As Desventuras do Caos

CAPÍTULO XII — INIMIGO IDEOLÓGICO


Finalmente, era segunda-feira. Foi como se o final de semana tivesse sido um comercial ridículo da Polishop do azar, onde a cada momento você podia escutar uma voz ao fundo: “e não é só isso”, “ainda não acabou”, “e tem mais!”. O inferno existia e eu estava vivendo nele.

Eu não vi a cara do Cold pelo resto do dia e nem sabia se teria coragem de ver após pegá-lo no flagra transando com uma mulher. E depois disso, a probabilidade de ter sido Cold quem me beijou caiu ainda mais. Primeiro ele insiste em me fazer ficar — mesmo sem pagar aluguel —, deixa toda aquela tensão no ar com provocações, e, ao mesmo tempo, age como se eu não fizesse diferença nenhuma. Suas intenções eram tão claras quanto um céu nublado. Aquilo parecia um jogo. Só podia ser um jogo. E se Cold já tinha um banquete, seria a misteriosa Hope seu prato principal?

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Eu tentava afastar toda aquela confusão da minha cabeça enquanto lavava a louça e escutava um pouco de música com meus fones de ouvido. Enxaguei um copo nas mãos e levei até o escorredor, notando um corpo embaçado ao lado da bancada da cozinha que me fez saltar com um grito. O copo escorregou da minha mão molhada e, prestes a cair, foi salvo no último minuto por outra mão que agarrou a minha. Puxei os fones de ouvido ergui o olhar até Shannon, com olheiras maiores que o normal e a pele quase translúcida, que logo pegou o copo estendido e seguiu seu caminho até a geladeira. Meu coração estava quase saltando pela boca. Sem falar na leve sensação de que meu rosto estava queimando ao vê-lo trajando apenas uma cueca boxer.

— Você poderia avisar antes de tentar me matar do coração, sabe?

Shannon resmungou algo de volta que eu mal consegui decifrar, e logo voltou para sua caverna.

Decidi me arrumar para a aula, afinal, a vida continua e a faculdade também. Busquei minhas roupas na secadora e deixei as de Shannon dobradas em cima da máquina. Peguei minha mochila que só continha um caderno, algumas canetas e dois quilos de fotocópias, e uma caixinha de suco de laranja perdida na geladeira.

Às oito horas da manhã, a população da faculdade era composta por uma massa de estudantes-zumbi. Os bancos espalhados estavam ocupados por alunos sonâmbulos ou completamente adormecidos. Os prédios da Universidade de Bournemouth eram modernos e reformados a cada ano, revestidos por fora por um material de placas cinza, janelas de vidro, e poucos corredores não eram arejados. Os caminhos do pátio eram revestidos por tijolinhos cerâmicos e contornados por cercas vivas de pequeno porte, deixando o clima de estudos um pouco mais fresco e confortável.

A menos de cinco metros da entrada do bloco de Comunicação, meu fluxo de pensamentos positivos foi interrompido pela sequência de vezes que meu nome foi chamado aos berros. Dei meia-volta, contendo o impulso de esconder meu rosto avermelhado, certa de que a crise histérica vinha de uma das pessoas mais conhecidas em todo o campus, Gail West, PhD em escândalos.

Gail West chamava atenção por seus absurdos 1,78m, ainda ressaltados por um par de scarpins de uma cor diferente a cada dia. Ela não era escrota como o estereótipo do seu biótipo levava a crer, com longos cabelos castanhos cheios de luzes, olhos claros e batom vermelho. Seu estilo transitava entre o perfil das meninas de Arquitetura — atraentes, em dia com a moda, Kylie Jenner — e o das de Fotografia — indie, cardigã, Polaroid pendurada no pescoço. Seu maior hobbie era fotografia, ela nunca teve aptidão para construir casas no The Sims.

— Você, por acaso, virou mendiga? — ela gritou do outro lado do pátio, chegando pela grama com uma pasta cheia de réguas e folhas organizadas. — Que roupa amassada é essa, Dawn?

— Obrigada por me envergonhar no meio do pátio da faculdade, Gail. — Suspirei, virando-me para ela. Hoje, o scarpin era azul e combinava com seus jeans lavado. — Não tive tempo de encontrar o ferro de passar.

— Você me deve explicações.

— Eu sei — respondi balançando a cabeça repetidas vezes. — Mas eu estou atrasada para a aula de Comunicação Corporativa. Posso explicar por mensagem?

— Se mensagem bastasse, você já teria me contado.

— Ok. — Suspirei. — O que você quer saber?

— Vejamos — ponderou Gail com o indicador batendo na ponta do queixo. — Você me diz que foi expulsa de casa pela louca da Lindsay, consegue um apartamento e no dia seguinte está na rua, pensando em vender a bunda. Cinco horas depois, me pede ajuda para tirar um amigo da prisão e cancela o subway alegando ficar presa no elevador. Durante um dia inteiro. Como se não bastasse, me liga desesperada dramatizando um beijo, marca de me encontrar e não aparece. — Gail cruzou os braços com uma careta irônica. — Eu acho que tem alguma coisa que você se esqueceu de dizer, porque esse quebra-cabeça não está encaixando.

