Manoel soltou o ar pesadamente, espalhando farinha de mandioca sobre seu último pedaço de cozido, para leva-lo à boca em mais um suspiro contente.

— Agora estou de fato empanzinado.

Ao seu lado direito, Francisca observava o marido com uma ternura no olhar que roubou a atenção de Joana do outro lado da mesa. Remexendo em sua compota de goiaba com uma colher de sobremesa, ela assistia o modo como sua mãe colocava a mão sobre a de Manoel.

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— Já falei para tomar cuidado com tanta comida. O senhor não tem mais 30 anos.

Manoel bufou. Joana o observou mudar a posição de suas mãos, para apertar afetuosamente a de Francisca.

— Estou ótimo. Tudo está ótimo. Os negócios, agora tenho mais um ótimo funcionário, um...

Engasgada com um pedaço de goiaba, Joana o interrompeu com um raspar de garganta, provocando um olhar de repreensão em Manoel. Ela ergueu as sobrancelhas diante do olhar dele, mas Manoel a conhecia muito bem para saber que aquele movimento em nada era inocente. Com seu único fiapo de bom humor desaparecendo, Manoel levantou-se.

— Com licença, tenho muito trabalho a fazer.

Ela o assistiu partir, tentando disfarçar a infelicidade no seu rosto. Já se faziam dois dias desde a discussão e então Manoel agia como se Joana nem ao menos existisse, enquanto ela tentava a todo custo fingir que não estava incomodada. Com certeza nada estava ótimo para ela, pensou, reconhecendo que talvez fosse hora de acabar com isso. As brigas com seu pai em nada adiantavam para mudar as decisões dele, não importava os argumentos que Joana usasse. Mas antes mesmo que pudesse segui-lo, Francisca já estava de pé, no tempo em que os criados começavam a retirar as louças do almoço.

— Venha comigo até a sala de desenho, Joana.

Sem mais nenhuma palavra, as duas deixaram o salão, seguindo pelo comprido corredor. As inquisições de Francisca nunca eram um bom sinal, e Joana sabia que devia apenas sentar-se e ouvir sua mãe, mas ela não conseguia se conter, antes mesmo de alcançarem o sofá de estamparia amarelada.

— Se essa conversa é sobre o papai...

— Não é sobre ele. Ainda.

Francisca retirou seu bordado de um pequeno baú, para se sentar ao lado da filha.

— Percebi que ainda não conversamos sobre o fato de Alfredo estar claramente a cortejando.

Ah! Isso.

— Também percebeu isso?

— Todos percebemos, Joana. Principalmente porque fora uma grande surpresa.

Joana manteve os olhos nas mãos de Francisca, que com destreza finalizavam um perfeito bordado floral. As mesmas mãos que por muitos anos foram responsáveis pelo mesmo penteado nos cabelos escuros de Joana, tarefa que Francisca sempre fizera questão. Com o coração aquecido pela mesma sensação que sempre tinha ao estar com ela, Joana suspirou lentamente, de repente cansada, deitando então a cabeça contra o sofá.

— Me embrulha o estômago pensar nisso.

Francisca olhou para ela de forma desconfiada.

— É mesmo? Realmente, sabendo como você é, imaginei que não consideraria, mas ainda assim...

Joana levantou-se de supetão.

— A senhora não está considerando que eu me case com ele, está?

— Bem, não podemos negar que ele é um bom partido.

— Ele é praticamente meu tio.

— Mas não é. – deixando o bordado de lado, Francisca virou-se para a filha. – Só não descarte a ideia, está bem?

— Não vou casar com Alfredo, mãe. Não importa quantas vezes ele me corteje, ideia que eu nem mesmo sei de onde surgiu. Não vou aceita-lo.

— Eu admito que é estranho, já que ele nunca demonstrou interesse em você, mas apenas saiba que eu daria o consentimento. Tenho certeza que seu pai ficaria feliz também.

Aborrecida com o tema da conversa e com a ideia absurda de olhar para Alfredo de outra forma que não fosse familiaridade, Joana se levantou, ficando em pé diante da grande janela da sala. A gigantesca luz do sol daquela manhã em Recife rompia pela janela, esquentando a pele de Joana, à medida que ela observava o viço das poucas plantações ao lado do casarão.

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— Pode desistir dessa ideia.

