, Joana, percorrendo a noite em bares cheios de homens. Soube até que subira nas mesas. Um absurdo verdadeiro, eu suponho?

Uma quietude se instalou, até Manoel se pronunciar.

— É, bem... Sim. – ele quase engasgou. – É verdade. Mas já cuidei disso.

— Então quer dizer que dera uma boa surra nela, não é?

O homem de cabelos brancos que carregava o mesmo sangue que Francisca exibiu os dentes amarelados, erguendo sua taça de vinho. Joana, que sem se controlar trocara um olhar com Joseph à menção daquela noite, agora encarava o tio com ares ameaçadores nos olhos, nem mesmo percebendo que agarrava com força seu garfo.

— Joana... – Francisca sussurrou, tentando adverti-la, mas ela nem sequer ouvira.

— Eu não bato nas minhas filhas, Luiz, e sabe disso.

Luiz levou um bocado de arroz a boca, antes de sorrir novamente. – Sei. Digo apenas como um conselho para o senhor.

— É mesmo? – Joana falou subitamente, o garfo agora erguido na mão apoiada sobre a mesa. – Conte-nos mais, tio, sobre o que se passa nessa sua cabeça extremamente primitiva.

— Joana!

Francisca arfou, Manoel engasgara-se com a canjica, enquanto os outros convidados tentavam conter as risadas, assim como Isabel e Matilda, as mãos enluvadas tapando a boca. Joseph perdera completamente o interesse na comida, e, apesar de esconder muito bem seu humor através da expressão séria, seus olhos estavam brilhando, achando graça.

Após um momento encarando a sobrinha, Luiz resmungou, voltando a atenção ao seu prato.

— Ainda bem que não tive filhas.

— Sim, ainda bem. Para elas, quero dizer. – Joana completou.

— Joana, já chega! Abaixe esse garfo e guarde seus pensamentos para você mesma.

A voz de Manoel silenciou a todos por um momento antes que um falatório começasse, com Luiz berrando reclamações, Manoel tentando silencia-lo e todos os outros rindo, salvo Francisca, que pedia ajuda aos céus. Joana finalmente percebeu que realmente estivera apertando o garfo em sua mão, tentativa falha de conter seu temperamento, quando uma mão que ela já conhecia tão bem cobriu a sua, aproveitando-se da distração alheia. Joseph abaixou a mão de Joana e a manteve ali por não mais que um segundo, suficiente para Joana sentir a calosidade e o calor que encontram sua própria mão. Ela ergueu o olhar para ele, que agora certificava-se que ninguém vira o gesto intimamente proibido.

Joana estudou o delineamento do rosto de Joseph e observou a bagunça dos fios de cabelo logo acima da testa, seu coração apertando e um pouco mais quando desviou o olhar e encontrou Isabel a fitando. Joana soube no mesmo instante que fora pega olhando para Joseph quando um sorrisinho astucioso apareceu no rosto de Isabel. Contrariada, Joana levou um pedaço de pão a boca e a cena foi encerrada.

Depois de satisfeitos com o jantar, todos seguiram para a sala de desenho, onde desfrutariam de café e Matilda entreteria a todos no piano, acompanhada da voz de Isabel. Mas assim que alcançou a porta, Joana deu a volta e seguiu para o andar de cima. Não estava com ânimo para conversação e sentia-se esgotada. Seus pais iriam reprovar, mas ela apenas precisava deitar por um momento e, antes, precisava fazer uma coisa. Apanhando a carta em sua penteadeira, Joana saiu de seu quarto, com o objetivo de entrega-la de uma vez a Joseph, para o encontrar no meio do corredor, caminhando na direção dela.

Joana não ousou se mexer enquanto ele se aproximava, as mãos nos bolsos e um olhar cauteloso.

— O que o senhor está fazendo aqui?

Após se demorar a olhando com tamanha força que esquentou o rosto dela, Joseph finalmente falou, utilizando do mesmo sussurro que o dela.

— Vai voltar a me chamar de senhor?

Joana não soube o que responder. Não planejara o chamar assim, mas agora que a intimidade que construíram parecia ter sido reduzida ao pó, ela não sabia como deveria agir. Manter distância parecia ser o mais sensato, então ela apenas estendeu a carta na direção dele.

— Sua irmã escreveu para você. Chegou há alguns dias.

— E estava com você todo esse tempo? Por que? – Joseph questionou, com a carta em mão analisando a caligrafia tão conhecida de sua irmã.

Cruzando os braços, Joana ergueu o rosto, como Joseph já bem sabia que ela fazia quando sentia a necessidade de se defender. Ele não conteve um sorriso apertado de esperança.

— Nada em especial. – apenas não consegui me desfazer dela, como se fosse um pedaço de você. – Do que está sorrindo?

Joseph guardou a carta no bolso de sua calça e, para desespero de Joana, deu mais passos na direção dela, que recuava mais e mais até estar comprimida contra a porta de seu quarto.

— Você. Como sempre.

