Joana queria poder dizer que não estava surpresa. Que homem nenhum no mundo seria capaz de surpreende-la. Mas lá estava Joseph Fretcher, sutilmente inclinado em sua direção, a ponta do reto nariz encostando no seu, a respiração dele se misturando com a sua. Ela sabia que deveria se afastar. Talvez lhe transferir um tapa, pela falta de decoro nas suas tão claras intenções, pois Joana sabia bem o que sua família e toda a sociedade brasileira diria se soubesse que ela permitiu tal investida.

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Mas, acima de tudo isso, ela queria poder dizer que desejava afasta-lo. Queria não sentir o embrulho na barriga de antecipação. Queria dizer que não estava se mordendo de curiosidade de saber como seria ser beijada. Bem, não beijada de fato, se o beijo roubado pelo filho do alfaiate há 4 anos, atrás das paredes da biscoutaria, pudesse ser considerado um beijo – esse, de fato, recebera um tapa. A curiosidade era em ser beijada pelo homem de cabelos desgrenhados a sua frente. Ela o detestava e negaria mil vezes caso tivesse que admitir, mas nem se quisesse conseguiria fingir que não estava sentindo o arrepio até os dedos dos pés dentro dos sapatos. Ainda mais difícil que ignorar isso, era o fato de que aquele ímpeto que a impulsionava para ele estava lá mais uma vez.

Bastava um minúsculo movimento para se concretizar. Joana observou os olhos de Joseph percorrerem cada traço de seu rosto, demorando-se em seus lábios. Quando voltou a olha-la nos olhos, Joana encarou as duas íris azuis e jurou que ela estava perdida. Ele se aproximou um pouco mais. Ela imitou seu movimento e...

— Sr. Fretcher!

O estridente grito de Carlota percorreu todo o longo corredor até atingi-los como algo quase físico, levando Joseph a solta-la abruptamente e Joana cambalear dois passos para longe dele. E mais uma vez ambos se sentiram da mesma forma que noites atrás, como se de repente houvessem sido jogados em um mundo completamente estranho. Joana olhou para trás, ouvindo o som de sapatos contra o chão se aproximando cada vez mais, e então olhou novamente para Joseph. Mas, diferente dela, Joseph tinha se afastado ainda mais, as mãos percorrendo grosseiramente pelos cabelos. Já não tão diferente dela, ele tentava entender o que acabara de acontecer. Uma súbita dor na cabeça o atingira e Joseph não sabia se arrependia-se do tanto que bebera ou de não ter bebido mais. Ela queria ser beijada. Ele viu isso nos olhos dela, não podia estar errado. Queria isso tanto quanto ele. E, pelos céus, ele iria beija-la.

Os olhares se encontraram de novo. Joana parecia perdida e Joseph estava inquieto. Em uma fração de segundos, ela desejou poder dizer algo e ele desejou puxa-la de volta para seus braços. Mas tudo que Joana fizera fora correr através das primeiras portas que encontrou. As duas portas de vidro davam para algo que deveria ser uma varanda, pois na vasta escuridão o vento frio a atingiu quando suas costas tocaram a parede. Seus olhos procuraram por uma saída, mas tudo que Joana reconheceu foram plantas. O abafado som da voz de Carlota podia ser ouvido dali, mesmo que Joana não conseguisse compreender o que ela falava para o inglês. Ela apertou o tecido do vestido entre os dedos quando sua mente começou a trabalhar em imagens que a embravecia. Carlota sorrindo para ele. Joseph terminando o que começara minutos, mas dessa vez com uma loira irritante nos braços.

Tudo bem, só uma olhadinha.

Joana espiou através do vidro o momento em que Joseph ofereceu o braço para Carlota e juntos eles deixaram o salão. Ele não olhou para trás. Que burra você é, Joana!

Ela não fazia ideia de há quanto tempo estava escondida ali, até não suportar mais estar. Sem sinal de pessoas em volta e com algum movimento de carruagens na rua indicando que convidados já deixavam o casarão, Joana decidiu que era hora de ir. Caminhou a passos cautelosos para fora do salão, dando meia volta para – sua total infelicidade – encarar Iolanda.

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— Senhorita De Castro. O que estava fazendo?

Limpando a garganta, Joana sorriu, tentando parecer despreocupada.

— Sinto muito pela falta de modos, mas não resisti a dar uma volta pela casa por conta própria. Ela é... magnifique.