Joana não podia ver, mas Francisca estava sorrindo, como quase sempre acabava fazendo diante da cabeça-dura da filha.

— Tudo bem. Vamos falar agora sobre outro assunto que tem me preocupado. O seu pai e você.

Dessa vez Joana nada disse.

— O que de fato está acontecendo?

— Convicções irreconciliáveis.

Francisca sorriu novamente quando Joana virou-se para sentar no parapeito da janela.

— É claro. Já sei da sua desconfiança quanto ao inglês.

Inquieta com a palpitação no peito que aquele assunto lhe causava, ela se levantou mais uma vez. Só mais um passo e ela estaria fora daquela sala e da conversa, mas Joana se conteve, parando diante de um espelho preso à parede, fingindo estar preocupada com um fio de cabelo rebelde.

— Já sabe que ele irá morar aqui?

— Sim, o que me surpreendeu. Na verdade, fiquei tão surpresa que fui falar com esse homem.

Joana franziu o cenho. Por que a ideia de ter sua mãe conversando com o inglês lhe soava tão íntima aos ouvidos?

— E ele não me pareceu tão ruim assim quanto você me faz pensar. Um pouco sério, talvez, mas agradável.

Cerrando os dentes, Joana lutou contra a vontade de perguntar sobre o que eles conversaram. Você não quer saber, você não quer saber...

— Não vai dizer nada? – Francisca falou, incomodada com o silêncio e com a coloração que o rosto de Joana estava tomando.

— O que tem de errado em ser precavida? É da biscoutaria que estamos falando. Tenho as minhas melhores intenções quanto a isso, e as intenções daquele inglês sob meus olhos.

— Ah, Joana, algum dia você vai parar de enaltecer aquele lugar? É só uma loja.

Ela sabia que jamais iria parar e a DeCastro nunca seria apenas uma loja para Joana. Era muito mais que isso.

— Essa, sim, é uma ideia da qual a senhora pode desistir.

Dando uma alto assobio que fez Francisca dar um salto de susto, Joana esperou um afobado e desengonçado Dalton entrar no lugar. Ao olhar para a expressão no rosto de sua mãe, ela não conteve uma risada, lhe beijando a bochecha.

— Por que não pode chamar esse cachorro de uma forma menos escandalosa?

— É do Dalton que estamos falando.

Não, é de você, Francisca não chegou a dizer, pois Joana já estava irrompendo em direção à porta de entrada do casarão, com Dalton sob seus comandos.

Sob o calor escaldante que fazia as pessoas fugirem das ruas, Joana aproveitou o resto do dia com Dalton em seu encalço, dando voltas e voltas pelos caminhos daquela cidade que ela conhecia tão bem. Ela era senhorita de Castro, querida Joana e “que garota crescida!” à medida que passava pelo Teatro Santa Isabel, rua da Aurora e a praça Conde d’Eu e era reconhecida pelos clientes da biscoutaria. Apenas o que ninguém dizia era o fato de ser estranho ver Joana longe da loja de biscoutos e isso Joana podia registrar no rosto de cada um. Mas ela já tinha seus próprios planos envolvendo a biscoutaria, ela pensou sorrindo para si mesma, quando Dalton saltou numa tentativa falha de alcançar um animal que voava à frente deles.

E esse plano era um segredo muito bem guardado debaixo da almofada repousada em sua cama, que ela tomou em mãos logo após o jantar, recém banhada e vestida em violeta profundo para não chamar a atenção naquele começo de noite. Certificando-se de que Matilda e Isabel não estavam a seguindo pela casa, Joana espreitou pela recente noite, com apenas Dalton como companhia e um exemplar de Diccionario do Doceiro.

O silêncio ao chegar à biscoutaria era reconfortante para sua mente agitada, mas ela mal podia se conter de animação. Iria finalmente testar uma receita de biscoutos de creme. O que poderia anima-la mais?

Dalton ocupou-se em farejar possíveis migalhas entre as mesas e Joana abriu o livro, caminhando lentamente em direção à cozinha.

Batem-se 12 gemas de ovos com 500 grammas de assucar...

Equilibrou uma vela em uma mão e com a outra mantinha o livro aberto, lendo em voz quase sussurrada.

Accrescentão-se um pouco de herva doce, nata de leite e uma colher de fubá de arroz...

