Cinzas

O Tempo Não Pára


11 de Agosto de 1998

Chalé das Conchas

Gina andava na beira da praia, sentindo as ondas baterem contra suas canelas descobertas. Era assim que passava a maior parte do tempo ali na casa de Gui. Tinha adquirido esse hábito desde a fuga de Hogwarts, desde que sua vida mudara completamente. Mais uma vez.

A derrota da Ordem - a morte de Harry– tinha acarretado a inevitável perda de Hogwarts. Quase ninguém mais queria permanecer no castelo, com pavor da fúria de Voldemort, depois que o Menino-Que-Não-Sobreviveu tinha capitulado. Gina não podia culpá-los: a morte de Harry significou a perda da esperança, da perspectiva. E em alguns aspectos, essa era a pior derrota que se podia ter.

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A Ordem da Fênix tentou durante um tempo, mas, em menor número e sem esperança, não foi apta a deter Voldemort. A melhor alternativa então foi dissipar a Ordem e seus colaboradores, protegê-los com feitiços fidelius e esperar… Esperar pelo quê, Gina não tinha condições de dizer. Ela suspirou alto ao pensar no tempo de perseguição que viria.

Eles seriam caçados. Seriam mortos. Seriam dizimados. Sentiu uma leve vontade de chorar, mas não conseguiu; alguma coisa dentro de si tinha se perdido, outras haviam endurecido.

Ela suspirou de novo, cruzando os braços sobre o peito. Dez pessoas saíram naquela noite, voando da Torre de Astronomia, numa tentativa desesperada de pôr fim ao bruxo mais temido de todos os tempos. Apenas sete delas estavam de volta. Mas, muito mais do que a perda humana, aquilo significou a perda de um ideal. A última esperança do mundo bruxo tinha perecido, sob o corpo também sem vida de Neville Longbottom.

Gina se lembrava muito pouco dos momentos que se seguiram a isso. Quando o velho Ford Anglia do seu pai os levara para Hogwarts, o castelo estava num alvoroço sem tamanho. Pessoas estavam sendo evacuadas, outras saiam furtivamente diante da chance de ir embora do olho do furacão. Alguns membros da Ordem da Fênix estavam lá, dando apoio e cuidando dos que precisavam, entretanto, quando viram regressar as pessoas que tinham partido numa missão secreta (e suicida, na opinião de Molly Weasley), abatidos, cansados, destruídos moralmente, todos já sabiam o que deveria ser feito. Proteger ao máximo as pessoas que estavam ali e mandar para longe membros da Ordem e seus colaboradores.

E assim eles se dispersaram.

Gina, Jorge, Molly e Arthur foram mandados para o Chalé das Conchas, para viver com Gui e Fleur. Carlinhos voltara para Romênia, onde poderia articular uma resistência longe da Inglaterra. Percy se recusara a se refugiar ali e vivia em Londres; dizia que seria mais fácil se infiltrar e organizar a resistência fora dali - e organização ainda parecia ser a palavra mestra que guiava todas as ações de Percy. De qualquer forma, ele não demorava muito a aparecer com notícias do mundo real, já que ninguém ali podia sair. Jorge, a princípio, quis ir com o irmão, mas de algum jeito sua mãe o convencera do contrário; Gina suspeitava fortemente que tinha algo a ver com Fred, mas nunca ousou perguntar.

Rony e Hermione apareceram poucos dias depois que a família de Gina chegou no Chalé das Conchas. Durante a Batalha na Floresta Proibida, eles não puderam seguir para o castelo dada a quantidade de comensais que bloqueavam o caminho e tiveram que fugir com a ajuda de Kingsley Shacklebolt e Augusta Longbottom. Evidentemente, eles também haviam ficado por Harry, numa devoção que permanecia até depois da morte de um deles; Gina sentiu uma pitada de inveja quando pensava na união dos três e como nunca esteve tão perto de Harry quanto Rony e Hermione estiveram, mesmo quando eles partilharam aquela noite nos dormitórios da Lufa-Lufa.

Eles haviam ficado na Floresta até que puderam sair de lá com os corpos de Harry e Neville. Gina soubera depois que eles foram para uma casa dos Longbottom na Espanha, onde a avó de Neville havia nascido e onde poderia enterrar o neto e Harry. Gina concordou com aquilo; mesmo que agora Harry estivesse tão longe, levar Neville para casa, para junto da avó, era o mínimo que poderiam fazer por ele.

Com frequência, ela pensava que um dia deveria ir visitar o túmulo de Harry, mesmo que essa ideia incomodasse Rony. Ela achava que isso se devia ao fato de que ele estava reagindo muito mal diante da morte do melhor amigo. Sabia instintivamente, porque também era assim com ela, mesmo que ela deixasse isso transparecer muito menos do que Rony.

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Ela foi tirada dos seus devaneios quando viu uma figura de longuíssimos cabelos loiros se aproximando, com as calças levantadas até a metade da panturrilha, assim como a própria Gina.

"Ah, olá Gina." Luna disse no seu tom etéreo. Ela também tinha se refugiado no Chalé das Conchas, sabendo que a casa do seu pai não era mais segura para nenhum dos dois. A presença dela era um dos poucos consolos de Gina; os silêncios partilhados com a amiga eram naturais, nada forçados e bem-vindos. E elas se entendiam."Sabia que te encontraria aqui." As duas se viraram para o horizonte e uma brisa primaveril levantou os cabelos soltos, vermelho e amarelo, assim como o céu no fim da tarde. "Já é hora de entrar, eu acho. Você já ficou aqui sozinha o dia inteiro e se começar a escurecer poderemos nos deparar com zonzóbulos irritados. Além do mais, é seu aniversário. Sei que não temos muitas coisas para comemorar, mas pelo menos deveríamos tentar…"

"Sim, você tem razão." Ela suspirou resignada. "Acha que minha mãe preparou bolinhos de caldeirão?" Gina perguntou tentando sorrir e recomeçando a andar em direção à casa, lado a lado com Luna.

"Com certeza!" O sorriso da amiga era radiante. "Jorge também ajudou." Ela parou subitamente, pondo um dedo sob o queixo. "Hm, sua mãe pediu que eu viesse te incentivar a entrar e suponho que o fato de Jorge ter colocado a mão em algo que você vai comer não seja um grande atrativo, já que muito provavelmente você vai acabar com meleca pelos cabelos." Ela pareceu ponderar sozinha e então mudou de assunto, no melhor estilo Luna Lovegood e Gina simplesmente sorriu. "O que você quer ganhar de aniversário?"