O ceticismo no olhar da baronesa desapareceu em um sorriso presunçoso. Virando-se, Iolanda estendeu o braço para ela. Joana enlaçou os braços das duas, que começaram a caminhar lentamente em direção a entrada do casarão.

— Sabe, senhorita De Castro, meu marido e eu sempre consideramos a educação que sua mãe deu a suas irmãs e você um tanto... inadequada. E seu pai nunca interveio, claro.

Joana franziu o cenho, desconfiada.

— Vocês cresceram muito libertas. Sempre achei que sua mãe deveria ter oferecido uma educação mais rígida, como uma mãe de três meninas jovens. Mas hoje, olhando pra você, vejo que nem tudo fora um estrago.

O cenho franzido de Joana se transformara em dentes cerrados. Quem aquela mulher pensava que era pra falar assim de sua família?

Iolanda fez uma dramática pausa, olhando de relance para Joana pareceu não notar que o rosto dela estava se tornando vermelho.

— Meu filho Teodoro voltará da faculdade de Medicina na França em pouco menos de dois anos. Podemos começar a fazer os arranjos com seus pais, o que acha? Nunca considerei sua família para uma possível aliança. Não aprovo um casamento com desigualdade em fortunas, não me entenda mal. Mas a senhorita tem uma elegância, algo que...

Sem mais aturar ouvir uma palavra, com a fúria a deixando aturdida, Joana retirou o braço bruscamente do aperto de Iolanda, obrigando as duas a parar no meio do corredor. A baronesa sobressaltou quando percebeu a expressão de Joana, com passos para trás a medida que Joana dava passos na direção dela.

- Nunca mais volte a falar da minha família dessa forma. Posso aturar seu jantar, mas não vou aturar que fale dessa maneira, quando minha família é muito mais honrada que todos vocês juntos.

Joana notou quando a respiração de Iolanda se tornou irregular, entregando o momento que ela também fora consumida pela raiva. Mas isso não iria parar Joana, mesmo que enfrentar a baronesa significasse algo no futuro. Não permitiria que pisassem nela daquela forma.

— E quanto ao casamento com seu precioso filho, pode retirar meu nome da lista. Nada me daria maior desprazer. A senhora gosta da minha elegância? Essa é minha versão elegante. Na próxima vez, vai conhecer um lado meu muito mais agressivo. Tenha uma boa noite.

Joana começou a virar-se e então parou de supetão.

— E à propósito, faltava açúcar em todas as suas sobremesas. Talvez queira melhorar da próxima vez, mas não se preocupe em me enviar um convite. Não tenho nenhuma intenção de aparecer.

E partiu, deixando para trás Iolanda com o olhar arregalado em completo choque e insultos presos na garganta. Encontrando Alice na entrada, deixaram o casarão como um vendaval, a dama de companhia com os lábios apertados diante do semblante de Joana.

A baronesa havia se enganado se imaginou que poderia insulta-la de tal forma e Joana permaneceria calada. Lembrar de cada detalhe daquela noite só piorava o humor de Joana – e era exatamente isso que ela fazia, o rosto voltado para a escuridão das plantações que cercavam a estrada. Quando essa mesma escuridão se transformou na mal iluminada Recife, Alice finalmente falou.

— Está tudo bem?

Joana a olhou, como se despertasse de um sono.

— Sim. Está tudo bem.

A mais nova apenas assentiu, o olhar perdido na divisória da carruagem. E então voltou-se mais uma vez para Joana.

— Por que o Sr. Fretcher me pediu para procura-la? Ele não queria que a senhorita ficasse sozinha.

Aquilo disparou o coração de Joana. Sem entender o que poderia significar, ela apenas suspirou, parecendo para Alice que ela não dera tanta importância, quando na verdade aquilo ficaria em sua cabeça pelo resto da noite.

— Também queria saber.

A passos lentos, as duas entraram no casarão. Antes que Alice pudesse se retirar para os fundos, Joana lhe segurou o braço.

— Obrigada por hoje. Sei que nem mesmo é seu trabalho me acompanhar.

Alice segurou a mão de Joana antes de responder.

— Eu que tenho que agradecer. A senhorita me proporcionou uma noite que provavelmente não viverei mais. Mesmo que eu tenha sido obrigada a aturar Carlota de Garcia tocar e cantar ao piano.

As duas riram – ou ao menos tentarem, produzindo o menor som que fosse possível, já que boa parte das velas do casarão já estavam apagadas e não havia uma sombra sequer por perto. Hesitando um pouco, Alice continuou.

