As Cores da Liberdade

Nona Carta - Aquela que Vestia o Arco-íris


Caro Céu,

Eu nunca havia visto outras cidades além da minha. Devo dizer que Rosária era bem mais bela, contudo era mais atrasada. Talvez eles não precisassem das inovações que tínhamos na Fenda. Seus rios eram límpidos e seus campos eram férteis, assim como suas árvores eram frutíferas.

Passei o final da manhã descansando em uma pousada, enquanto Hexabelle saíra para procurar por informações. Não consegui comer muita coisa, mas me forcei a isso. Quando finalmente tomei coragem para levantar, Hexabelle não estava à vista. Ponderei esperá-la, porém desisti da ideia. Eu precisava de ar fresco.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Eu estava completamente admirado com as belezas daquela pequena cidade, assistia algumas pessoas murmurarem enquanto eu caminhava lentamente. Não podia ver a hora que eu recuperaria o controle total das minhas pernas, perguntava-me se o meu caminhar era estranho demais para aqueles indivíduos.

— E outra vez! Está sendo inútil outra vez! — Uma voz orgulhosa gritava e um pequeno grupo de pessoas ia se aproximando da cena. — Eu te amo tanto, Alice, por que você tem que ser tão detestável?

— Klaus... Por favor, não foi minha intenção... desculpe-me, por favor. — Ao ouvir aquela voz meu sangue gelou. Eu havia chegado ao local e lá estava Alice ajoelhada no chão segurando cacos do que eu acreditava ser um vaso. As pessoas ao redor olhavam para ela com desaprovação e aquilo pouco a pouco me enfurecia.

— Está se fazendo de vítima outra vez! Claro que foi sua intenção! Nesse ciúme doentio! Um vaso tão lindo! Que a pobre Lacey deve ter tido tanto trabalho para fazer. Como ela poderá me perdoar? — Minhas mãos tremiam, será que aquelas pessoas não percebiam o que ele estava fazendo? Foi apenas quando ele ergueu a mão para feri-la que eu perdi o controle. Empurrei um homem que estava na minha frente e me coloquei entre os dois enquanto erguia meu braço direito para proteger meu rosto da agressão.

— O que está acontecendo aqui? Ponha-se no seu lugar! Essa mulher precisa ser punida. — Virei às costas para ele, ignorando-o. Observava Alice com pena. Sua situação era completamente deplorável. Ela me encarava sem entender, como se eu fosse algum tipo de assombração. Estendi minha mão a ela, ajudando-a a se levantar. — O que você pensa que está fazendo?

— Estou agindo com humanidade. Você conhece essa palavra? — Puxei Alice pelas mãos, que estava confusa demais para contestar minha atitude. Voltei para a pousada e subi para meus aposentos. Fitei a jarra e me perguntei se ainda havia água fresca dentro dela. Por sorte havia. Ofereci um copo a Alice que ainda parecia ser incapaz de pronunciar uma única palavra. — Você está bem?

— Estou... Cedric? Eu achei que nunca mais fosse vê-lo outra vez... e você está andando, eu não posso acreditar... eu estava me sentindo tão culpada e... — Eu a interrompi, levando meus dedos aos seus lábios. Dei um sorriso calmo, tentando confortá-la.

— Foi um pouco difícil passar um tempo com Myra, porém... ela não é um demônio tão cruel no fim das contas. Construí algo para ela e ela me fez voltar a andar. — Minha expressão pouco a pouco foi se tornando sombria. Eu tinha que avisar Alice, alertá-la. Falar para ela o que Klaus havia feito. — Ela me contou sobre o motivo de você ter me vendido. Disse que você queria libertar Klaus e...

— Eu sinto muito! É que... eu não poderia viver sem ele! É completamente estranho... — Eu balancei a cabeça negativamente. Podia ver a expressão angustiada dela e podia sentir aquilo machucando meu peito. — É como... se eu precisasse fazer qualquer coisa por ele...

— Não, Alice... Klaus vendeu a alma dele à Myra para que você o amasse dessa forma doentia. Ele queria se vingar de você, porque você o rejeitou muitas vezes no passado. Ele não te ama, Alice, ele só está brincando com você. — Eu a assisti balançar a cabeça diversas vezes, suas mãos escondendo o seu rosto. O poder do contrato de Myra impedindo-a de ver a realidade.