Gina estacou rapidamente, diante da pergunta inesperada. Havia tantas coisas distantes que ela desejava ardentemente agora que finalmente era maior de idade: A Toca, a paz, Harry.

Entretanto, a despeito de tantas dúvidas, desespero, amargura, revolta, tristeza, a resposta para a pergunta de Luna veio facilmente, natural. Diante da expressão interrogativa da amiga, Gina disse suavemente:

"Já tenho meu presente." Ela levantou a mão e pousou sobre o ventre. "Estou grávida."

Fevereiro de 1999

Chalé das Conchas

Molly Weasley andava pelo quarto radiante, como se o mundo se resumisse ao aposento que era de Gui e Fleur. Algumas adaptações mágicas foram feitas na casa para abrigar aquela quantidade de pessoas, entretanto, nessa ocasião, o quarto principal era utilizado com outra finalidade.

Ela embalava um pacotinho embrulhado num manto azul enquanto murmurava palavras de carinho para um ser que certamente não poderia entender nada do que ela dizia. Arthur Weasley, por sua vez, estava sentando numa poltrona, com um sorriso que o rejuvenescia pelo menos dez anos.

Gina estava no meio da cama de casal, com os longos cabelos ruivos revoltos e se espalhando pelos travesseiros brancos. Se esforçou para abrir os olhos, depois do esforço que fora o parto, no dia anterior. Sorriu fracamente ao ver sua mãe embalando seu filho.

"Já tem um nome para ele, querida?" Seu pai perguntou sorrindo, percebendo os movimentos ainda sonolentos da filha.

"Sim." Ela respondeu com a voz rouca devido a falta de uso. "Eu quero que ele se chame James."

Um silêncio invadiu o quarto depois disso e não foi mais necessário falar sobre o assunto durante um bom tempo.

"É um bonito nome, querida." Sua mãe falou condescendente, tirando os olhos do menino pela primeira vez. "Sei que Harry ficaria muito feliz com a sua escolha."

Os olhos dela marejaram, mas não era mais hora para isso. Ela sacudiu a cabeça para espantar os sentimentos saudosistas.

"Mamãe, Papai..." Ela começou hesitante. "Sei que esse é um assunto que foi sendo evitado por todos, porque vocês não queriam conversar sobre isso, mas..." Ela tomou fôlego, ergueu o queixo e reuniu toda a coragem que tinha, apesar do cansaço. "Eu preciso ir embora."

Sua mãe paralisou no meio do quarto e ela sentiu seu pai enrijecer na poltrona, soltando um longo suspiro como se ele soubesse que esse momento viria, cedo ou tarde. Mas quem se manifestou primeiro foi Molly, para o desgosto de Gina: ela sabia que a mãe seria muito mais inflexível do que o pai.

"Isso não tem o menor sentido, Gina. Por Merlin, você acabou de dar à luz! Além do mais, para onde você iria? Não, isso é uma bobagem." Ela balançou a cabeça, como se tivesse descartando uma ideia trivial e voltando a olhar para o bebê.

"Não estou dizendo que vou sair agora." Gina falou defensivamente, se encolhendo um pouco na cama. "Ainda vou esperar um mês ou dois, até o bebê ficar forte o bastante para…"

"Gina!" Sua mãe interrompeu tempestuosa. "Como você pode pensar em abandonar sua família com um bebê recém-nascido?"

Gina ergueu o queixo belicosamente e os dois pares de olhos castanhos, tão essencialmente iguais, lançaram chispas. "Mãe, eu não estou pedindo permissão, eu já sou maior de idade agora. Não pode me prender aqui e, principalmente, você não deve me prender aqui." Ela pareceu mais cansada repentinamente, suspirando profundamente antes de continuar. "Se me acharem com vocês, ainda vou ser a Gina Weasley e não vai precisar de um comensal muito inteligente para saber de quem é essa criança. De quem são esses olhos…" Ela deixou a resposta no ar, com um gesto vago da mão em direção a James.

Molly, parecendo conter um mau estar, colocou a criança num pequeno berço no canto do quarto e foi sentar ao lado da filha na cama, pegando a mão da garota com carinho; toda a tensão anterior tinha quase se desvanecido, como se nunca tivesse existido. Gina não pôde deixar de se perguntar se chegaria a desenvolver a habilidade materna de mudar do 'vou te esfolar se me desobedecer' para o 'vem cá meu amor' que Molly Weasley esbanjava com frequência. "Nós podemos te proteger, querida. Não vão nos achar e…"

"E se nos acharem, mãe? Qual a chance de pouparem nossa família? Qual a chance de pouparem os Weasley?" Ela não esperou a resposta óbvia da mãe. "E qual a chance de pouparem um filho de Harry Potter? Eu sei que vocês nunca vão abandonar essa luta e eu não pediria outra coisa. Eu me orgulho de toda nossa família por isso." Gina esboçou um sorriso muito fraco, mas não retrocedeu. "Mas eu não posso me expor agora, justamente porque James entrou nesse mundo com tudo a perder, de todos os lados. Se soubessem dele, de quem ele é filho, as pessoas do nosso lado começariam a esperar dele mais do que um bebê pode dar. E Você-Sabe-Quem…" Ela deixou a frase no ar, subitamente com receio novamente de usar o nome de Voldemort. "E eu não quero que ele cresça com isso." Como Harry cresceu, completou mentalmente.

O que restava da fortaleza da argumentação de Molly pareceu ruir e sua mãe permaneceu em silêncio, imersa nos próprios pensamentos.

"Gina tem razão, querida." Seu pai falou pela primeira vez desde o começo daquele assunto, ainda sentado na poltrona no canto do quarto. "A melhor chance de o bebê ter uma vida decente é longe de nós, e de preferência longe do mundo bruxo. Nós dois já conversamos sobre isso."

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Gina encostou a cabeça cansada no travesseiro e fechou os olhos por alguns instantes. Cada palavra do seu pai tinha sido pronunciada com reserva e um sofrimento que ela não estava acostumada partindo dele. E a revelação de que os pai já havia chegado antes à mesma conclusão que ela não aliviou seu coração.

"Prometa que nós vamos conseguir nos encontrar de vez em quando, mesmo que ele não saiba quem nós somos…" Molly disse olhando para James e permaneceu em silêncio durante uns instantes, antes de completar olhando diretamente para Gina, dessa vez. "Eu não suportaria perder mais um filho…"

"Você não está me perdendo, mãe. Está permitindo que seu neto viva."