— Sei que pode ser indiscreto da minha parte, mas perguntarei mesmo assim. Quando a senhorita desapareceu da sala de desenho, estava com ele, não estava? O estrangeiro.

Joana mordeu o lábio, percebendo que não estava surpresa com a pergunta, apenas considerando se podia confiar em Alice. No entanto, ao olhar para os bondosos olhos castanhos da garota a sua frente, ela percebeu que a noite poderia não ter sido das melhores, mas havia grandes possibilidade de ela ter ganho uma amiga.

— Eu não fui procura-lo, se é o que está perguntando.

Alice abriu o maior dos sorrisos, balançando a cabeça como se soubesse de algo que apenas Joana ainda não havia percebido.

— Boa noite, minha senhora.

Quando Alice desapareceu no fim do corredor, Joana suspirou mais uma vez, o tique-taque do relógio de pé e o som de seus passos as únicas coisas preenchendo o vazio da casa. Até Joana passar pela sala de desenho, notando uma vela acesa com Francisca sentada em uma poltrona e seu coração quase saltou pela boca.

— A senhora me assustou. O que está fazendo acordada ainda?

Sem interromper o trabalho de suas mãos em um bordado, Francisca olhou ligeiramente para Joana.

— Esperando você, é claro.

Joana caminhou até ela, a luz fraca impedindo que decifrasse o desenho que Francisca fazia. Sentada aos pés dela, Joana deitou a cabeça nos joelhos de Francisca.

— Hum... Não estou gostando disso. O que aconteceu?

Quando Francisca começou a lhe acariciar os cabelos, Joana fechou os olhos.

— Nada.

— Nada? Por que está assim então?

Porque nem de longe tive uma noite agradável. Porque aquela família me tira do sério e não suporto a arrogância de Carlota e sua mãe. Porque o inglês também me tira do sério. E mesmo assim, ele ainda é capaz de fazer meu coração disparar, de me fazer desejar que ele olhasse para mim daquela forma por uma noite inteira. Mas tudo que Joana fizera fora levantar a cabeça, vendo a serenidade bonita de sua mãe, emoldurada em cabelos escuros como os seus.

Só quero que saiba que a senhora é a melhor mãe que eu poderia ter.

Francisca franziu o cenho, dividida entre a preocupação e a surpresa, os dedos ainda envoltos nos fios soltos do penteado de Joana. Francisca conhecia muito bem a filha para saber que havia algo em sua cabeça, mas por conhecer Joana tão bem sabia também que de nada adiantaria pressiona-la a falar. Ela falaria quando estivesse pronta.

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— Suas irmãs e você também são o melhor presente que eu poderia ter ganho.

Joana sorriu um pouco mais.

— Ah! E também queria dizer que não espere mais nenhum convite do barão.

Arregalando os olhos, Francisca deixou o bordado de lado quando Joana começou a levantar-se.

— O que? Pode voltar aqui agora. O que você fez, Joana?

Enquanto deixava a sala, Joana apenas virou-se, um sorriso que fingia inocência no rosto. Com um suspiro exausto, Francisca deixou a sala logo atrás.

— Devo me preocupar com você? Quero dizer, me preocupar mais.

— Não há nada para se preocupar.

— Vou ouvir seu nome pelas ruas amanhã?

Joana soltou um risinho. As duas caminhavam calmamente em direção aos seus quartos, apagando as velas acesas pelo caminho, a escuridão ficando para trás.

— É claro que não. O que acha que eu fiz? Arranquei fora cada fio de cabelo da Carlota?

Francisca bufou.

— Está tentando me surpreender ao falar isso? Pois não conseguiu.

Nos primeiros degraus da escadaria, Joana voltou a falar, colocando para fora algo que, por algum motivo, estava na sua cabeça.

— A senhora se apaixonou pelo papai à primeira vista?

Francisca tentou fingir que não ficara surpresa com a pergunta, mas por um momento achou que tropeçaria no degrau. O que estava acontecendo com aquela noite? Joana raramente se interessava por esses assuntos.

— Não, não me apaixonei. Na verdade, mal conhecia seu pai quando me casei com ele.

Joana não ousou dizer nada. Era assim que as coisas funcionavam, afinal.

— Foi um casamento arranjado. Em grande parte, por ele mesmo.

Com um sorriso, Francisca pareceu saudosa, o olhar distante enquanto Joana a observava e as duas viraram para o corredor do andar de cima.

— Seus pais que decidiram então?

— Sim. Seu pai acreditava que estava louco por mim, e os convenceu. Eu não gostei nem um pouco e admito que fiquei louca também, só que de raiva.