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— Primeiro: eu consegui um apartamento para morar, mas, acredite, ou não, meu dinheiro voou todo. Então eu fui para a rua tentar arranjar um emprego, e quando eu consigo alguma coisa...

Eu fui interrompida por uma BMW preta que decidiu buzinar e pedir licença para estacionar onde eu estava parada que nem mesmo era uma vaga. Gail me puxou suavemente, mas eu fiquei observando um detalhe interessante. Eu reconhecia aquele carro. Quando o corpo trajando uma jaqueta preta abriu a porta do veículo, eu soube. Não precisava que o cabelo loiro escorrido e solto esvoaçasse com o vento daquela manhã para que eu começasse a cruzar os braços, pois Cold fez questão de apertar o alarme olhando diretamente nos meus olhos.

É. Eu estava ferrada.

Sua cara parecia demonstrar um misto de nojo e irritação e era tudo culpa da minha falta de vergonha na cara, que não me impedia de abrir a porta do quarto dos outros sem bater. Eu esperei que ele passasse por mim com aquele ar de desprezo mórbido, uma cópia de seu irmão gêmeo — quão irônico isso parecia? —, mas ao contrário disso, Cold agarrou meu braço, prestes a me arrastar para longe.

— Ei! — Gail agarrou meu outro braço. — Eu estava falando com ela!

— Bem — disse Cold, pigarreando, surpreso com a interrupção. — Não está mais.

Ele me puxou mais um pouco e Gail me soltou com o rosto contorcido em uma expressão embasbacada, como se não estivesse acreditando em um cara como ele questionando sua autoridade universitária. Era um conflito de egos que eu jamais havia experimentado, porque eu não tinha metade do ego que Gail e Cold possuíam.

— Eu sei que você quer tirar satisfações — comecei, tentando me desviar do aperto das suas mãos —, mas não precisa me arrastar pelo pátio inteiro para isso.

Cold me soltou no meio do corredor de ciências humanas, exatamente o lugar para onde eu estava indo. Ele abaixou a cabeça e me encarou sob as pestanas, e eu já não sabia mais o que aquilo significava.

— Foi mal — murmurei. — Pelo acidente. Não me bota para fora!

— Isso não é uma expulsão, afinal, você disse que não se importava com nudez parcial. — Cold balançou a cabeça e eu finalmente vi a leveza estampada em seu rosto. Ele não estava nem aí. — Só bata na porta antes de entrar para não ter nenhuma surpresinha.

Respirei fundo, soltando todo o ar pela boca e deixando um sorriso escapar pelos meus lábios por estar aliviada por isso. Cold deixou o cabelo cair sobre o rosto ao abaixar a cabeça e passou por mim, parando um passo de distância e virando-se como se estivesse esquecido de algo. Ele se aproximou da minha orelha e sussurrou:

— Ou a próxima surpresa será você.

Os pelos da minha nuca se eriçaram. Tive que respirar fundo várias vezes até me lembrar de que a aula de Comunicação Corporativa me aguardava e não tinha o assunto Cold nela.

— Escuta aqui — chiou a familiar voz forte de Gail que havia acabado de entrar no corredor com passos rápidos e um equilíbrio de causar inveja em cima daquele scarpin. — Você não... — Mas sua voz morreu quando Cold ignorou sua existência, passando por ela como se ela não fosse nada além de um fantasma. Ela intercalou o olhar entre o rapaz e eu, a expressão endurecida. — Dawn Firewood — chamou. Revirei os olhos, sabendo o que estava por vir. Um interrogatório. — O que Cold Auch Lane, veterano de Jornalismo, o maior galinha misógino de todos os tempos, tinha de tão urgente para falar com você?

— Gail, eu tenho muito para te explicar, mas isso tem que ficar para depois da minha aula de Comunic-

— O.K. — cortou-me. — Não pense em escapar depois da aula.

Eu corri para a sala de Comunicação Corporativa e entrei junto com o professor — o velho senhor Robert S. McCaulley, baixo e corpulento, e muito existencialista. Ele tinha uma característica muito peculiar que era o fato de encarnar um filósofo de vez em quando. Eu apenas me sentei em uma das últimas cadeiras e fiz algumas anotações do que estava no quadro, enquanto apertava todas as teclas do meu celular rezando para que a água salgada não o tenha danificado demais.

Quando finalmente consegui fazer com que ele ligasse, um turbilhão de mensagens fez o celular tremer incansavelmente, chamando atenção de todos da turma e, principalmente, do sr. McCaulley, que caminhava tranquilamente entre as fileiras distribuindo algumas folhas. Nervosa, enfiei o aparelho eletrônico no meio das pernas para abafar o ruído, e McCaulley me lançou um olhar reprovador, deixando uma de suas folhas em cima da minha carteira.

Deixei um longo suspiro escapar quando as mensagens acabaram, encarando o pedaço de papel que havia recebido. A folha não possuía muita coisa escrita, apenas um nome e um endereço, acompanhado de um horário, como se fosse um encontro com... uma editora de jornal.