E as duas se abraçaram fortemente, não contendo as lágrimas, sob o olhar marejado de Arthur Weasley.

Abril de 1999

Chalé das Conchas

"Já checou tudo que precisa?" Molly disse, preocupada.

Gina rolou os olhos ao ouvir a pergunta pela sétima vez nas últimas duas horas. Definitivamente, não podia ficar brava com sua mãe por demonstrar estar preocupada, mas a situação por si só já era bastante desgastante. "Sim, mãe. E também estou levando mantimentos, todos os galeões que conseguimos arranjar, os pertences de James, alguns livros de poções que podem se úteis e alguns ingredientes para poções mais básicas." Ela havia decorado toda a lista. Graças a ajuda de Hermione, conseguira reproduzir o Feitiço Indetectável de Extensão na sua mochila e agora tudo estava preparado.

Estavam todos lá para se despedir: Gina tinha passado um tempo considerável com cada um deles - até mesmo com Fleur, que havia se apegado muito ao bebê - e já tinha se despedido de todos. Certamente, isso não fazia a tarefa de dizer adeus ficar mais leve naquele momento.

A chave de portal levando-a para um encontro num lugar seguro com Percy - e de lá para a parte trouxa de Londres - iria se ativar a qualquer instante e Gina não sabia o que fazer para amenizar a situação. Só tinha vontade de dizer que ficaria e lutaria de frente, não importando as conseqüências, mas assim que olhou para baixo e viu James aninhado nos seus braços, encarando-a com aqueles grandes olhos verdes, soube que não tinha alternativa.

Abraçou novamente cada um deles: Sua mãe, seu pai, Gui, Fleur, Jorge, Hermione, Luna, Rony. Seu irmão estava um pouco mais taciturno do que o normal, ali parado de mãos dadas com Hermione. Ele fora aquele que mais lutara contra a resolução de Gina e não aceitara suas razões para partir, mesmo que ela tivesse explicado centenas de vezes.

Gina se aproximou dele e ergueu James, de forma a torná-lo mais visível para o irmão. "Vê? Um pedaço dele ainda está conosco." As orelhas de Rony ficaram vermelhas e Gina não conseguiu distinguir a razão, embora a rigidez repentina da postura de Hermione fosse um indicativo forte de que esse ainda era um assunto proibido. "Assim como um pedaço de vocês sempre vai estar comigo." Ela completou sorrindo, apontando para o próprio coração. Rony não disse nada, apenas a beijou na testa, num gesto que deixou Gina muito desconcertada.

A chave de portal tinha a forma de um jornal velho e começou a tremer na mão de Gina, num claro indicativo de que a hora se aproximava e ela recuou alguns passos.

Ela viu sua mãe ocultar um rosto choroso no ombro do seu pai, Gui sorrir confiante e orgulhoso ao lado de Fleur. Viu Jorge se aproximar dela, de Rony e Hermione, com um gesto casual, como se estivessem em King's Cross.

"Vamos ficar de olho em você. Ensine esse menino a se comportar como um verdadeiro Weasley, ou então eu farei visitas constantes e ensinarei eu mesmo." Ele disse passando o dedo indicador na bochecha da criança.

E então Gina pegou firme na chave de portal ilegal providenciada por Kingsley e, segurando James em seus braços, sentiu a sensação peculiar de anzol puxando seu umbigo.

Agosto de 2000

Subúrbio de Londres

Gina bufou sonoramente, assoprando do rosto uns fios de cabelo vermelho. Definitivamente, não tinha jeito para a coisa.

Sentada de pernas cruzadas no chão da sua pequena kitnet do subúrbio londrino, Gina tentava costurar. Era sua nova empreitada, que no começo parecia promissora – assim como todas as anteriores – mas que agora estava fadada ao fracasso – assim como todas as anteriores.

Ela havia colocado com sucesso a linha no buraco da agulha e se sentiu exultante. Depois disso, não sabia realmente o que fazer: tentou um ponto, depois outro, depois outro…

Como resultado, ela tinha um palpite muito forte de que tinha estragado a camisa de um dos seus poucos clientes.

Bufou mais uma vez e segurou um palavrão. Como é difícil fazer trabalho manual usando as mãos! Ela fungou e riu ao mesmo tempo, entre a risada e o choro diante daquele pensamento. Quando se movimentou para pegar outro carretel, sentiu algo se pressionar contra a sua coxa direita. Parou repentinamente puxando a varinha da parte externa da coxa, como se não tivesse visto o objeto em anos – na verdade a tinha visto naquela manhã, quando pensou fortemente em usá-la para ajeitar seus cabelos que estavam crescendo incontroláveis novamente.

Gina pegou a varinha e a ergueu até o nível dos olhos castanhos. Eles brilharam com cobiça quando ela pensou que conseguiria consertar a pilha de roupas com apenas um feitiço simples. Ela encostou a varinha na testa, desejando dizer só umas palavrinhas e…

Um som estridente de algo se partindo no chão quebrou sua concentração: James se erguia nas perninhas gorduchas tentando pegar um bibelô em cima de uma prateleira, derrubando um copo no processo. Ele se virou para ela, caindo sobre o traseiro protegido por uma fralda e fez um beicinho clássico de quem tem culpa no cartório. Ela sorriu verdadeiramente e foi abraçar o menino; olhou para seus cabelos castanhos, seus olhos verdes brilhantes e agradeceu a Merlin por ele ter se manifestado antes dela fazer algum feitiço. Não teria como o Ministério da Magia – totalmente nas mãos de Voldemort – ignorar o fato de que alguns feitiços estarem sendo feitos na parte trouxa de Londres. Pelo seu filho, ela não podia arriscar.

Por isso continuava tentando todas as espécies de trabalho trouxa que ela se qualificava para fazer.

Infelizmente, o fato de ela ser indesejavelmente desastrada havia causado sua demissão quando havia tentado ser faxineira. Ser professora particular também não fora eficaz, quando os pais dispensavam-na, dizendo que ela enchia a cabeça das crianças de fantasias; depois disso, Gina teve certeza de que devia ter prestado mais atenção na matéria de Estudos dos Trouxas. A ocupação de babá também não fora muito duradoura: ela tinha bastante jeito com as crianças, principalmente depois de James, mas o problema acabara sendo justamente esse: a maioria dos pais tinha problemas em acreditar que Gina cuidaria propriamente dos filhos deles, tendo uma criança dela mesma para cuidar.