Joana parou, os olhos arregalados ao notar uma fraca luz vindo da cozinha. Ela não poderia ter tanto o azar assim de ter alguém ali, poderia? Ela desejou que não, que alguém apenas houvesse esquecido a vela ali, mas sua sorte não poderia ter passado mais longe, constatou ao ver de quem se tratava.

Agachado ao chão, Joseph utilizava de tinta e uma pena metálica para escrever algo em enormes folhas espalhadas pelo assoalho da cozinha. Joana teve que se conter para não começar a resmungar ali mesmo e, lentamente, caminhou até a grande mesa próxima a ele, colocando o castiçal que segurava com um estrondo sobre ela.

Joseph agarrou-se ao chão, tamanho susto, deixando o tinteiro virar sobre suas últimas escritas. Seu rosto não poderia estar mais contorcido em fúria quando ele o virou para encarar uma Joana de braços cruzados.

— Qual é o seu problema?

— O que o senhor está fazendo aqui?

O que aquela mulher estava fazendo ali, Joseph grunhiu dentro de si, irritado com o susto e com a insistência dela de sair sozinha pela noite.

— Fazendo o trabalho que a senhorita acabou de estragar.

Joana deu uma olhadela em direção à mancha no papel e bufou.

— Só falta o senhor me dizer que meu pai lhe entregou a chave da biscoutaria.

Sem dizer uma palavra, Joseph apenas colocou a mão dentro do bolso de sua calça, retirando e erguendo uma chave dourada de lá. Joana deu um pequeno sorriso sem humor.

Perfeito.

Agora aquele homem também tinha acesso livre à biscoutaria. Como poderia ficar melhor?

— Já está um pouco tarde, então se o senhor puder me fazer o favor de sair, eu preciso da cozinha.

Joseph achou que tinha escutado errado. Ela iria cozinhar àquele horário e sozinha ali? A mulher só poderia ser maluca.

— Sinto muito informar, mas estou trabalhando e agora precisarei de muito mais tempo para refazer o que a senhorita estragou.

E então virou-se novamente para seus papéis, ignorando a presença de Joana. Perplexa, Joana decidiu que se ele iria ignora-la, ela faria o mesmo. Não ia permitir que aquele inglês atrapalhasse seus planos, então mudou-se para a mesa mais distante, começando a dispor os ingredientes sobre ela. Enquanto batia as claras dos ovos, quando ajuntou uma colher de água de flor de laranjeira, ela tentava rejeitar a visão de Joseph do outro lado da cozinha. Mas Joana não enganaria nem uma pessoa sequer se dissesse que não estava prestando atenção no modo como ele franzia o cenho para o que fazia ou no suave movimento de seus cabelos quando inclinava-se para frente.

Finalmente dando conta da presença de Joseph, Dalton entrou correndo, jogando-se sobre os papéis à frente dele e desfazendo – novamente – os trabalhos. Dessa vez, Joseph não conteve o grunhido.

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— Isso só pode ser alguma brincadeira.

Mas o humor de Joana melhorou instantaneamente, Joseph notou ao ver o sorriso dela. Ele encarou o rosto delicado, aturdido com o fato da dona de tal rosto ser alguém tão impossível.

— Bom trabalho, garoto. – Joana disse, roubando a atenção de Dalton com um assobio e um pequeno biscoito.

E então sorriu para Joseph, da mesma forma irônica que ele lhe retribuiu.

Decidido a acabar com aqueles cálculos de uma vez por todas, Joseph mudou-se para a mesa, novamente se fechando em seu mundo particular, mal notando os barulhos que Joana fazia ao deitar a massa em pequenas caixinhas que serviam como forma ou coloca-la para cozinhar no forno temperado. Joana percebeu que mais nada tinha a fazer a não ser esperar os biscoitos ficarem prontos, começando a circular lenta e distraidamente pela cozinha. Tudo bem, não era tão distraída assim. Joana tentava ver o que Joseph tanto escrevia ali. Seria algum plano ardiloso que envolvia a biscoutaria? Alguma artimanha para levar a biscoutaria consigo? Ou talvez fosse...

— A senhorita quer alguma coisa?

Se Joana achou que tinha feito um bom trabalho ao bisbilhotar, ela mal notara quando quase parara espiando sobre o ombro de Joseph e que ele estava completamente ciente daquilo. Francamente, Joseph tentava conter um sorriso.

Joana afastou-se, cruzando os braços.

— Curiosidade, apenas.