— Dedica-se a esperar o futuro apenas quem não sabe viver o presente — disse, lentamente, o homem com sua voz arrastada. — Trabalha como se vivesses para sempre. Ama como se fosses morrer hoje.

— Professor, o senhor quis dizer que esses papéis são nossas entrevistas de estágios? — perguntou uma aluna sentada em uma das primeiras cadeiras. A intérprete.

— Todos os trabalhos pagos absorvem e degradam o espírito.

Abaixei os olhos para a folha e li:

W Magazine, sede Bournemouth

93 Henley Road, 6 PM

Cargo: estagiário básico na coluna de moda.

Ah, ótimo. Definitivamente, eu estava preparada para uma coluna de moda, agora que todas as minhas melhores roupas estavam em algum lugar na casa do meu pai. Eu não iria conseguir aquele estágio em mil anos de tentativas. A W Magazine era internacionalmente famosa e em qualquer outra ocasião eu teria ficado grata por isso, menos naquela.

— Professor McCaulley? — O homem olhou na minha direção e ajeitou os óculos de forma que a parte debaixo da lente, voltada para hipermetropia, não o atrapalhasse a enxergar de longe. — Posso trocar com alguém?

— Senhorita Firewood, não há fatos eternos como não há verdades absolutas — ele respondeu em um murmúrio e eu concluí que aquilo era um não. — Ninguém disse que seria fácil, mas valeria a pena.

— Senhor, isso não faz sentido algum — observei, arqueando as sobrancelhas para o homem.

— Aquele que vive de combater o inimigo tem interesse em deixá-lo com vida — o sósia de Nietzche murmurou mais uma vez e eu desisti de ouvir. Se aquele era o grande professor de Comunicação Corporativa, eu não sabia o que era comunicação.

Estava fadada a desistir daquele dia, daquele ano e daquele século. Estava sendo uma péssima vida para se viver. Então assim que a aula acabou, eu me levantei com a mochila e fui até a mesa do sr. McCaulley.

— Professor — chamei-o. Ele me olhou por cima dos óculos retangulares. — Eu realmente não tenho como tentar esse estágio. A verdade é que não tenho nada a ver com moda, não vou conseguir concluir esse período se o senhor... — Não tiver misericórdia da minha alma, concluí mentalmente, deixando a frase se perder quando o homem corpulento abaixou o rosto para algumas folhas que haviam sobrado em cima de sua mesa. Ele deu uma olhada e me entregou uma.

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Saturday Mirror

632 Hawkwood Road, 3 PM

Cargo: estágio supervisionado na coluna de críticas literárias.

Foi como se minha voz estivesse perdida no além. Aquilo era... surpreendente. Eu não poderia esperar algo que se encaixasse melhor para mim que críticas literárias, pois literatura era o que eu mais amava em todo o mundo. Embora o nome daquele jornal me soasse familiar, agradeci o professor seguidas vezes e corri para o pátio do campus, segurando aquele pedaço de papel como se a minha vida dependesse daquilo.

Gail estava sentada na grama em uma toalha de piquenique como uma princesa, comendo uma fatia de quiche, um tipo de torta com massa à base de ovos e creme de leite e recheio de vários tipos de queijo. Joguei minha mochila e meu corpo ao seu lado, fechando os olhos com um sorriso enorme.

— Suponho que essa alegria toda não tenha nada a ver com sua obrigação de me contar o que está acontecendo — disse sem virar o rosto para mim.

— Você está certa. Meu estágio dos sonhos não tem nada a ver com isso. — Suspirei. — Ok, onde foi que eu parei?

Eu comecei a relatar minha trajetória com minuciosos detalhes sobre tudo que havia acontecido. Ela balançava a cabeça para mostrar que estava ouvindo. Eu gostava de conversar com Gail, pois nada parecia impressionante demais para ela. Sua personalidade sempre foi forte, com um ego maior que o normal, autoritária, embora divertida e muito racional. Gail era aquele tipo de amiga que nunca te julgaria por nada, porque ela mesma não tinha como se defender da fama de promíscua e bem-resolvida. Os homens caíam aos seus pés — e ela adorava isso.

Quando terminei de contar, Gail me encarou com os olhos apertados, uma expressão cínica. Foi quando eu percebi que algo estava muito, muito errado.

— Por que está me olhando assim?

— Você beijou Cold Lane — repetiu. Eu balancei a cabeça, embora aquela fosse uma afirmação incerta até o presente momento. — O maior galinha misógino do mundo.

— Tecnicamente, eu não tenho certeza. E como você conhece o Cold?

Todo mundo conhece Cold Lane. Ele é um babaca.

Eu franzi a testa, surpresa com o que Gail acabara de dizer.

— Eu acho que você está confundindo as pessoas — respondi, certa de que Gail estava trocando os gêmeos. — Shannon Lane é um babaca. Cold é gente boa.

— Existe uma diferença absurda entre Cold e Shannon, e a diferença é que Cold é nojento e machista. Ele trata as mulheres como lixo.