Ela sabia que as coisas só iriam se complicar dali para frente: estava numa espécie de abstinência de uso de feitiços e sentia que James não demoraria a demonstrar suas habilidades mágicas. Na semana anterior ele tinha feito sua papinha ir parar na parede oposta sem sequer levantar as mãozinhas. E obviamente Gina tinha limpado sem usar sua varinha.

Tinha um pressentimento muito forte de que, por mais que fosse o mais racional, não conseguiria viver no mundo trouxa por muito tempo.

Ouviu uma batida na porta que a tirou dos seus devaneios, já sabendo de antemão que seria a Sra. Carter, a vizinha que era a única pessoa que a visitava normalmente e que usava a porta para entrar. Nas escassas ocasiões que seus familiares a visitavam, eles costumavam usar meios mais ilícitos, por assim dizer.

"Bom dia, Sra. Carter! Chegou cedo." Gina falou depois de ter posto James no chão, ajeitado sua roupa amassada e ido abrir a porta.

O aspecto da mulher trouxa era de quem tinha passado a noite em claro, lutando contra um dragão. Ela se enrolava num roupão roxo que não escondia sua acentuada magreza e suas olheiras atestavam uma noite muito maldormida. "Oh, Gina!" A mulher falou, se precipitando para dentro da kitnet. "Eu sei que prometi que olharia James para que você levasse a roupa consertada para os seus clientes, mas infelizmente não tenho a menor condição! Mal posso ficar muito tempo de pé. Minha cabeça está me matando!" Ela terminou com um suspiro dramático.

"Tudo bem, Sra. Carter." Gina disse, com um sorriso gentil. "De qualquer forma, eu ainda não terminei de consertar algumas peças…" Ela apontou a pilha de roupa, com um gesto resignado. As enxaquecas da sua velha vizinha estavam se tornando um hábito e Gina sentia pena dela, mas não havia muita coisa que ela pudesse fazer sem usar sua varinha. A moça ruiva mudou repentinamente de semblante, quando se lembrou da última vez que vira sua mãe; Molly Weasley tinha entregado uma série de poções que a própria Gina havia feito no tempo que passara no Chalé das Conchas. Talvez ela pudesse conter algo para dor de cabeça. "Espere aqui com James um minuto. Acho que tenho algo que pode te ajudar."

Ela correu até o pequeno quarto e mexeu numa caixinha, procurando um vidrinho com um líquido esbranquiçado. Voltou à sala (que também servia de cozinha), com a expressão feliz de quem finalmente tinha voltado a ser útil, de alguma forma.

"Tome de uma vez só. O gosto não é muito bom, mas vale a pena." Ela entregou o recipiente, dando uma piscadela gentil para a vizinha. A Sra. Carter olhou o vidrinho com uma faísca de desconfiança, mas foi vencida pela dor. Virou o conteúdo de uma vez e engoliu com dificuldade. A mudança na sua expressão foi quase instantânea: ela pareceu ter rejuvenescido alguns anos.

"Gina, o que você colocou aqui?" Ela falou sacudindo levemente o vidrinho vazio, sem rótulo, sem identificação. Gina ficou tensa na hora e teve certeza que se abrisse a boca, gaguejaria como Neville na frente do Snape. Ficou ainda mais desconcertada diante do aperto no coração que sentiu diante da lembrança do amigo. Para sua sorte, a Sra. Carter continuou tagarelando "Oh, não importa! Só tenho que agradecer! Você foi um anjo! Não me sinto bem assim há muito tempo. Se você quiser, fico com James todo o tempo que você precisar!" Ela disse, pegando efusivamente nas mãos de Gina.

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"Não é necessário, Sra. Carter. Acho que ficarei ainda com essas roupas durante um bom tempo."

"Mesmo assim, saiba que eu estarei ali do outro lado do corredor." A vizinha se encaminhou até a porta sorrindo, gozando do seu novo estado de saúde. Quando ela chegou na porta parou subitamente, olhando para Gina. "Eu não sabia mesmo que você era boticária. Não devia desperdiçar esse talento costurando roupas." E saiu, deixando Gina com a semente de uma ideia, que provocava e assustava sua mente.

Ela foi até James e suspirou apertando o menino contra si; ele, por sua vez, brincava com as mechas ruivas do cabelo dela, alheio às preocupações da mãe. Não era justo privá-lo do seu mundo, mas isso não era o mais razoável a se fazer?

Entretanto, por quanto tempo ela conseguiria se esconder entre os trouxas? Não podia negar que ela e James transbordavam magia por todos os poros e seria muito difícil arrancá-la deles. E quando ele recebesse a carta de Hogwarts, como fariam para se esconder?

Perguntas, perguntas e mais malditas perguntas…

E no instante seguinte, sentindo o perfume do seu filho contra si, ela sabia a resposta.

Devia se esconder, é verdade. Mas isso não implicava necessariamente se esconder do mundo bruxo.

Por mais que isso fizesse com que uma vozinha de alerta gritasse loucamente na sua cabeça, dizendo que querer voltar era egoísmo, ela não deu a devida atenção: Gina havia se especializado bastante em ser egoísta nos últimos tempos.

Naquele instante, a garota Gina Weasley estava morta.

E a nova mulher que nascia precisava de uma identidade.

Setembro de 2002

Beco Diagonal

Ginevra, parada diante da generosa janela do apartamento de três cômodos em cima da loja que vendia artigos de segunda mão no Beco Diagonal, olhava para a profusão de lojas e restaurantes abaixo. Era início de setembro e os alunos estavam se preparando para ir para Hogwarts, comprando os materiais necessários. A diferença nos comportamentos da sua época de escola para agora era gritante: naquele momento, tudo era taciturno e sombrio, não havia cores, nem empolgação em ir para escola, mesmo entre aqueles de sangue puro. Gina estremeceu diante da situação política: eram realmente tempos sombrios.

"Sra. Woodcroft! Mais pessoas pediram suas encomendas!" Dave Dixon irrompeu na sala do pequeno apartamento que ela havia alugado do proprietário da loja do andar de baixo. "Todos querem as suas poções, parece que a fama sobre a qualidade delas já está se espalhando! E dessa vez eu nem precisei começar os boatos" Ele riu de forma contagiante.

Gina, ou melhor, Ginevra de Woodcroft respirava aliviada. Tinha gasto todas as suas economias nos ingredientes das poções e estava apostando alto no novo padrão de consumo dos bruxos.

Poções relativas à segurança das pessoas.