As palavras pareciam ter evaporado da boca de Joana quando a proximidade de Joseph era tanta que ela conseguia sentir a respiração dele se misturar com a sua. Com a respiração irregular, ela lutou para se manter no lugar, enquanto Joseph aproveitava de sua mão apoiada na parede ao lado dela para inclinar-se na direção de Joana.

Ele procurou pelos olhos dela, encontrando ali refletido exatamente o que ele estava sentindo: hesitação e necessidade.

— O que o senhor está fazendo?

— Pare de me chamar assim.

Joseph praticamente sussurrara contra a boca dela e Joana quase cedera. Com as pálpebras teimando em se fechar, ela voltou a si e deteve os lábios de Joseph com seus dedos.

— Não. Isso é muito arriscado e nós precisamos conversar.

Aquilo pareceu despertar Joseph e ele empertigou-se no mesmo segundo, aumentando a distância entre eles.

— Sim. Eu... Desculpe-me. – percebendo o que estava prestes a fazer, Joseph olhou instintivamente a sua volta.

— Não vá embora amanhã. Fique na biscoutaria e me espere.

A familiaridade do pedido despertou sorrisos nos dois rostos. Joseph sequer lembrava se um dia sentira raiva daquela mulher quando ela o olhava daquele jeito, uma mistura de ternura e ousadia, desejando desesperadamente que ele dissesse sim. Não havia outra coisa que ele pudesse dizer.

Sem responder, Joseph voltou a se aproximar, os dedos sob o queixo de Joana erguendo seu rosto para ele. Ele encarou seus olhos e suspirou, um som de genuíno alívio e cansaço, como se finalmente chegasse ao fim de uma jornada que sabia não aguentar mais. Estava pronto para lutar por Joana, se isso fosse necessário para tê-la assim.

Depois de lhe deixar um breve beijo sobre a testa, Joseph sussurrou.

— Até amanhã, Joana.

Naquela noite, Joana não soube como conseguira dormir. E quando chegou à biscoutaria na tarde seguinte, também não soube como se manteve quieta. Manoel não escondera a surpresa ao ver a filha e Aurélia foi a primeira a falar, fazendo Joana se desmanchar num pedido de desculpas. A cada lugar que olhava ou a cada tarefa que cumpria, o lugar parecia a repreender pela ausência. Ainda não ousava passar muito tempo na cozinha, mas sua atenção estava redobrada para tudo e cada cliente, a levando a perder o horário e perceber que anoitecia através das janelas da biscoutaria, quando todos a deixavam.

Não esperou que Joseph surgisse e não fora atrás dele, decidida a espera-lo no escritório dessa vez e ignorar todas as lembranças que a cozinha a trazia. Encostada contra o tampo da mesa, ela não teve que esperar muito. Joseph foi atraído pela luz da vela acesa sobre a mesa e lentamente atravessou a porta, a fechando em seguida para apoiar-se contra ela, onde seguiram com os olhos fixos um no outro.

— Antes de qualquer coisa, deixe-me falar. – Joana despontou quando Joseph ameaçou começar a falar.

— Acho que devo me sentar então.

Boquiaberta, Joana assumiu uma expressão zangada.

— O que você quis dizer com isso?

— Nada de senhor dessa vez?

Joseph realmente se sentara ao sofá, as longas pernas esticadas a sua frente e um sorriso largo no rosto, aumentando a suspeita de Joana.

— Por que está tão de bom humor?

— Continue o que ia dizer e te contarei o motivo mais tarde. – o sorriso de Joseph aumentou quando ouviu Joana bufar.

Então Joana voltou a ficar séria, enquanto ela apertava os próprios os braços em busca da força que sempre tivera para dizer o que pensava.

— Primeiro, eu te devo um pedido de desculpas. Tenho a péssima tendência a reagir demais às coisas e eu estava com tanta raiva. Sinto muito por como lidei com a situação.

Mesmo sem esperar que ele dissesse algo, Joana se interrompeu. Havia tanta coisa sendo dita naquela troca de olhares que era como se nada mais precisasse ser dito. Mas Joana precisava falar, precisava colocar aquilo para fora.

— Mas preciso dizer também que, quando analisei o que aconteceu, me senti péssima pelo modo como agi, mas ainda não sei o que posso dizer por ter desconfiado de você. Porque eu não tenho motivos para confiar em você, Joseph. Eu não te conheço. O que sei sobre você mal passa de seu nome e de onde veio. Na verdade, acho que mal sei essas coisas também. É a minha família, é esse lugar que amo com toda a minha vida. Não sou ingênua e não vou ignorar tudo a minha volta por causa do que você me faz sentir.

Joana soltou o ar lentamente, tentando decidir se era a hora de entrar nesse ponto: o que ela sentia. Mas antes que pudesse resolver, Joseph se pronunciou.

— Eu entendo seus motivos. E acredite quando digo que sou a última pessoa que ficaria preocupado com o que acham de mim. Diante da sua desconfiança eu teria a deixado pensando o que quisesse e seguido com a minha vida, mas é você, não é? Eu fiquei louco de raiva.