— Gail, você está definitivamente trocando os g-

— Eu não estou, Dawn! — Gail elevou o tom de voz e sua expressão ficou séria. Ela percebeu o olhar assustado em meu rosto e suspirou, deixando os ombros caírem. — Cold tenta passar o rodo em todo mundo e nós duas sabemos com o que ele está mexendo! — Gail arqueou as sobrancelhas com desdém. — Esse é o meu ramo e ele nunca será melhor que eu nisso.

— Tudo bem. — Sorri. — Nós duas concordamos nesse ponto. Mas você não conhece o Cold, se der uma chance a ele...

— Não, obrigada.

— Ok, eu desisto. — Balancei as mãos em um gesto de “deixa isso para lá”. — O que você precisa saber é que estou ficando no apartamento dos gêmeos, bloco D. E ele foi o cara que você me ajudou a tirar da cadeia.

— Não acredito que tirei meu arqui-inimigo da cadeia.

— Falando em arqui-inimigo... — Uma dúvida surgiu em minha cabeça. E se alguém poderia me ajudar, esse alguém era definitivamente Gail. — Você conhece alguma... Hope?

— Hope o quê?

— Eu não sei, você já ouviu falar de alguém com esse nome no campus?

— Não que eu me lembre.

Deixei meus ombros caírem, desapontada.

— Tudo bem... Deixando sua disputa ideológica de lado — comecei, pegando o suco de laranja de sua mão e tomando um gole — Eu vou ter essa entrevista de estágio na sexta-feira numa coluna de críticas literárias, você tem noção? É o meu sonho, eu faria de tudo para conseguir esse emprego.

— Isso é ótimo — disse Gail, desviando o olhar e levando o canudo do copo de suco à boca. — Ao menos alguém aqui está seguindo os próprios sonhos.

Franzi a testa para a forma que Gail olhou para cima, apertando os lábios, e depois para longe. Ela parecia repentinamente perdida em pensamentos melancólicos. Gail não ficava assim com frequência, as únicas vezes que a havia visto chorar ou se lamentar estavam relacionadas aos problemas familiares.

— Gail? O que houve? — indaguei.

— O de sempre — respondeu. — Dessa vez eles discutiram sobre eu ser a herdeira da empresa de arquitetura e design deles, falaram sobre as responsabilidades que eu teria que ter quando me formasse... como se eu não estivesse lá. — Gail me encarou com raiva. O “herdeira” em sua frase saiu carregado de sarcasmo. — Como se eles não quisessem saber do que penso disso, ou o que eu quero. Eles são tão insuportáveis.

Gail era a menina de ouro. Ela tinha tudo na vida e não parecia estar abalada em nenhum momento, mas o problema era mais embaixo. Os pais de Gail eram demasiadamente rigorosos e exigiam dela mais do que deveriam. Ela estava em constante guerra com os dois e o maior dos problemas eu já sabia qual era. Era a paixão de Gail por Fotografia, se contrapondo à Arquitetura que seus pais a obrigavam fazer.

— Você e eu sabemos que não vai conseguir viver assim por muito tempo — admiti e coloquei uma mão em seu ombro. — Você é adulta e eles não são seus donos.

— Mas eles ficariam muito irritados se eu abandonasse o curso por causa de... Por causa de um hobbie. Eles depositam todas as esperanças em mim. E se eles me expulsarem de casa?

— Eu não posso te ajudar quanto a isso — respondi, desanimada. — Eu duvido que o façam, mas se fizerem, posso dar um jeito de convencer Cold a te deixar lá por alguns dias.

— Não, obrigada — murmurou fazendo uma cara de nojo. — Não estou a fim de ficar sob o mesmo teto que o meu inimigo ideológico.

— Sua visão sobre Cold está seriamente deturpada. E você tem que tentar. Apenas mude o curso e faça o que tiver vontade. Você pode lidar com as consequências e eles podem lidar com a sua decisão.

— Você acha? — perguntou Gail, o nariz torcido.

— Acho. — Dei de ombros, acabando por pensar melhor. — Na verdade, não. Eu acho que desisti de acreditar que pais serão sempre ultra compreensivos e farão de tudo por você. Afinal, olha onde eu estou agora.

— Alguns pais não deveriam ser pais — Gail concordou.

— Eu queria que alguém tivesse me avisado isso há alguns anos — murmurei esboçando um pequeno sorriso melancólico. Coloquei uma das mãos no ombro de Gail. — Gail, não se preocupe. Vai dar tudo certo. Se não der, a gente faz dar. Não é o fim da linha ainda.

***

Eu nunca imaginaria que a maior parte dos dias daquela semana passariam de forma significativamente mais calma e que até quarta-feira já estaria almoçando e jantando na mesma sala que ambos os gêmeos. Estava começando a me acostumar com a rotina deles, e nem fora tão difícil, já que eles sumiam durante todo o dia e só apareciam à noite — na segunda, Cold chegou mais tarde e com cara de quem havia ingerido algumas doses de álcool, apesar disso, sua resistência parecia alta o suficiente para fazer o próprio caminho da porta até o chuveiro e do chuveiro até a cama.

Acontece que Shannon também tinha classes na parte da manhã e descobrir que ele não era alguém que as apreciava fora a coisa mais fácil do mundo, a julgar por seu olhar miserável com o rosto carregado de olheiras contrastando com a cor de pele. Ele não era muito de falar até sair do seu banho matinal.