A convivência com o mundo trouxa somente fez com que Gina confirmasse o que seus pais lhe ensinaram desde que ela tinha idade para se equilibrar sobre as próprias pernas: sejam bruxas ou trouxas, a preocupação das pessoas eram sempre as mesmas. Segurança. Segurança da família, segurança dos seus bens, segurança delas próprias. E com essa ideia em mente, ela soube que podia aplicar algumas coisinhas que tinham aprendido com os trouxas. Entretanto, enquanto eles usavam tecnologia, os bruxos, por sua vez, usariam poções. E Gina sabia algumas das boas.

"Nunca vi tantos galeões na minha frente." Ele rodopiou em volta de Gina. "É claro que coloquei tudo no cofre da senhora." Completou, subitamente tímido.

Gina sorriu. Dave era um 'garoto' magrelo, com cabelos castanhos que caíam sobre os olhos azuis e um jeito totalmente otimista de encarar a vida. Bem no início, quando Gina sequer tinha dinheiro para comprar ingredientes, havia contratado-o por ter certo talento com poções e gostar de mexer com elas. Fora uma aposta bem-sucedida. A bem da verdade, naquela época, ele não tinha muita perspectiva de crescimento: tinha vindo da Irlanda e sido liberado pela comissão do Ministério que aprovava o status de sangue, mas, fora isso, não tinha nada mais para fazer na Inglaterra, nem trabalho, nem o término dos estudos. E desde que Gina havia voltado a circular entre os bruxos, era o seu mais fiel escudeiro.

"Fico feliz por estarmos prosperando, Dave! Em breve poderemos ter nosso próprio espaço, se nos dedicarmos a preparar mais poções." Ela deu uma piscadela cúmplice.

Ele bateu uma continência bem-humorada. O afinco de Ginevra de Woodcroft pelo trabalho já estava se tornando conhecido no Beco Diagonal.

"Logo os duendes vão te procurar para aumentar o tamanho do seu cofre." Ele falou abrindo os braços, como se pudesse medir o tamanho da riqueza que ele gostaria que eles ganhassem. "E logo toda a Londres vai saber, 'se você quer se proteger da influência de Você-Sabe-Quem, procure as poções de quem Você-Sabe-Que-Funciona: Ginevra de Woodcroft'."

Foi impossível não sorrir, apesar de ter olhado levemente recriminadora para o rapaz. Não viviam em tempos onde as pessoas viam esse tipo de brincadeira com bons olhos. Dave vivera até pouco mais de um ano atrás na Irlanda, onde a influência de Voldemort ainda não era tão latente e Gina achava que ele ainda era muito inocente em certos aspectos da nova vida dele.

E de certos aspectos da vida dela.

Ela pensou na sua nova vida, no seu novo nome.

Ginevra de Woodcroft.

Levara um bom tempo para decidir e, a princípio, ficou aliviada por poder se livrar do seu primeiro nome; pensara em Eleanor e Harriet, dispensando-os por serem muito aristocráticos e chamativos; depois pensou em Kate e Ruby, que não foram mais eficazes, uma vez que Gina os considerou muito simples e chamavam atenção por isso, da mesma forma.

Depois de descartar uma lista interminável de sugestões de nomes, ela se deu conta de que nenhum deles era apropriado justamente porque não eram… Ginevra. Gina percebeu que não podia se livrar do seu nome, o resquício de contato que tinha com o mundo dos seus pais, o nome que eles haviam dado a ela.

Decidiu que o que o Ministério procurava, se realmente procurava, era uma menina magrela, abusada, temperamental e idealista, que se chamava Gina Weasley. Vendo seu reflexo de relance no vidro da janela, ela sabia que ali se refletia uma viúva atraente, extremamente reservada, fria e objetiva, chamada Ginevra de Woodcroft.

As vezes, ela mesma tinha dificuldade de se reconhecer.

O sobrenome que proporcionava seu anonimato mereceu um pouco mais de atenção. Precisava de um álibi que garantisse que o Ministério não precisaria investigá-la mais profundamente. Sabia que Percy trabalhava com um contato infiltrado no Ministério que proporcionava identidades falsas para os nascidos trouxas ou para aqueles que queriam uma nova chance fora do país. Com sua eterna habilidade em organizar e documentar, ele havia ajudado Gina a conseguir documentos e quiçá uma árvore genealógica mais robusta. Entretanto, para isso, ela precisou primeiro achar um sobrenome.

Resolvera se passar por alguma viúva descendente de um dos ramos vindos da Escócia da família de Hengisto de Woodcroft - o fundador de Hogsmeade perseguido por trouxas - que julgava que agora que Inglaterra estava passando por uma 'limpeza' racial, seria um lugar mais interessante para os 'verdadeiros' bruxos. Ela confiava que isso lhe daria certa estabilidade com relação ao status de sangue e, até agora, depois de quase dois anos vivendo novamente no mundo bruxo, só tivera que passar pelo registro inicial, numa situação extremamente tensa, mas que não se repetira mais.

E foi assim que ela voltara do mundo dos mortos.

"Ei, Sra. Woodcroft!" Dave estava estalando os dedos, na sua frente, tentando chamar sua atenção "A senhora pareceu desligar, de repente."

"Eu estava pensando no espaço que alugaremos em breve para continuar produzindo nossas poções." Ela se recompôs, sorrindo. "Vamos, temos trabalho a fazer!" Completou mais animada.

Quando estavam se preparando para organizar os caldeirões e livros espalhados pela pequena sala, ouviram um grande barulho vindo do pequeno cômodo que fazia o papel de quarto. Gina se encaminhou para lá, com Dave nos seus calcanhares, e parou subitamente diante da cena.

James, muito sorridente e no auge da vitalidade dos seus três anos, estava pendurado pelo pé por um elfo doméstico, que tentava equilibrar na outra mão uma série de utensílios, desde um caldeirão até umas caixas velhas que deveriam estar numa prateleira acima deles. Gina teve um pressentimento muito forte de que James tinha algo a ver com a causa daquilo.

"Desculpe senhora, desculpe." A elfo falou, atropelando as palavras. Gina não sabia se a hesitação dela se devia ao fato de que a criatura sentia o velho impulso de se autoflagelar ou se pela posição muito desconfortável.

Se Dave era o braço direito de Gina, Della, a elfo, era todo o resto. Tinha aparecido assim que Gina bateu coordenadamente na parede de tijolos no fundo do Caldeirão Furado para entrar no Beco Diagonal, com um bebê de um pouco mais de um ano no braço e uma pequena mala com seus pertences no outro. E, estranhamente, Della olhara James com fascinação, como se estivesse ali por ele.