Joana sorriu outra vez quando as duas chegaram a porta do quarto dela.

— Posso dizer que a senhora também é louca por ele.

— Acho que posso dizer isso também.

Mesmo que não quisesse confessar, Joana sentia falta de Manoel. Sentia falta do olhar forte dele, até mesmo das discussões dos dois. Como ela queria que as coisas fossem diferentes. Como queria ter avisado a Joana de 16 anos, que desejava mais que tudo fazer parte da biscoutaria, a não se iludir. A mesma Joana que ainda vivia dentro dela.

— Queria ter conhecido melhor meus avós. – Joana disse, desesperada para mudar a direção do seus pensamentos.

— Também queria que eles estivessem aqui. – por um momento, Francisca voltou a lembrar de seus pais, que partiram quando Joana mal havia completado um ano de idade. – Sua tia Emília está morando na casa que foi deles, em Olinda. Talvez possamos fazer uma visita.

Joana começou a queimar as velas de seu quarto, um lábio preso entre os dentes enquanto tentava não cair na risada ao lembrar da espalhafatosa tia Emília. Se sua mãe era a tranquilidade, sua irmã era o próprio alvoroço. Ela amava aquela mulher.

— Eu gostaria disso. Tia Emília nunca mais veio nos visitar. Acho que papai a afugentou depois que ela tomou todo o vinho dele.

Quando a luz revelou Dalton esparramado entre as almofadas da cama, Joana sorriu.

— Aí está você!

O sonolento cachorro apenas abriu os olhos para ela, se espreguiçando sem preocupação.

— Quantas vezes vou ter que dizer para não deixar esse cachorro dormir na cama?

Joana deitou ao lado de Dalton, o cobrindo com o seu rosto e deixando um beijo ou dois próximo ao focinho.

— Cachorro? Que cachorro?

Revirando os olhos, Francisca tentou disfarçar que achava graça na relação dos dois. Ela pegou o camisão de dormir caprichosamente disposto nas costas da cadeira do quarto e o jogou em Joana.

— Durma.

Depois do click da porta, Joana levantou-se apenas o suficiente para apoiar a cabeça em sua mão. Dalton permanecia deitado ao seu lado, a barriga para cima, ela começou a deslizar a mão pela pelagem curta.

— Dalton, você já sentiu que não conseguia tirar alguém da cabeça?

O cachorro respondeu com mais uma espreguiçada, olhando diretamente nos olhos dela.

— E é possível não confiar em alguém e ainda se sentir atraída por ele?

Dalton piscou uma vez. Duas e os olhos escuros do cachorro começaram a se fechar, sendo seguido por um sonoro ronco.

— Fico feliz que me entenda.

Os sapatos de Pedro bateram mais uma vez contra o degrau da entrada do sobrado, naquela mesma hora em que Joana deixara-se cair na cama, o braço cobrindo os olhos. Joseph estava demorando muito para voltar. Fora uma decisão precipitada, Pedro sabia, mas separar lençóis da estalagem não era exatamente algo divertido. Ouvir Joseph falar sobre o jantar na casa do barão de Tavares certamente seria.

Sua mãe iria lhe arrancar a pele se soubesse daquilo. Abraçando os joelhos, o garoto de cabelos escuros apoiou o queixo e tentou não cair na risada, repetindo para si mesmo que não estava com medo por estar àquela hora na beira da rua.

— O que está fazendo aqui?

A voz de Joseph ressoou como um trovão. Pedro olhou para cima e encontrou um desgrenhado inglês, parecendo ter levado eternidades para chegar ali.

— Esperando você.

Joseph não retirou as mãos dos bolsos por um momento, encarando o garoto de sorriso aberto. Com um suspiro de resignação, ele desistiu de lhe dar um bom discurso de repreensão e sentou-se ao lado de Pedro no degrau.

— Sabe que é perigoso ficar pelas ruas tão tarde e sozinho.

— Não tem problema. Consigo ir e voltar da estalagem em um segundo. É uma boa corrida.

Pedro mantinha seu sorriso de sempre no rosto, os pés brincavam tocando a ponta dos sapatos no degrau, provocando um barulho que começava a irritar Joseph. Ele revirou os olhos.

— Então, como foi? A casa dos Tavares e Garcia é realmente gigante? Tinha muita comida? O que você comeu? E... – o sorriso dele aumentou. – Havia mulheres bonitas e ricas?

Joseph encostou-se a grande porta azul atrás de si, não segurando uma rara risada.