Durante as tardes eu limpei a casa e mantive minhas leituras em dia, às vezes acabando por adormecer no sofá e acordar assustada com um dos gêmeos arregaçando a porta do hall de entrada. Eles tinham problemas com portas, todos aqui tinham.

Ainda na segunda, Shannon estava lendo em sua poltrona coberta por um lençol. Ele parecia em um péssimo humor como em todos os outros dias — e por isso eu sabia que corria grandes chances de ser ignorada—, mas eu não consegui me conter quando descobri o título do livro que ele estava lendo.

— Eu não acredito que você tem “Laranja Mecânica”! — exclamei. Estava deitada no outro sofá da sala, surfando pelos canais da televisão, quando o exemplar em suas mãos me chamou atenção. — Eu estava louca para ler esse livro, eu sei que estou mais de quarenta anos atrasada, mas eu sempre me sinto uma idiota quanto vejo o filme antes de ler o livro.

Shannon ergueu os olhos do livro, mirando-me por um segundo com um desprezo quase palpável. Senti meu rosto enrubescer e agradeci pela única fonte de luz vir da televisão. Por que eu estava falando aquilo? Céus, eu era tão estúpida. Embaraçada, voltei minha atenção para a TV. Após o som do baque agressivo das páginas sendo fechadas, o livro Laranja Mecânica apareceu estendido à frente do meu rosto.

­— Pega ­— ele disse. — Não acredito que você nunca assistiu Laranja Mecânica, você é um caso perdido.

Eu pisquei algumas vezes antes de responder.

— Muita gente não assistiu, e não é realmente minha culpa se eu coloquei filmes e livros mais interessantes na frente. — Dei de ombros.

— Por quarenta anos.

— Eu nem havia nascido.

­— Ok, então, por toda a sua vida até esse exato momento.

— Você ainda está lendo.

— Relendo. Pegue antes que eu mude de ideia. — Shannon deixou o livro em cima do braço do sofá.

Eu peguei o livro, que estava longe de estar em perfeitas condições. Não era como se eu fosse uma conservadora de livros, mas meus exemplares de capa mole continuavam incrivelmente limpos e não-amassados, enquanto o livro de Shannon estava surrado, com algumas páginas dobradas e exalava uma forte fragrância que eu reconheci ser do dono.

— Obrigada — murmurei.

Shannon me encarou por um instante e seu rosto ficou completamente vazio de expressão, como uma tela em branco. Ele desviou o olhar e deu de ombros. Aquilo fez meu rosto esquentar.

***

Cold não voltou para casa na terça-feira, e como o incentivo que Shannon tinha para se trancar no quarto à noite era a presença do irmão, aquilo simplesmente não aconteceu. Já se passava das dez horas da noite quando eu decidi cozinhar alguma coisa para comer. Cold havia me ensinado a fazer um macarrão na panela de pressão, e eu sabia fazer exatamente tudo, menos a parte de usar a panela. Nunca iria aprender a usar aquele tipo de bomba portátil, eu assisti ao meu pai explodindo aquilo várias vezes e eu tinha quase certeza de que minhas habilidades culinárias foram herdadas dele. Além do mais, Cold fez todo o trabalho da última vez.

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Tirei o celular do bolso e encarei o contato de Cold. Eu poderia mandar uma mensagem para ele, ele poderia me ajudar daquela forma. Mas já era tarde e ele nem estava em casa. Desbloqueei e bloqueei o celular várias vezes enquanto tentava me decidir.

Talvez ele estivesse ocupado. Talvez ele não estivesse. Talvez ele estivesse comendo outra garota — ou a mesma garota? —, talvez não. Eu não deveria interrompê-lo seja o que for que estivesse fazendo. Ele poderia ficar irritado comigo dessa vez. Ou eu poderia perguntar o que ele queria jantar, ele iria gostar de saber que eu estava colocando em prática o que ele me ensinou. Mas, de novo, talvez ele estivesse ocupado. Puff... Esfreguei meu rosto com as mãos. Decidi procurar algum manual de instruções na internet.

Depois de colocar todos os ingredientes dentro, as instruções diziam para verificar a borracha da panela e deixar no fogo até ferver. Como raios eu vou saber que está fervendo? Eu ignorei aquela parte e esperei o pino começar a balançar. Aquilo me deixava com medo porque parecia uma bomba-relógio prestes a explodir. Eu me escorei na bancada da pia e cruzei os braços, tentando me impedir de começar a roer a unha, mas em poucos segundos eu já estava coçando a nuca e enfiando os dedos no cabelo. Então as instruções disseram para abaixar o fogo — eu o fiz — e desligá-lo após o tempo de cozimento, mas... Que tempo de cozimento? Eu não fazia ideia de quanto tempo o Cold deixou. Comecei a ler a aba “cuidados que você deve ter”, e foi aí que eu fiquei realmente desesperada. Eu tentei ligar para Cold, mas ele não atendeu. Ótimo. Só restava uma coisa a fazer.