É você. Uma frase que parecia não dizer nada e de alguma forma era o que ela precisava ouvir.

— O que quer dizer com isso? – Joana quis saber, porque precisava ouvir dele o que estava passando em sua cabeça.

— Quero dizer que no começo a sua desconfiança e raiva apenas me incomodavam, mas não parecia ter importância para mim. Você não se permitia confiar em mim e eu não desejava fazer nada a respeito. Até você começar a importar para mim. Até eu não conseguir mais te tirar da cabeça, até eu começar a te desejar. E quando eu te beijei pela primeira vez, Joana, estava feito. Eu deveria ter ficado longe de você, mas de alguma forma eu sabia que não tinha mais como voltar atrás. Não sei como você faz isso, como me envolve à você cada vez mais. Por isso me peguei percebendo esses dias que fiquei com raiva porque me importo com o que você pensa e quero que confie em mim. E eu ouso dizer que conheço você só de te observar, porque você é a pessoa mais expressiva e sincera que já conheci. É como um sopro de energia e intensidade na minha vida. E sei que sou exatamente o oposto, que sou muito bom em esconder e que por isso talvez você não seja capaz de ver em mim o que quero que veja. Mas estou disposto a deixar que me veja, se você assim quiser.

O que Joana achava sentir por Joseph nunca chegara aos pés do que ela sentia naquele momento. Desviando o olhar, Joana se amaldiçoou por ter deixado um fungar escapar.

— Você está chorando?

— Não.

Mas, apesar de Joana tentar a todo custo conter as lágrimas, Joseph estava sorrindo outra vez.

— Está vendo o que eu disse? Você é emoção pura, Joana. E é exatamente assim que me sinto quando estou ao seu lado. Como eu não ficaria louco por você?

Tudo bem, talvez aquela única lágrima não tivesse como não escapar. Joana a capturou com as pontas dos dedos.

— Agora... – Joseph continuou. – Você falou do que eu te faço sentir. O que é exatamente?

Joana deixou um pequeno sorriso aparecer. Parece que, afinal, ela não era a única que precisava ouvir. A passos decididos, ela caminhou até Joseph, parando entre seus joelhos e o segurando pelo rosto. Joana correu os dedos pelo rosto dele, sentindo a textura da pele e as aspereza da barba curta. Devolvendo o olhar dela com tudo que tinha, Joseph enlaçou as pernas de Joana, sentindo o peso das saias em seus braços, a manteve ali.

— Eu jurei que detestava você. Que minha desconfiança nunca seria capaz de me permitir te olhar com alguma coisa que não fosse irritação. Não sei como você fez isso. Como você se aproveitou de cada brecha minha, de cada parte que deixei desprotegida. Você despertou coisas em mim que nunca imaginei que sentiria, sequer que existiam. Gosto de estar com você, gosto quando você deixa escapar partes de você, mesmo tentando se esconder tanto. Gosto de cada vez descobrir um sentimento novo quando estou com você. E eu percebi esses dias que esteve fora que eu tinha que fazer uma escolha. Podia te deixar no passado e me agarrar ao medo que tive quando você pisou aqui, ou podia escolher descobrir quem você é de verdade e como é capaz de mexer tanto comigo. E eu escolhi você, Joseph.

Era um risco enorme, uma vozinha gritava dentro de Joana, mas a cada sorriso de Joseph seu coração parecia aumentar, a ponto de extravasar. Joseph estava disposto a deixa-la entrar em sua vida e Joana estava segura da sua escolha, ambos desejando mais que tudo não se arrepender e talvez duvidando que um dia realmente houvesse arrependimento.

O sorriso de Joseph desapareceu e o ar dentro daquele escritório mudou por um instante, tirando o fôlego de ambos. A fazendo dobrar os joelhos, Joseph a depositou no lugar ao seu lado, as pernas de Joana repousando sobre as suas. Não houve tempo para que ela dissesse coisa alguma, os lábios de Joseph tomaram os dela para si. Joana lhe agarrou os cabelos, as mãos dele apressaram-se em sua cintura, deslizando por suas costas, repuxando as fitas de seu vestido. Ele a deitou, lhe mordeu a boca e beijou seu pescoço, a respiração de Joana cada vez mais difícil e audível. Então os dois se tornaram apenas um amontoado de mãos inquietas, desejo e saudade.

Quando Joana o pressionou entre as pernas, Joseph jurou que seu último fio de controle se definhou. Ele investigou o que ela queria quando abaixou a manga de seu vestido, exigiu saber se ela gostava quando seus lábios encontraram a linha da clavícula e quando puxou o tecido para baixo, expondo o espartilho e o topo dos seios, onde deixou os lábios percorreram, Joana jurou que iria desmaiar.

Não conseguia fazer nada além de agarrar-se a ele, com o nome dele escapando de seus lábios e o autocontrole escapando de si. Não fazia ideia do que estava sentindo ou do que aconteceria a seguir, naquele momento ou daqui a dias, semanas. Joana nunca esteve tão animada para descobrir.