Della servia a família de Orla Quirke, cujos membros foram condenados a Azkaban, devido à linhagem mestiça. Num último gesto antes de partirem, tinham lhe dado uma ordem – como Gina ficou sabendo depois – de se esconder e cuidar de si mesma até que eles pudessem voltar. Num surpreendente grau de autonomia, a elfo decidira ser útil de uma maneira bastante incomum.

Gina se lembrava como se fosse ontem, quando ela entrara em sua vida

"Senhora," Della falou, se dirigindo a Gina, mas se curvando em direção a James, quase encostando seu cumprido nariz no chão. "Della fica feliz que tenha finalmente voltado. Estava tendo muito trabalho para achar a senhora entre os trouxas."

"Ah, olá." Gina falou, visivelmente desconcertada. "Você deve estar cometendo um engano. Eu não tenho um elfo e também acho que a família a qual você pertence também não me conhece." Ela respondeu, apenas querendo se livrar o mais rápido possível da situação, sem chamar atenção.

"Eu não tenho mais família para servir. Não mais. Estão presos." Ela falava com certo tom de tristeza que alarmou Gina. "Mas Della pode usar seu tempo para algo útil. Ajudar quem ajuda Della. Quem ajuda os elfos." Diante disso, Gina pensou seriamente em encaminhar Della para Hermione, até se lembrar de que não fazia a menor ideia de onde a amiga estava. E estava ficando muito incomodada com o fato da elfo não desgrudar os olhos de James.

"Erm, Della, não é? Eu adoraria te ajudar, mas não posso ficar com você, não posso te pagar, não posso sequer te oferecer abrigo e…"

"Dobby era amigo de Della." O primeiro impulso de Della certamente teria sido de se castigar, por ter interrompido um humano o qual ela estava tentando servir, mas continuou corajosamente resistindo. "Ele me contou tudo sobre a bondade de…"

"Shhh!" Gina interrompeu bruscamente. "E o que você busca comigo? Ele já morreu, não é?" Não pode evitar descontar sua frustração dessa ferida ainda aberta na criatura à sua frente. "Não há nada que possamos fazer em relação a isso, então é melhor que você vá e…"

"Todos os elfos tem uma gratidão com ele. Della deve gratidão a ele, por tudo o que ele fez em relação a um elfo. E por isso Della quer ajudar a cuidar do filho dele."

O coração de Gina falhou uma batida. Como ela sabia sobre James? Alguém mais poderia saber? Della pareceu ler seus pensamentos.

"Della teve muito trabalho em te achar, senhora. Só te achou com a ajuda do seu irmão que vive em Londres; ele disse que um elfo seria útil para a senhora e para o bebê. Para me convencer, ele disse que um pedaço de Harry Potter sobreviveu e estava com a senhora. Della não gosta muito de se sentir livre, mas aprecia muito os esforços de Harry Potter para tratar os elfos como seres que tem sentimentos." E lábio inferior dela tremeu visivelmente, numa expressão que teria feito Gina rir, em outra situação. Mas ela estava mais preocupada em pensar nas maneiras de torturar Percy por ter aberto a boca sobre James, quando o encontrasse; a vida já era difícil o bastante sem elfos malucos andando atrás dela.

Indecisa, ela levou a mão aos pertences de Harry na bolsinha que carregava no seu pescoço e sentiu seus olhos marejarem. James, por sua vez, esticou a mãozinha em direção a Della e sorriu; e então Gina soube que a elfo ficaria com eles dali em diante.

A risada de James a fez voltar para o presente abruptamente.

"Pode deixar, Della. Eu cuido desse pestinha." Ela pegou o menino e o ergueu até ficar frente a frente com os olhos verdes brilhantes do garoto. "Aproveite enquanto ainda não tem idade. Se fosse um pouco mais velho, você mesmo arrumaria essa bagunça, rapazinho!" E James riu, como sempre fazia, se sentindo protegido pela pouca idade.

"Eu posso tomar conta dele enquanto organizam tudo, senhora." Dave falou, certamente querendo fugir da tarefa de organizar os objetos espalhados pelo chão.

"Seria muito bom, Dave. Só me garanta que ele não vai quebrar nosso estoque de vidros para poções. De novo." Ela respondeu, entregando o menino para Dave, que saiu do aposento com o sorridente James tentando pular no seu pescoço.

Gina começou a empilhar novamente os objetos metodicamente. Havia muitas coisas naquele lugar, porque era ali que ela guardava alguns dos seus 'pagamentos'. Muitas pessoas que a procuravam, principalmente no começo, estavam desesperadas por poções de defesa eficazes contra os tempos turbulentos em que viviam, entretanto, não tinham galeões para pagar. Então Gina decidiu que poderia tentar ajudar essas pessoas, mas descobriu que muitas delas se recusavam a receber o gesto caridoso. Como uma forma de deixar as coisas empatadas, eles acabavam dando variados objetos a ela, como uma recompensa simbólica.

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Certa noite, um homem com seu filho bateu sorrateiramente na porta de Gina, buscando poções Eruptivas, poção de Cimicifuga e poção para fazer inchar, para sua tentativa de cruzar o país e sair em direção à França, pelo Canal da Mancha.

"Não tenho nenhum galeão que eu possa dispender agora, Sra. Woodcroft, mas fico extremamente grato por você ter concedido uma chance para mim e para o meu filho." Disse o homem forte, com um bigode proeminente, apontando um menino, de uns catorze anos. "Por isso não posso deixar de oferecer como pagamento, um dos bens mais preciosos que eu tenho. Não vou precisar dele, para onde eu vou."

Então o menino se aproximou e estendeu uma caixa para Gina, que a pegou mais por reflexo; não tinha reparado no objeto antes. Ela nem teve tempo de dizer que isso não era necessário e que desejava sorte para eles. Os dois já tinham se virado e sumido na neblina do Beco Diagonal.

Agora ela estava diante da mesma caixa, que não tivera o cuidado de inspecionar devidamente naquela noite. Caída no chão e aberta, a caixa revelava uma bacia de pedra de pouca profundidade, com runas e símbolos entalhados nas bordas. Dentro dela, Gina via uma substância de luz prateada. Nem líquida nem gasosa.