— Foi chato e maçante como qualquer jantar como esse é.

Pedro bufou.

— O senhor que é um chato. Eu teria aproveitado muito. Iria beber todos os tipos de vinhos caros, comer tanto... Dançaria com uma dama muito bonita também. Iria...

O som da voz de Pedro se afastou cada vez mais, assim como a mente de Joseph. Encarando com olhar vazio a rua deserta, sua cabeça foi preenchida com imagens de expressivos olhos castanhos e uma boca esperta, a centímetros da sua.

— Você está me ouvindo?

Assustado, Joseph voltou a olhar para o garoto.

— Hum?

O sorriso de Pedro desapareceu, dando lugar a um revirar de olhos.

— O que aconteceu?

— Nada.

— Por que está com essa cara então?

— Não é nada. Quanto a essas suas fantasias, melhor você...

Os dois foram interrompidos por uma algazarra que se espalhou pela rua. Quatro homens passavam por ali, parecendo jovens demais, rindo e conversando em exagero para o silêncio da noite.

— O que está acontecendo ali?

Pedro fez um movimento com os ombros em resposta.

— Não sei. Devem estar indo ao bar. Acho que tem a ver com uma artista europeia que chegou em Recife ontem. Ouvi meu pai comentar. Uma atriz, Greta de alguma coisa...

As sobrancelhas de Joseph se ergueram em reconhecimento. Uma atriz. Joseph lembrava muito bem das atrizes que cruzaram seu caminho. Da sensualidade provocante, das noites desfrutadas ao lado delas.

— Fiquei curioso de repente. Você não?

Pedro franziu o cenho.

— E-eu não sei. Nunca vi uma atriz europeia antes.

— Exatamente. Venha, vamos nos divertir um pouco.

Joseph levantou-se, obrigando a si mesmo a acreditar de que aquele era o único motivo. Diversão, e não aquela vontade desesperadora de fugir da própria mente.

— Mas não sabemos onde ela está.

Olhando novamente para o tumulto já distante, um canto da boca de Joseph se repuxou.

— Tenho certeza de que isso não será um problema.

*

— Senhorita Joana, sente-se direito.

Madame Conceição olhava feio para Joana, que permanecia sentada no sofá com as pernas cruzadas sob as saias, o livro Cozinheiro Imperial repousando aberto em seu colo. Tentada a responder, ela acabou apenas deslizando as pernas para fora do assento, um sorriso forçado para sua antiga preceptora. Conceição moveu seus olhos cerrados para Matilda, que praticava suas últimas aulas de piano.

— Mais uma vez.

A rígida voz da preceptora fora acompanhada pelas suaves notas produzidas por Matilda. A tarde do sábado estava fresca, mas Joana e Isabel permaneceram no casarão, assistindo Matilda ter aulas. Sentada ao lado de Joana, Isabel enrolava um cacho do cabelo em seu dedo, a expressão mais fatigada possível. Ela olhou para a irmã ao seu lado, concentrada na leitura.

— O que está lendo?

— Uma receita de caldo para dores de cabeça.

Isabel ficou dividida entre arregalar os olhos e franzir o cenho.

— Por que está lendo uma coisa dessas?

Joana olhou para a irmã, como se a resposta fosse óbvia.

— Porque é interessante.

— Não é, não.

Isabel soltou o ar pesadamente, jogando a cabeça contra o encosto do sofá.

— Estou entediada.

— Posso perceber.

— Acho que vou até a biscoutaria.

— Silêncio vocês duas!

A reprimenda de madame Conceição calou as duas no mesmo segundo. Bem, por um segundo pelo menos.

— O que vai fazer lá?

— Ah, não sei. Deve estar mais interessante que aqui. Além disso, nunca tive oportunidade de conversar com o Sr. Fretcher sobre Londres.

Joana fechou o livro com grosseria, provocando um baque.

— Mas o que...

A preceptora fulminou Joana com o olhar.

— Desculpa. – Joana quase sussurrou, prometendo não fazer mais barulho. Usou o mesmo tom quando voltou-se para Isabel, apenas com um pouco mais de veemência. – O que você poderia ter pra conversar com ele?

Isabel também sussurrava.

— Ele deve ter histórias interessantes para contar. Quero ouvir de alguém que realmente viveu um baile daqueles, por exemplo.

Imagens dançaram em sua mente.

Já que a senhorita estava tão interessada no lugar de onde vim, vou te mostrar como fazemos em Londres.

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O rosto de Joana esquentou.