— Me ajuda. — Shannon me olhou de esguelha. Ele estava sentado em sua poltrona favorita lendo um livro. — Eu estava fazendo esse macarrão que Cold me ensinou, mas eu não faço a menor ideia de como usar a panela de pressão, parece que vai explodir o tempo inteiro e isso realmente me assusta e agora ela está chiando e eu nem sei o que fazer. Eu tentei olhar na internet, mas aquilo só me deixa mais confusa e-

— Você não sabe usar uma panela de pressão?

— Não me olhe como se fosse a coisa mais fácil do mundo.

— É um equipamento, tem uma trava de segurança, um pino de-

— Eu já vi explodir, ok? — choraminguei. Shannon fez uma careta e eu podia jurar que ele estava rindo da minha cara, e mesmo assim ele parecia extremamente gostoso fazendo isso.

Shannon largou o livro e foi até a cozinha, eu o segui. Ele arregaçou as mangas de seu suéter, jogando o cabelo para trás e colocando um pano de prato no ombro. Eu o encarava enquanto ele terminava de fazer o macarrão e talvez eu estivesse sendo óbvia demais, mas não dava para resistir, era tão sexy. Ele estava tão concentrado e ao mesmo tempo fazia parecer a coisa mais fácil do mundo. Shannon sabia cozinhar. E eu não conseguia parar de encarar suas mãos habilidosas, porque — e eu estava me sentindo a pessoa mais estúpida do mundo naquele momento por isso — ele ficava tão gostoso destampando a panela e servindo o macarrão, e então lavando a louça e puxando a toalha do ombro para secar as mãos. Ele se virou para mim e jogou o pano na bancada. Céus, eu queria me enterrar viva. Shannon me fitou com tanta intensidade que eu achei difícil sustentar seu olhar, com medo do quão hipnotizante aquilo se tornaria.

Tentei me confortar com o pensamento de que aquilo era e apenas porque Shannon era idêntico a Cold. Porque Shannon era constantemente um babaca comigo e eu sabia que aquilo não iria mudar.

Eu terminei o jantar e voltei para o sofá, ligando a televisão e mudando de canal até encontrar um filme que eu já havia assistido várias vezes e não me cansava nunca, (500) Dias com Ela.

Era patético e romântico, mas chegava a ser ainda pior quando eu sibilava juntamente com o narrador: “Esta é uma história de um rapaz que encontra uma moça, mas você deve saber de antemão, esta não é uma história de amor” e eu realmente precisava me conter para não cantar Us no início do filme e falhava miseravelmente com as lágrimas no final.

— Eu tomo que esse seja seu filme favorito — disse Shannon. Preferi me limitar a fazer uma careta e não olhar na sua cara.

O filme estava acabando. Tentei conter que o choro saísse tão alto, mas eu sabia que Shannon estava ouvindo. Esfreguei o rosto várias vezes.

— Porra, que filha da puta — escutei ele dizer. Minhas lágrimas secaram e eu virei meu rosto na sua direção tendo certeza de que estava óbvia minha intenção de estrangulá-lo naquele momento. — Digo, no sentido de que ela fodeu com o coração do cara e só pensou nela mesma. E, cara, a contagem de dias desse filme não faz sentido algum!

— Você não entendeu nada, assiste de novo. — Balancei a cabeça e Shannon arqueou uma sobrancelha. — Summer não é uma vadia, ela avisou desde o início que não queria nada com o Tom e o Tom é um idiota com uma visão deturpada sobre amor. Ele teve um monte de chances de perceber que não era tudo aquilo e ele continuava insistindo.

— Que chances?

— Primeiro: a irmã dele falou que não é para ser a alma gêmea dele só porque gosta das mesmas porcarias que ele curte, mas foi assim que ele se apaixonou pela Summer, por causa das bandas e dos filmes. Segundo: a Summer disse a ele que não acreditava em amor, ela nunca nem disse que o amava, mas ele insistia que ela estava se abrindo e, vale lembrar, o filme é contado na visão dele, e que ele era definitivamente especial. Tom era um romântico incorrigível. Não que eu concorde com a Summer, mas ele tratava o amor como se fosse algo digno de um pedestal.

— Essa é a sua opinião sobre isso? — Shannon perguntou.

— Eu não acho que isso seja pertinente, mas, sim, eu acho que as pessoas só ganham problemas quando se envolvem demais e eu tenho motivos para tentar não fazer isso. — Dei de ombros. É claro que eu estava pensando na minha mãe e em como ela era tão, ou até mais boba que o Tom. O rosto de Shannon ficou em branco e eu tomei aquilo como um incentivo para continuar. — E mais, a linha temporal do filme é relativa. Não são exatos quinhentos dias, aquela é apenas a sensação que o protagonista tem, quanto tempo ele sentiu que durou. É também uma jogada com as estações. Pode ter sido três meses ou dezesseis, o importante é que teve início e fim. Você já terminou um relacionamento, sabe o que sempre acontece, a vida.

Shannon continuava me encarando com aquele olhar que parecia completamente nulo de emoções e eu não sabia o que achar daquilo.

— Não foi a vida — respondeu.

— Então o que foi?