Onde esse homem havia conseguido uma Penseira? Ela sabia que eram objetos raros e essa não parecia ser a Penseira que costumava ficar na antiga sala de Dumbledore; aquela nas suas mãos era uma versão menor e menos rebuscada daquela que ficava em Hogwarts.

Dumbledore.

Pensar no Diretor fez seu coração se apertar. Não queria nada que a lembrasse daqueles tempos. Não mais. Já era suficientemente difícil olhar para James todo dia e saber de onde ele viera.

Ela se levantou bruscamente do chão.

"Della, pode terminar de arrumar essas coisas para mim, por favor?" A elfo torceu o grande nariz de batata diante da gentileza de Gina, mas fez uma pequena reverência com a cabeça. A mulher ruiva apontou em seguida para a Penseira. "Quero me livrar disso o mais rápido possível. Não preciso de mais coisas para me lembrar do passado." Ela disse e Della a olhou com olhos mais arregalados, como se não acreditasse no que estava ouvindo ou que ela pudesse se livrar de um objeto tão tradicional. "De qualquer forma, acho que vamos conseguir uma boa quantidade de galeões em troca dela."

E Gina saiu da sala repentinamente, disposta a afogar seu passado em horas de preparo de poções.

Junho de 1998

Glastonbury – Inglaterra.

Ele tentou voar sem auxílio de nenhum objeto, mas não conseguiu, mesmo depois de muita concentração.

Precisaria aparatar e não quis que ninguém fosse com ele; estava fraco, mas ainda era o bruxo vivo mais poderoso e mostrar um sinal de fraqueza era inconcebível para ele.

Ter que se locomover como os bruxos ordinários o deixava além da raiva e a raiva era um sentimento que nublava sua mente.

Ela deveria ser seu combustível, não dificultar seu raciocínio.

Limpou sua mente para fazer aquilo que deveria ser feito. Esse era o momento de ser objetivo.

O garoto sucumbira e agora nada mais o afastava do domínio, do poder, da imortalidade. Não havia mais a sombra de Harry Potter para incomodar, como uma mosca insistente desviando-o das suas metas durante quase duas décadas.

Mas, por enquanto, deveria ser cauteloso; ainda estava fraco, com sua alma debilitada. Mais de uma vez ele se questionou se poderia, depois de ter suas horcruxes destruídas pelo maldito garoto, sucumbir à necessidade de dividir sua alma mais uma vez e quais seriam as consequências disso, mesmo para ele… Era uma questão delicada, que ninguém no mundo, nesse tempo ou no remoto passado, conseguira desvendar.

Ele seria o pioneiro, como em tantas outras situações onde forçara os limites da magia e brincara com as fronteiras daquilo que era considerado humano. Sabia que para ele só havia uma regra: Obter poder ilimitado, imortalidade. E também sabia, em seu íntimo que isso inevitavelmente o levaria a fazer outra horcrux.

Ele precisava criar outra horcrux; fazia com que ele se sentisse invulnerável, sempre prestes a retornar.

Ainda assim, para isso, teria que esperar até estar forte o bastante.

Por enquanto, se contentaria em achar um objeto para abrigar sua alma. E uma vítima a sua altura. Sim, isso era importante; tinha certeza que para essa horcrux deveria exigir uma morte cheia de significado, simbolismo. Entretanto, não tinha pressa. Achar essas duas 'coisas' poderia levar dias, meses, anos. Mas não importava: ele era paciente. Precisava escolher com esmero algo para substituir seu diário, sua taça, seu anel, Nagini...

Sentia falta de Nagini, sua companheira mais fiel.

Teve prazer em matar o imprestável Longbottom, ao se lembrar do que ele fizera com Nagini. Mas seu prazer supremo, obtido naquela mesma noite, fora matar o maldito Potter, depois de tantos anos, depois da Batalha de Hogwarts.

Ele havia sentido receio de que algo pudesse dar errado. A destruição da varinha das varinhas fora um duríssimo golpe para ele, mas Potter facilitara todo o trabalho depois, se jogando num ataque suicida que quase deu certo.

Quase.

Mas não era hora de pensar nisso. Precisava tirar outros obstáculos do seu caminho.

Aparatou em frente de um prédio decrépito em Glastonbury onde seus comensais jogavam as pessoas de sangue puro que lutaram ao lado do moleque insolente e que foram capturadas, antes de mandá-las definitivamente para Askaban. Ele tinha planos de transformar aquele lugar em outro dos símbolos do seu regime: uma prisão que servisse como um cabresto para aqueles que ousassem pisar fora da linha rígida que ele estipulara para seus seguidores puros.

Era um símbolo de poder, pois com isso ele atestava que podia encarcerar até mesmo os bruxos mais poderosas da Inglaterra. E ainda assim, representava sua misericórdia, ao não mandar os puro sangue direto para Askaban.

Era perfeito.

As portas se abriram para ele e seus comensais se afastaram do seu caminho, covardemente. Podia sentir o cheiro do terror daqueles homens e se alimentava disso.

Como era doce o cheiro do medo, ele pensou, inebriado.

Alguns que faziam a guarda de Glastonbury sobreviveram a Batalha na Floresta Proibida e o bruxo passou os olhos sobre eles, analisando-os, sentindo a ânsia deles em obedecer.

Parou os olhos ofídicos em Draco Malfoy; ele tinha sobrevivido da maneira mais hedionda possível: desmaiando e se eximindo de lutar por seu Lorde. Mas já havia pagado pela sua postura vexatória e por suas sucessivas falhas, como não ter matado Dumbledore; o bruxo teve que controlar um sorriso que ameaçou brotar no rosto quando se lembrou de como o pirralho esnobe implorou pela sua vida, se contorcendo de dor. Olhou com mais cuidado o rosto de garoto Malfoy; ele tinha mais medo do que todos e exalava isso com uma intensidade que o encantava. O rosto fino estava marcado por manchas roxas e seus olhos tinham olheiras que atestavam sua falta de sono. Desde a morte do pai, um mês atrás, ele tinha sido justamente escolhido para expiar os pecados e fracassos da família. E os dele próprio.

"Anda dormindo bem, Draco? Está com um aspecto tão… desgastado." Ele disse suavemente, dando um claro duplo sentido à palavra e sentindo o garoto tremer. "Precisa de férias? Sumir por um tempo?" Completou com uma ameaça insinuante que não escapou aos olhos cinzas e opacos do rapaz. Draco abaixou os olhos submisso, fazendo os odiosos cabelos platinados que tanto lembravam a figura do pai caírem sobre o rosto.