— Duvido que aquele homem tenha algo interessante para dizer.

— Por que está tão na defensiva?

— Não estou na defensiva.

— Shh!

A preceptora parecia a ponto de joga-las pela janela da sala de desenho. Joana tapou a boca, fingindo inocência apontou para Isabel, que arregalou os olhos. Isabel alcançou uma almofada, jogando-a contra Joana. Mas, para seu azar, Joana conseguira desviar e a almofada florida atingira Conceição. Matilda virou-se pela primeira vez, caindo na risada junto com Joana, que tentava esconder o riso atrás do livro.

— Senhorita Isabel...

Isabel levantou-se de supetão.

— Eu acho que meus pais estão me chamando, então se vocês me dão...

— Na verdade, é a senhorita Joana que o senhor De Castro quer ver. – a voz de Prazeres surgiu na entrada da sala.

Isabel soltou um murmúrio revoltado, Matilda rio mais um pouco e o sorriso de Joana desaparecera completamente. Seu pai finalmente queria falar com ela? Deixando a sala para trás, ela seguiu pelos corredores até bater com receio na porta do escritório do pai.

Manoel tinha a cabeleira branca abaixada sobre inúmeros papéis, mal parecia ter notado Joana chegar.

— Queria me ver?

— Sim. Sente-se.

Joana sentou a frente dele, torcendo os nós dos dedos em nervosismo. Que isso não termine em mais uma discussão, por favor...

— Tive uma conversa interessante com o Sr. Fretcher.

Tudo bem, aquilo era igualmente ruim.

— Como isso poderia ter a ver comigo?

Manoel apoiou-se em sua cadeira, a casaco aberto revelando a saliente barriga onde ele apoiara as duas mãos cruzadas.

— Ele me pareceu genuinamente interessado em minha relação com você, o que me irritou, mas também me deixou pensando.

Joana franziu o cenho. O inglês tinha feito o que?

— Minha maior preocupação é que você estrague tudo com sua cabeça-dura, mas tanto ele quanto eu não estamos dispostos a deixar isso acontecer. Você é minha filha e também não estou disposto a estragar isso.

Retirando um papel posicionado embaixo dos outros, Manoel o deslizou pela mesa até Joana.

— O que é isso?

— Minha oferta de paz.

Joana deu uma olhada no que estava escrito, sem entender muito bem o que funções na biscoutaria teriam de relação com ela.

— Não entendo.

— Vou permitir que trabalhe na biscoutaria.

Erguendo o olhar repentinamente, Joana nem tentou esconder sua surpresa.

— Já que gosta tanto de estar lá, vou deixar que supervisione as produções. Você ficará de olho em tudo e irá me informar caso algo dê errado, em qualquer âmbito. Mercadoria, fabricação, o que for.

Um sorriso começou a espalhar-se pelo rosto de Joana e ela teve medo de que não estivesse ouvindo direito.

— Está falando sério?

— Sim. Vou permitir isso, mas com uma condição.

O sorriso desapareceu.

— Deixo você trabalhar na biscoutaria, mas se meu negócio com as máquinas der errado por sua culpa você nunca mais pisará lá. Fui claro?

Mais claro impossível. Joana soltou uma risada triste.

— Essa é uma oferta de paz ou um jeito de tentar me controlar?

Manoel coçou a barba, nem por um momento parecendo culpado.

— Um pouco dos dois. Não vou abrir mão do meu investimento por causa dos seus medos e de suas inseguranças, Joana. Esse desejo seu não posso realizar, mas sei o quanto quer trabalhar lá, então estou disposto a te dar isso.

— Então o senhor pegou bem no meu ponto fraco. – ela quase sussurrou.

Joana olhou novamente para o papel em suas mãos. A oportunidade a animava o mesmo tanto que a magoava. Manoel percebeu a expressão consternada no rosto da filha e se aproximou um pouco mais.

— Olhe, Joana. Não estou fazendo isso para te atingir de alguma forma. Você é minha filha e se estou fazendo isso é para mostrar que não podemos conviver como inimigos. E então, vai trabalhar comigo nesse negócio ou não?

Olhando para ele, Joana soltou mais um riso fraco.

— O senhor sabe muito bem que eu não recusaria isso.

Porque era verdade. Joana não seria capaz de recusar tal oportunidade, mesmo com as condições que vinha junto. Ela não seria capaz de intervir diretamente naquela ideia absurda de máquinas, estava se retorcendo de raiva por seu pai não conseguir nem mesmo numa oferta de desculpas deixar de tentar a calar. Mas, ao menos, poderia ainda mais estar perto da biscoutaria e ela seria a primeira a falar “eu avisei”.