— Ele me ama... ele só não sabe demonstrar isso muito bem... até porque, é difícil amar alguém como eu. Eu sei que ele está tentando, ele é uma pessoa incrível, na verdade. Não é culpa dele... — Sua fala era quase que robótica. Eu sabia que não devia sentir raiva dela, contudo era algo difícil. Por vezes eu me esquecia de que ela agia assim por conta do contrato, não porque realmente queria.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Alice... — Respirei fundo e a segurei pelos ombros. O corpo dela se retesou como se temesse que eu a tocasse. Franzi o cenho, contrariado. — Você tem medo de mim?

— Sim... não! Eu não sei... eu me sinto confusa. Vamos... vamos mudar de assunto, por favor. — Alice mordia os lábios e evitava a todo custo me encarar. Um sorriso se forçou a aparecer em seu rosto. — Você é mais alto do que eu pensava...

— De fato, também fiquei surpreso com isso. — Me permiti sorrir levemente. Ela ainda estava desconfortável, pois eu não a soltara. E nem pretendia. Não conseguia aceitar que ela fosse forçada a amar alguém, não era certo. — O que mais me surpreende, é ver que você não está lutando contra esse feitiço. Você tem que reagir.

— Por favor... — Eu a envolvi com meus braços e nossas testas se tocaram. Lágrimas manchavam o rosto dela e àquela proximidade eu podia ver claramente as pequeninas sardas de seu rosto.

— Eu quero que você se lembre. Quero que se lembre do motivo de ter rejeitado aquele homem tantas vezes. Quero que o rejeite de novo, porque nós dois sabemos que você não o ama. — Os olhos de Alice estavam fechados com força, imaginava se ela tinha esperanças de que, quando os abrisse, eu tivesse desaparecido. — Eu quero que você seja forte, Alice, porque você me mostrou o Céu...

— Cedric! Você não vai acreditar quem eu... — Fechei os olhos ao ouvir a voz de Hexabelle. Senti Alice se afastar de mim e a libertei de meu abraço. — Sinto muito, não quis atrapalhar.

Só tornei a abrir os olhos quando ouvi o barulho da porta se fechando. Alice me lançou um olhar torturado e se dirigiu para a porta. Continuei parado no quarto silencioso enquanto decidia o que fazer. Optei por ir atrás de Hexabelle, afinal.

Só consegui encontrá-la ao entardecer. Ela estava apoiada em uma cerca próximo ao estábulo da cidade. Observava um cavalo solitário correr por uma campina muito verde.

— Belle. — Disse, parando ao seu lado e dando-lhe um curto sorriso. Meus olhos se voltaram para o cavalo que corria, esperando que ela pudesse quebrar o silêncio que pouco a pouco ganhava forma.

— Sabe? Eu não consigo lembrar-me de quando me apaixonei por você, só lembro de que me sentia uma tola. Ainda me sinto. — Seu riso era límpido, como se aquela realmente fosse uma situação engraçada. — Às vezes pegava-me desejando que você se apaixonasse por mim também. Só que é impossível afinal isso apenas nos machucaria... entenda, mesmo que eu possuísse alguém... não seriam meus lábios que você estaria beijando ou mesmo meus braços que estariam te abraçando. Nesses momentos eu desejava ter uma forma física, estar viva... não valeria a pena, não é verdade? Porque você ama Alice... você nunca esconde o que sente, Cedric. Acho que isso é o que eu mais gosto em sua personalidade.

Nós dois continuamos a encarar a campina. O cavalo já não estava mais lá, seu dono havia buscado-o para que ele pudesse dormir. O Sol desaparecia atrás das montanhas longínquas. Não havia nada que pudesse ser dito naquele momento. Nós sabíamos que nossa amizade era considerada errônea, sabíamos que a possibilidade de um relacionamento que fosse além disso era algo que transcendia o erro. Nunca ocorreria, deveríamos apenas aceitar. Pois vivos e mortos não podem se amar.

— Eu estou feliz... porque podemos ser amigos. Eu nunca tive um amigo como você, Cedric. Lembra quando Theodore disse que você deveria me mandar ir embora? Que eu não era natural, nem deveria existir... você contestou isso. Você não permitiu que eu me afogasse na solidão. — Hexabelle sorria, entretanto eu sabia que ela chorava por dentro e eu nada podia fazer para confortá-la. Porque ela era inalcançável. Hexabelle sempre fora inalcançável para mim. — Brooke está na cidade.