"Eu agradeço a oferta, meu Lorde, mas estar aos seus serviços é a única coisa que minha família e eu poderíamos desejar." Ele disse com a voz fraca e sem contato visual, mesmo que soubesse como se defender de possíveis ataques à sua mente. Isso demonstrava medo e respeito, e o bruxo não pôde deixar de se deleitar com o fato.

O garoto fora bem adestrado, não podia negar.

Deixou Draco e os comensais para trás, enquanto virava por corredores empoeirados e passava por portas decrépitas. Ele especulou quanto tempo aquele exímio exemplo de fraqueza e covardia agüentaria. Sim, esse seria um bom passatempo: testar os limites de alguém aterrorizado, de alguém que não merecia carregar um sangue puro e um nome tradicional.

Desviou o pensamento de Malfoy, quando um raio de inveja cruzou sua mente. Tinha que se concentrar no que importava e não num garoto desprezível como aquele.

Parou na porta de uma cela, das muitas que haviam no local, voltando a pensar em como resolver todos os seus problemas, aparar todas as arestas.

Haviam colocado a mulher lá depois que as visões começaram a se manifestar, certamente. Para agradá-lo. Também havia gostado disso.

Adentrou no quarto, sentido os pés descalços batendo contra um assoalho gasto e desnivelado.

Uma mulher definhava numa cama, suando devido ao que ele deduziu ser uma febre avassaladora. Sabia que ela havia sido ferida na Batalha de Hogwarts graças a uma mordida da sua Nagini. Ele não conteve um suspiro escarnecedor ao pensar que todos os idiotas da Ordem da Fênix haviam falhado em curá-la. Era uma desonra que qualquer um carregasse o título de bruxo quando não conseguiam escapar de certas situações ou criar soluções para os problemas mais críticos.

Ele olhou para a figura que jazia praticamente imóvel sobre a cama, um rascunho da pessoa que um dia ela fora. E ele tinha convicção de que isso já não significava muita coisa.

O cabelo espesso grudava no rosto sujo, o suor dava um aspecto brilhoso à sua pele e as roupas exalavam um cheiro pútrido que desagradava ao seu nariz. Cheiro de fracasso, de falhas.

Sibila Trelawney estava sendo consumida pelo veneno de Nagini e havia ficado para trás quando a Ordem da Fênix teve que abandonar Hogwarts às pressas, capturada quando tentava ser retirada de Hogwarts por adoradores do Menino-Que-Não-Sobreviveu. Eles tinham sido mortos; ela, por sua vez, não tivera tanta sorte.

Deu um dos seus raros sorrisos, se concentrando um pouco mais na mulher. Ela delirava. Dizia coisas desconexas. Dumbledore, Hogwarts, Harry.

Teria que esperar; o comensal que a capturou dissera que os rompantes iam e vinham.

Conjurou uma cadeira com um movimento discretíssimo da nova varinha e se sentou para esperar. Minutos, horas.

Ela dormia, acordava, delirava.

Ele meditava, especulava, tramava.

Tudo era uma questão de esperar pelo momento oportuno.

Até que os olhos dela, já desfocados pela febre, se arregalaram. A voz que antes era frágil e cortada, tornara-se mais alta, clara. Audível.

Levantou-se e se encaminhou até ela.

"Sibila, diga para mim o que deve ser dito." Ele disse com sua voz constante, quase gentil.

Ela olhava para ele sem enxergar propriamente.

"…e um dos dois deverá morrer na mão do outro pois nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver…"

Ele permaneceu um momento imóvel e deduziu que isso fora a antiga profecia que dizia respeito a ele e ao Potter.

Lutara - e falhara - tantas vezes para conseguir essa profecia e agora ela caía no seu colo, obediente. Mas de que adiantava agora? A história já tinha exigido seu desfecho. Sentiu um lampejo de ira novamente. Haviam chamado-o ali por causa daquilo? Harry Potter já estava morto. Não importava para ele profecias que falavam sobre o passado.

Esperou mais alguns minutos e a mulher ainda repetia a mesma coisa. Estava cogitando se não deveria por logo um fim naquilo; ver alguém nesse estado de fraqueza o enojava e o fazia se lembrar da época que era menos que isso.

Algo que certamente ele não queria se lembrar.

Levantou a varinha. Daria a ela uma morte rápida e desejada. Não seria tão eficaz torturar alguém que já estava com a mente distorcida pelo veneno.

Sabia que não precisava dizer as palavras, mas as diria mesmo assim, só pelo gosto de senti-las rolando pela sua língua, pelo céu da boca, pelos dentes.

Mas Sibila Trelawney falou primeiro. E entre palavras desconexas, ele parou o movimento da sua varinha no ar, como se estivesse hipnotizado.

"Nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver… O fruto originado em um, tem o poder de perdição sobre o outro. E tudo o que carregar o fruto de um, será maldito e venenoso para o outro…"

Ele estacou.

Maldito fosse Harry Potter! Maldito fosse até no inferno onde deveria estar se contorcendo agora.

Ele pensou, andando em círculos pelo quarto onde a mulher ainda gemia. Parecia bastante claro que o fruto originado nele próprio - e que seria maldito para Harry Potter - eram as horcruxes. E tudo que saía delas era sua própria alma, fragmentada em vários pedaços.

Agora, com relação ao garoto... Era tudo muito nebuloso. Qual seria o fruto do garoto?

Uma resistência composta por seus seguidores? Só podia ser.

Ele pensou mais um pouco, para assentar a ideia. Obviamente a Resistência seria maldita e venenosa para ele. Mas seria ela tão poderosa a ponto de poder destruí-lo?

Ele não tentaria descobrir.

O garoto havia morrido, mas a ideia persistia. E Lorde Voldemort conhecia o poder das ideias; sabia que matar ideias era mais difícil do que matar pessoas…

Ainda que elas também pudessem ser mortas no fim.

Ergueu sua cabeça, resoluto com o que teria fazer dali por diante: antes de procurar dividir a alma novamente, acabaria com a Resistência - o fruto de Harry Potter - e condenaria tudo que saísse dela, começando por todos seus amigos. Só assim poderia voltar a ser forte, poderoso de verdade.

Só assim poderia criar mais uma horcrux.

Num gesto rápido, lançou a Maldição da Morte sobre a mulher, impacientando-se com o som dos gemidos fracos.

Conjurou uma pequena esfera, onde guardou a profecia com o cuidado meticuloso característico das suas ações.

Estava muito perto de conseguir seus objetivos.