Manoel se permitiu dar um sorriso convencido.

— É claro que sei.

Com um suspiro conformado, Joana levantou-se.

— O senhor tem um jeito muito estranho de tentar fazer as pazes, mas saber que ao menos teve vontade de tentar já significa alguma coisa para mim.

Manoel coçara a garganta, começando a vasculhar sua mesa com o olhar em busca de nada, como bem fazia quando não queria se permitir ficar sentimental. Joana deu um sorrisinho.

— Vou tentar não decepciona-lo, mas não prometo nada.

E deixou a sala, com o papel dobrado contra o peito. Ela tinha permissão para estar na biscoutaria. Ela tinha utilidade lá agora. Apenas essa ideia fora capaz de lhe colocar um sorriso no rosto.

— Bem, se você está aqui é porque sobreviveu e se está sorrindo, o papai também. – Isabel parou ao lado de Joana. – Vai ficar tudo bem entre vocês?

Dividida, Joana apenas balançou os ombros. – Saberemos nos próximos dias.

— Estou indo na biscoutaria, você vai?

É claro que iria. E na primeira oportunidade colocaria o Fretcher contra a parede e o faria admitir o porquê de ele ter conversado com seu pai sobre aquilo.

— Vou. Só tenho que guardar este papel. Matilda vai conosco? Vá chama-la.

Clientes exclamavam em apreciação quando as três entraram na biscoutaria. As mesas estavam ocupadas, pessoas entravam e saiam. Tudo parecia normal e Joana começou a fazer seu caminho para a cozinha.

— Ah não. – Isabel lhe segurou pelo braço. – Nada de trabalho hoje. Vai tomar café conosco.

A contragosto, Joana se deixou ser levada até uma pequena mesa afastada. Servidas de café, biscoitos de canela e de banana, elas assistiram o resto da tarde se desenrolar entre conversas amenas. Vez ou outra Joana não podia se controlar e acabava cuidando do desejo de algum cliente, os olhos sempre voltados para o corredor que levava para a cozinha. Estava tão silenciosa. O inglês estaria lá ou seu pai havia lhe livrado das obrigações no sábado?

Matilda soltou um suspiro.

— Cansei de todo esse açúcar. Ouvi que no jantar terá cuscuz. Vamos?

— Podem ir. Tenho negócios a resolver na cozinha. Vou logo depois.

Tentando parecer despretensiosa enquanto retirava as xícaras, Joana observou as irmãs deixarem a biscoutaria com olhares desconfiados. Levando a louça para ser lavada na cozinha, ela encontrou exatamente o que esperava. Joseph Fretcher estava sentado em uma das mesas, não parecia estar trabalhando no grande objeto do outro lado da cozinha. Joana olhou hesitante para a máquina, enquanto deixava as xícaras e se aproximava dele, que ainda não havia notado a presença dela.

— Posso fazer uma pergunta?

Joseph ergueu a cabeça bruscamente, tamanho susto ao ouvir a voz dela ao seu lado. Quando encontrou os olhos de Joana, ela se sentiu tola mais uma vez por achar que conseguiria não sentir nada quando olhasse para ele de novo. Deixando seu caderno de lado, ele esperou.

— Por que falou com meu pai sobre a minha situação com ele?

Joseph desviou o olhar, não esperando por aquela pergunta. Na verdade, ele não sabia muito bem o que esperava. Talvez que ela o confrontasse sobre o que acontecera na noite anterior. Podia imagina-la fazendo isso. “O senhor iria me beijar?”. E ele confirmaria, mesmo que naquele momento não estivesse em seu total juízo e que passara o resto das horas se martirizando por isso, o desejo por ela nunca foi tão real. Ele precisava manter distância daquela mulher.

— Que diferença faz?

— Diga-me.

Diga-me, pois estou enlouquecendo com teorias em minha cabeça. Joana torceu a saia bordô entre os dedos.

Não dê tanta importância para isso. Não fiz pela senhorita. Apenas utilizei como desculpa para aumentar a confiança de Manoel por mim.

Joseph olhou diretamente nos olhos dela e continuou.

— Garanti que ficarei aqui, como ele deseja.

Joana, que cerrava os dentes em irritação, soltou um risada sem humor.

— É claro. O que eu poderia esperar do senhor. E por um momento achei que...

Joana não terminou a frase e a inexpressão de Joseph estava lá outra vez.