A porta do hall foi aberta e Cold entrou na sala. Eu não sabia dizer se ele estava bêbado de novo. Seus olhos percorreram o local e pararam em Shannon por um momento. Eu olhei o relógio, já se passava da meia-noite. De repente, Shannon se levantou da poltrona e desapareceu no corredor escuro, trancando-se em seu quarto. Eu avisei a Cold que o jantar estava no fogão e fiz o mesmo que Shannon, mas não conseguia evitar me lembrar do que Cold falou sobre o término de Hans e Shannon. Hans nunca trairia Shannon e era a única conclusão que eu poderia chegar, ainda me perguntando o que realmente aconteceu.

***

Acabei dormindo com o livro do Shannon na minha cara. Eu só conseguia me lembrar de sentir aquela fragrância por toda a parte e abrir os olhos assustada, tendo a ligeira impressão de que, por um momento, ele estava lá. Mas não estava.

Quando cheguei à cozinha, encontrei um prato de ovos mexidos com bacon e torradas em cima do bar. Havia uma nota perto do prato onde dizia: “Tive que sair. Sobrou um pouco. Coma.”

Um rubor subiu pelo meu rosto. Eu tinha quase certeza de que se tratava de Cold. Ele era o único que fazia comida para mim e aqueles ovos mexidos estavam com uma cara maravilhosa. Sentei-me ao bar e comecei a comer, um sorriso de canto surgindo em meus lábios. Talvez tenha sido ele quem me beijou, afinal. Cold podia ser desprovido de sentimentos a maior parte do tempo, mas talvez eu estivesse conseguindo arrancar algo dele.

A porta do hall se abriu e um dos gêmeos sem camisa entrou na sala. Eu soube imediatamente que era Shannon. Ele estava arfando como se tivesse acabado de se exercitar. Seu corpo estava suado, ele trajava apenas uma calça de moletom e tênis, seu cabelo estava preso em um coque e, oh, céus, meus olhos traçaram o caminho pelos músculos daquele corpo e eu estava certa de que estava corando.

Shannon se aproximou, pegando uma toalha deixada no sofá para secar o rosto.

— Estava gostoso? — perguntou.

Eu pisquei algumas vezes, olhando para o prato e, em seguida, para ele. Arregalei os olhos. Merda. Merda. Merda.

— Eu, hm, eu pensei que... — gaguejei, procurando as melhores palavras, mesmo sabendo que elas não existiam.

— Você pensou que tivesse sido ele — Shannon concluiu, balançando a cabeça, o maxilar trancado. — É, tudo bem, esquece.

***

Eu não tinha uma programação para arrumar a casa, de verdade. Era quase prazeroso manter tudo em ordem quando mais ninguém o fazia, então eu não me importava de limpar a cozinha de manhã ou trocar os lençóis de cama à noite, na hora que eu achasse que deveria ser feito, eu fazia. Não entrei no quarto do Cold — eu não me arriscaria mais uma vez —, então apenas empurrei os lençóis limpos e dobrados em seus braços para que ele mesmo fizesse. Segui para o quarto de Shannon após isso.

A cama estava cheia de roupas, como era de se esperar. Separei-as em uma pilha de roupas limpas e sujas e depois troquei o lençol. Já estava indo na direção do guarda-roupa quando Shannon entrou no quarto.

— O que você está fazendo aqui?

— Trocando o lençol, mal-educado. — Eu coloquei as mãos no puxador de uma das portas do guarda-roupa.

— Não abra isso!

— Por que não? — perguntei, já abrindo.

Então uma capa de violão caiu da prateleira mais alta, fazendo um barulho alto e nada melódico ao bater no chão, junto com algumas fotografias antigas. Shannon se apressou para entrar na minha frente e recolher o objeto. Eu pisquei várias vezes.

— Você toca violão? — indaguei cheia de curiosidade. Shannon me encarou com uma expressão de poucos amigos.

— Não.

Ele estava mentindo. Era óbvio que estava. Eu recolhi uma das fotos caídas. Nela havia um garotinho de cabelos longos e loiros, com no máximo dez anos, segurando um violão para crianças e um troféu de primeiro lugar. Atrás dele havia uma faixa escrito “show de talentos”. Eu apostei que fosse o Shannon.

— Que coisa mais fofa! — admirei. — Por que está dizendo isso, você ganhou um troféu! Onde está?

— Quebrou — resmungou revirando os olhos. Ele terminou de ajeitar a capa e enfiar o violão de volta no guarda-roupa, logo retirando a fotografia das minhas mãos e jogando no mesmo lugar.

— Você toca violão!

— Tocava. E isso não é da sua conta.

— Por que não toca mais?

— Porque ele é um fracasso — respondeu uma voz, que por mais idêntica que fosse a de Shannon, não estava saindo da boca dele — em tudo que ele faz. Ele nunca termina o que começa e mesmo se fizesse isso, seria uma merda. — Shannon apertou os punhos e as veias de seus antebraços ressaltaram. — Ele é tão inútil que não faz a menor diferença se toca ou deixa de tocar. Esqueça isso, Dawn.