Apenas. – Joseph fungou, virando-se para ela. – É Joana, não é?

O nome dela não deveria soar daquela forma na boca dele. Joana apertou ainda mais os braços em volta de si, tentando reprimir um arrepio, mas não respondeu à pergunta. Ele sabia muito bem o nome dela e, na verdade, parecia apenas testa-la. Como resposta ela apenas o encarou, recebendo seu olhar de volta. Os escuros e profundos olhos azuis de Joseph cravaram nos seus, mas algo acontecera de fato não nela, mas sim no inglês a sua frente. Algo nos olhos de Joana desarmaram completamente Joseph, que ficou preso entre a indecisão de desviar o olhar ou afastar-se. Ele ficou com a última opção, somente para dar espaço para a visão interessada de Joana.

— São cálculos.

Joana permaneceu onde estava, apenas inclinando-se na direção dos papéis. No centro deles, um esboço do que deveria ser a máquina que ele construiria, com diversas palavras e números escritos em volta.

— O que o senhor precisa calcular para algo que fará biscoitos?

— Joseph.

Joana pressionou os lábios, deixando claro que não diria aquilo, fazendo Joseph suspirar em resignação.

— Calculo os tamanhos, a distância entre os produtos, entre os espaços na bandeja, para garantir o corte perfeito dos biscoitos.

Afastando uma folha, ele revelou mais um amontoado de palavras.

— Elas terão um sistema depositador ideal para amanteigados e um sistema de corte a fio que vai muito bem com as massas duras e...

Joseph se interrompeu, notando o olhar estranho que Joana dava para seu trabalho.

— É... frio.

Frio. Ele já ouvira aquilo antes, mas, geralmente, era direcionado a si mesmo.

— Temos pessoas que fazem tudo isso.

— O que a senhorita não entende é que isso potencializa muito mais a produção.

Erguendo-se, Joana se afastou, sentindo que estavam prestes a discutir, mais uma vez.

— O que o senhor não entende é que não precisamos disso. Pode ser muito inteligente da sua parte criar tudo isso, mas é completamente desnecessário aqui.

— Ache o que a senhorita quiser, isso não muda em nada o meu trabalho.

Joana cerrou os punhos, tentando conter a irritação, para então desfaze-lo e erguer as mãos diante de Joseph.

— Está vendo isso aqui? Isso faz um trabalho incrível, que é a essência desse lugar e que máquina nenhuma vai conseguir fazer.

Então Joseph viu do que finalmente se tratava, viu o que de fato lhe chamou a atenção naqueles olhos. Era medo. Joana tinha medo por aquele lugar. Limpando a garganta, completamente desconcertado com o que ele mesmo começara a sentir, Joseph virou-se para a mesa novamente.

— Não vou discutir isso com a senhorita.

Joana respirou fundo uma, duas vezes e somente voltou a cuidar dos biscoitos, de repente também sem nenhuma vontade de discutir. Ela não poderia ter se enganado mais ao achar que poderia continuar com a sua noite ali, na presença dele, sem se aborrecer. Agora sua única vontade era voltar para casa e apagar da sua mente a imagem daquela máquina e do rosto daquele inglês, ao lado de quem ela pousou uma caixa com os recém assados biscoutos de creme.

Desconfiado, Joseph a olhou, enquanto ela mesma levou um a boca, com um suspiro de deleite que lhe atingiu direto no estômago, o fazendo perder o foco.

— Tenha uma boa noite, senhor Fretcher.

Alcançando sua echarpe, Joana começou a fazer seu caminho em direção a entrada da biscoutaria, agora inteiramente satisfeita com o resultado dos biscoitos.

— Onde a senhorita pensa que vai?

O coração de Joana disparou. O que ele queria dizer com aquilo? Queria que ela ficasse? Ou...

— Sozinha por aí? Vou acompanha-la.

Ah.

Qual era o problema com ela, afinal?!

— Não é necessário.

— A senhorita não pode...

Mas Joana já havia acelerado o passo e Joseph atrapalhara-se ao tentar desvencilhar o casaco de sua cadeira e então vesti-lo, a perdendo de vista.

— Joana!

Com a voz dele em seus ouvidos, Joana desatou com pressa rua acima, com Dalton a seguindo. E, pelos céus, que alguém a ajudasse, mas quando ela chegou ao casarão, sorria tanto que lhe tirava o fôlego.