— Achou o que? Que eu me preocupo com a senhorita?

Joana deu um passo para trás.

— Não dou a mínima para como o senhor se sente em relação a mim.

Joseph levantou-se. Deu um passo na direção dela.

— Ótimo. Pensamos da mesma forma, então.

Joana apenas assentiu, o rosto erguido em orgulho o encarando nos olhos, os braços cruzados. Ela engoliu em seco quando sentiu suas costas tocarem a borda de uma mesa. Estava encurralada, com aquele homem lindo a observando com o rosto sério e um olhar capaz de queimar sua pele. Joana assistiu o momento em que ele erguera uma mão, tocando uma mecha solta de seu cabelo, os olhos desviando para ali. Então de volta para os olhos dela, para os sutis arcos de suas sobrancelhas e seu nariz. A respiração dela se tornou irregular e quando...

— Me mostre onde ele está!

— Minha senhora, por favor!

Diversos gritos atravessaram o corredor até a cozinha, impelindo Joana e Joseph para longe um do outro. A mãe de Pedro entrou na cozinha como uma tempestade, sendo seguida por uma aflita dona Aurélia.

— Você! Onde está o meu filho?

Joana olhou para Joseph, que parecia não entender o que estava acontecendo tanto quanto ela.

— O que aconteceu? – Joana falou, sem esperar por ele.

— Meu filho, Pedro, saiu escondido ontem à noite e até agora não voltou para casa.

Joana franziu as sobrancelhas em preocupação, vendo toda a cor desaparecer do rosto de Joseph.

— E eu tenho certeza que o senhor tem a ver com isso. Meu filho não consegue sair de perto do senhor. Então diga-me de uma vez onde meu filho está.

Com algo entalado na garganta, Joana colocou cuidadosamente a mão no ombro da mulher ao notar que ela muito provavelmente havia chorado. Aurélia observava tudo sem saber o que fazer, quando Joana ouviu Joseph cuspir um xingamento em inglês e pegar suas coisas com pressa.

— O que está acontecendo? – Joana tentou pará-lo, mas ele nem ao menos lhe dera atenção, avançando seu caminho ao mesmo tempo em que colocava o casaco. – Diga-me!

Quando ele continuou seguindo até estar fora da biscoutaria, Joana bufou em raiva.

— Joseph! – Joana quase parou ao ouvir o nome dele em sua voz. Ah, não.

Joseph apenas diminuiu o passo, voltando-se para olhar para a mulher que o seguia, se obrigando a ignorar seu nome na boca dela e como isso pareceu assustadoramente íntimo.

— Eu não sei o que aconteceu com o Pedro. Eu mesmo o deixei na porta da estalagem, não sei como ele pode não ter voltado para casa.

Cansada e ofegante por tentar acompanhar o ritmo dele, Joana lhe segurou o braço, o obrigando a parar.

— O que você fez?

Joseph correu a mão pelos cabelos, os bagunçando completamente.

— Ontem à noite, quando voltei do jantar, ele estava na minha porta me esperando. Conversamos e me contou que havia uma atriz na cidade. Era só uma diversão para um garoto que ainda não viveu nada e uma distração para mim. O levei para vê-la, para ver os outros caras brigando pela atenção dessa mulher, e só. O deixei em sua casa e fui para a minha. Eu percebi que ele ficou fascinado por ela, mas não faço ideia de onde ele se meteu... Ai!

Joana transferiu um soco contra o ombro de Joseph.

— Eu não acredito nisso. Você é um idiota!

Atrás deles, dona Aurélia arregalou os olhos, tapando a boca com a mão.

— Não preciso de seus sermões agora. Não sou nenhum irresponsável. O deixei em casa.

— Ah, claro! Vamos falar sobre a irresponsabilidade de criar fantasias na cabeça de um garoto de 14 anos.

— Não sou responsável pelo que se passa na cabeça dele.

Joana soltou uma risada cheia de ironia e já se preparava para lhe transferir outro soco quando Joseph segurou o pulso dela, a impedindo.

— Ei! Vocês dois! Já chega disso. – Aurélia exaltou-se, se intrometendo entre os dois. – Já está escurecendo e precisamos achar o menino. Deixe essa discussão de vocês para outro momento.

Joseph e Joana se fulminaram com o olhar, antes de Joseph seguir o caminho a pisadas fortes. Joana ia logo atrás, queimando de raiva e jurando que se alguma coisa acontecesse com o garoto por causa das aventuras daquele inglês, ela faria muito mais que lhe transferir socos.