— Chega. — O olhar de Shannon desviou-se do meu. — Estou cansado de você sendo um babaca. Eu vou acabar com você!

Foi tudo tão rápido que eu mal consegui processar. Eu me virei. Cold Lane estava no batente da porta.

Shannon não deu tempo para Cold respirar ou pensar sobre o que iria fazer. As mãos dele agarraram a camisa do irmão e o puxaram para dentro do quarto, levando-o de costas à parede com um baque suficientemente alto para saber que aquilo havia sido doloroso. A expressão no rosto de Cold demonstrou surpresa, mas logo foi desfeita com o murro que Shannon fez questão de acertar, a cabeça de Cold bateu contra a parede e ele reprimiu um gemido, desviando-se do segundo soco por pura sorte.

Filho da puta — Cold resmungou antes de agarrar o ombro do irmão, usando-o como apoio ao desferir uma joelhada no estômago de Shannon, que ofegava enquanto caía no chão.

— Cold! — eu gritei, surpresa com a repentina briga que se iniciou, ainda mais com a forma como Cold começou. — Pare com isso! — Tentei segurá-lo pela roupa antes que ele tentasse fazer mais alguma coisa contra Shannon, mas Cold parecia fora de si. Ele me empurrou com o cotovelo e eu senti uma leve pontada na região onde ele havia acertado.

Shannon agarrou o irmão pela camiseta e o puxou para o chão do quarto, subindo em cima dele e desferindo golpes que Cold quase não conseguia bloquear. Uma das mãos de Cold se esticou até um livro largado no chão, conseguindo alcançá-lo sem que Shannon percebesse, e o atirou na cabeça do irmão, desestabilizando-o imediatamente. Eu vi o fôlego de Shannon se perder, fechar os olhos e segurar a cabeça enquanto seu corpo caía no chão.

— QUAL É O SEU PROBLEMA? — eu gritei.

Cold não teve tempo de desviar, ou o que quer que ele pretendia fazer. Eu o puxei pela camiseta, empurrando com toda a força que eu tinha para longe do irmão. Cold lançou-me um olhar com censura, mas eu o ignorei completamente. O que Cold tinha na cabeça? Ele começou com aquilo e ele foi tão... Ele agiu como alguém que eu não conhecia. Eu escutei a porta do hall de entrada se chocando com um alto ruído e tive certeza de que ele havia ido embora. Coloquei uma mão no ombro de Shannon.

— Você está b-

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Shannon afastou minha mão e se sentou com as pernas dobradas e os cotovelos apoiados nos joelhos, escondendo o rosto nas mãos. Eu não poderia dizer se ele estava chorando, mas certamente estava chateado demais para dizer alguma coisa no momento. Ele estava reagindo de novo, em silêncio.

— Devo ligar para Hans...?

Não ligue para Hansel. — Sua voz estava áspera. Ele esfregou as mãos no cabelo, embaraçando-o mais do que já estava. Foi uma pergunta estúpida.

Dirigi-me à cozinha e coloquei um copo no filtro, pressionando o botão para enchê-lo. Enquanto o copo se enchia de água, algo dentro de mim se revirava. Meu corpo estava tenso, minha cabeça estava um caos. Eu ainda estava absorvendo a situação. Estava ficando difícil de respirar.

Depois do que pareceu uma eternidade, eu voltei ao quarto com um remédio para dor e um copo de água. Shannon tomou. Ele sentou-se na cama enquanto eu apagava as luzes do abajur. Eu sentia que ele estava me encarando, o que me fez fitá-lo e gravar cada detalhe de sua expressão. Ele coçou o pescoço.

— Dawn — ele murmurou em um tom quase inaudível. Meu coração falhou uma batida com o som do meu nome na sua voz áspera. — Você pode... — Ele mordeu o lábio por um momento, desviando o olhar até o chão. — Eu... — Shannon fechou os olhos e prendeu a respiração. — Por favor.

Eu me dei conta de que seu silêncio era um tanque de sentimentos, revirados, confusos. Ele estava tentando não deixar o tanque transbordar e estava me deixando ver através disso. Seu interior sensível. Seus ossos, sua estrutura, sua boca seca entreaberta, seu rosto como uma tela em branco.

Eu não pensei realmente no que estava fazendo quando levei minhas mãos até sua cabeça e deslizei meus dedos por suas têmporas, ele exalou, suas mãos seguraram meus pulsos e percorreram o caminho até repousarem em minha cintura. Ele abriu os olhos, afastando as mãos como se a realidade tivesse caído em si. O que eu estava fazendo? Eu ignorei a pergunta que martelava em minha cabeça e me sentei na beirada de sua cama. Talvez ele não tenha pensado realmente quando deitou a cabeça no meu colo. Ele não faria isso em seu estado normal. Não mesmo.

Eu não estava pensando.

Corri meus dedos pelo seu cabelo e o assisti respirar pesadamente. Suas pálpebras piscavam cansadas. Eu não estava pensando porque sentia que, de alguma forma, ele precisava disso. Eu precisava.

Em algum momento eu devo ter caído no sono, acabando por acordar horas mais tarde com um cobertor ao meu redor. E Shannon também estava lá.