— O... quê? — A repentina mudança de assunto me deixou momentaneamente confuso.

— Era isso que eu queria lhe dizer quando entrei no quarto. Que Brooke está aqui. — Brooke era, de longe, a coisa mais impensada que já havia me acontecido. Recordava-me do dia que ele apareceu na Fenda, impossibilitado de acreditar que aquilo realmente aconteceu um dia. Eu deveria estar tão insano quanto o Vício quando fiz aquele projeto. — Tenho que voltar para a cidade, prometi que ajudaria uma pessoa. Até mais, Cedric. Espero que você consiga quebrar o contrato de Alice.

Ela se afastou correndo, a longa trança negra balançando de um lado para o outro. Havia muita coisa para pensar... talvez eu nunca devesse ter saído da Fenda. A vida não era tão complicada lá.

— Sabe. Tu não podes simplesmente quebrar um contrato meu. — Saltei para o lado, motivado pelo susto. Myra encontrava-se sentada na cerca, fitando-me com seus olhos vermelhos. — Charles está realmente arrasado.

— Assista-me quebrá-lo, então. — Um sentimento de culpa me abateu. Charles havia realmente se esforçado para me criar, mesmo não sendo meu verdadeiro pai. Talvez ele fosse... por que eu achava que não? Eu poderia estar sendo injusto... eram perguntas que eu não conseguia responder.

— Espíritos são coisas estranhas... Os anjos os desconhecem, ou fingem desconhecer. Eles são a falha, pois ficaram presos e não sabem a razão. Ninguém sabe. Não puderam ir para o paraíso, nem puderam ir para o inferno. A realidade é que ninguém se importa com eles. Os outros demônios os têm como fracos, humanos se apavoram com sua presença. — O Vício falava em tom sério, levando-me a questionar se ela se importava com aquelas pobres criaturas. Refleti sobre o que ela dizia enquanto ficávamos em silêncio. — São criaturas desgraçadas e solitárias... assim como quem os vê, talvez seja o elo que nos une a eles. Não consigo encontrar explicação melhor.

— Nunca imaginei que você mesma se enquadraria como alguém desgraçado e solitário. — Myra piscou para mim e retirou algumas cartas de dentro de sua cartola. Elas voavam habilidosamente entre as mãos do Vício.

— Minha desgraça é não possuir um anjo. Minha solidão... não vejo a solidão como algo ruim. — Explicou o Vício, embora eu não achasse que aquela explicação fosse totalmente sincera. Seus olhos vermelhos fitavam algo perdido no meio das estrelas. — Tu sabes... quando se está procurando pelo conhecimento, muitas vezes a solidão passa despercebida.

Comecei a caminhar para longe do Vício, não queria continuar com aquele assunto, mesmo que ele fosse esclarecedor... carregava muito sofrimento. Parei um momento e dirigi meu olhar à Myra que parecia me encarar sem ver.

— Diga a Charles... que eu mandei lembranças. — Imaginava se eu deveria cobrar alguma explicação de Charles, acabar com as mentiras... era tempo da verdade e eu estava pronto para conhecê-la. Eu não era mais um garotinho preso em um buraco, preso em uma cadeira de rodas. Eu merecia saber, ao menos era isso em que eu acreditava.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Enquanto isso, no centro de Rosária, o pandemônio se formava.

Hexabelle estava ajoelhada no chão com as mãos na cabeça, enquanto gritava e chorava em desespero. Um círculo de pessoas a envolvia, todos em completo silêncio. O corpo dela tremia violentamente e eu estava correndo para ela quando percebi... percebi que não era Hexabelle. Não podia ser Hexabelle.

Porque Hexabelle estava encarando o corpo que outrora possuíra com uma expressão tão perplexa quanto a minha. Nossos olhos se encontraram, entretanto nenhum esclarecimento foi passado.

— Foi ela! Foi ela! Eu não queria! Ela vestia o arco-íris, eu não tive culpa, eu não tive culpa. Eu os quero de volta! Eu os quero de volta! Eu quero meus pais de volta! — O círculo de pessoas a encarava com um misto de medo, desgosto e pena. Era impossível traduzir as palavras da garota, contudo os olhos de Hexabelle se arregalaram ainda mais. Ela havia entendido. Ela sabia o que a garota havia visto.