Ao fim de outro dia, desta vez mais dedicado ao instrumento, (uma vez que Aciru tinha tomado por função explicar algumas instalações básicas a um grupo de recém- chegados a Kadamon) Kyrion se viu só em seu quarto, um pouco inquieto. Lembrava-se que o outro lhe dissera que viria se tivesse possibilidade de recebê-lo. Como poderia não poder? Ou teria que fazer algo?

Recebera do outro duas visitas, e em ambas ele chegara espontaneamente. Como? Talvez sua semelhança fosse o fato de ter escorregado para uma espécie de transe. Um estado de espírito particular, que ainda não era claramente o sono, uma vez que não era repousante, nem o distanciava da realidade (lembrava-se muito bem do frio que sentira por estar descoberto na noite com vento), mas que fazia o tempo passar sem senti-lo.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Procurou relembrar o que o motivou em ambos os casos a entrar neste estado; parecia ser uma profunda contemplação, algo meditativo. Da primeira vez foi a beleza do céu ao alvorecer; da segunda, o som repousante das notas do instrumento. Ambos o fizeram recordar-se do dourado por alguma razão particular.

Pensou o que poderia ajudá-lo nesta terceira vez. Teve uma ideia. Estaria pronto para quando fosse repousar.

***

“Você é inteligente. Sabia que conseguiria encaixar tudo no lugar. Ou quase tudo.”

“Quase tudo, sim” respondeu Kyrion, com certa satisfação. Desta vez fizera os preparativos adequados, fechando as janelas para proteger seu corpo enquanto estivesse naquele estado. Conseguira deslizar lentamente para o estado contemplativo que desejava ao fim de alguns minutos. Logo depois, sentiu a familiar presença de seu companheiro materializar-se outra vez sentado na ponta da cama.

“Então, qual o elemento que deu origem ao meu nascimento?” A voz enunciou o desafio, mas não trazia conflito.

“Você é filho do primeiro amanhecer de algum dos mundos. A princípio achei que fosse o próprio sol, mas algo me dissuadiu da ideia. Talvez sua delicadeza, que não bate com a potência escaldante dos sóis.”

O dourado riu-se abertamente, e sua figura pareceu tornar-se mais nítida. Kyrion pôde notar seus olhos com clareza: suas pupilas eram fendidas como a dos gatos e eram envolvidas por um brilho dourado, que aos poucos se mesclava a um azul muito claro e luminoso. Ao redor da íris, outro anel dourado. Kyrion espantou-se de não ter adivinhado antes o elemento do amigo, se ele tinha estampado o alvorecer nos dois olhos.

“Venci um de seus desafios, mas não me sinto vitorioso, se ainda não sei seu nome ou qualquer coisa a meu respeito. Mas aceito as leis que nos cercam” prosseguiu o Kyrion, ao notar o outro inclinar a cabeça ouvindo suas palavras “e aguardarei com mais paciência o momento adequado de chegar a essas respostas. Ainda procurarei seu nome o quanto puder.”

“Obrigado por entender, Phiyo.” O dourado piscou os olhos, grato. “Vamos ver o que pode fazer com esse instrumento. Isso pode ajudá-lo mais do que imagina.”

Phiyo ignorava como isso poderia acontecer, mas pegou o instrumento com delicadeza. Adotou a posição certa para tocá-lo, mas surpreendeu-se por ver que ainda era incapaz de manter-se nela por muito tempo. O ferimento alcançava-o até nessas circunstâncias.

“Não se preocupe. Deixe-o como tem feito nesses primeiros dias, deitado ao seu colo. Faça as posições assim...” disse o outro, posicionando as mãos de Phiyo enquanto explicava.

Boa parte da noite transcorreu dessa forma. Os sons que escapavam do instrumento eram reais? Podiam ser ouvidos por mais alguém, ou eram parte dessa ilusão? Eram incógnitas irrelevantes naquele momento. Phiyo achava aquilo melhor do que sonhar, porque sempre se lembraria do que se passou, sem perder-se com a luz do dia. Como poderia, se a luz do dia acompanhava-lhe noite adentro, bem ao seu lado?

***

“É o bastante por ora, Phiyo. Já poderá fazer coisas magníficas se permitir seu espírito se libertar e criar o quanto quiser. Mesmo que sejam somente fragmentos. Terão seu próprio brilho. Agora você deve descansar.”

A despedida doía-lhe, mas Phiyo compreendia que era necessário. “Tudo bem. Mas antes que se vá, gostaria de lhe oferecer um agradecimento.” Ergueu-se da cama e aproximou-se da bancada, sendo seguido pelo outro. Sobre ela repousava um bonito arranjo com grandes flores: algumas eram douradas e cintilantes, ornadas com muitas pétalas pequeninas, outras eram brancas, menores e perfumadas. Phiyo tomou uma das douradas nas mãos, a mais bela, e ofereceu ao outro.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

“Foi através delas que pude encontrá-lo hoje. Consegui me lembrar de que flores assim eram do seu agrado. De qualquer forma, me lembraram de sua companhia. Obrigado pela aula.”

O dourado tinha no rosto uma expressão de franca surpresa. Seu braço se ergueu, e por um instante Kyrion temeu que a flor pudesse cair no chão, atravessando aquela mão tão imaterial. Mas não foi o que ocorreu. Ela segurou firmemente a flor, e levou-a ao peito descoberto de seu dono. “Eu é que lhe agradeço. Isso é muito importante para mim.” Seu rosto tinha uma expressão grata, os olhos brilhando. “Se me permite... vou levar também uma flor branca...” sua outra mão alcançou o arranjo, pegando um singelo botão branco, ainda por abrir. Levou-o ao rosto e inalou o perfume. “Uma flor que ainda virá a ser. Um devir. Elas são minhas favoritas...” suas palavras se perderam no silêncio, enquanto sua forma desvanecia-se no ar. A última visão do Kyrion fora um lampejo cintilante naqueles olhos de amanhecer.

Kyrion sentiu o corpo sobre a cama, e somente ajeitou-se melhor para cair no sono repousante. O amanhecer veio pouco depois, mas o cansado mendeva não viu sua chegada dessa vez, exausto da noite de estudo. O sol veio-lhe pelo quarto, mansamente, morno, como se pousasse um beijo em tudo o que alcançasse.

Veio por fim a atingir o vaso com o arranjo, onde duas flores estavam faltando.

***

O dia convidava-o a tocar. Não tinha nenhuma obrigação, e seus amigos não poderiam oferecer-lhe companhia aquela tarde; seu braço parecia um pouco melhor, e as lições da noite ainda estavam frescas em sua memória, como aqueles sonhos indeléveis que deixam forte impressão mesmo quando se acorda.

Um vento manso e úmido soprava por entre as galerias, prenunciando a mudança no clima e a chegada do frio para a região das torres. Faltavam ainda algumas horas para o pôr do sol, e o entardecer guardava os últimos instantes de calor. Com o instrumento atravessado nas costas, Kyrion fazia um passeio errante, até uma ponte chamá-lo com um apelo irresistível, e para lá ele se dirigiu.

A ponte era ampla, ligando dois setores bastante afastados entre si. O chão de pedras gastas formava padrões circulares. Bancos de madeira pesados estavam em ambos os lados, a intervalos regulares. Mas ela era bela por sua própria razão: ao invés de parapeitos comuns, ela trazia canaletas com água corrente, limpa e gorgolejante. Nessa água fresca prosperavam plantas aquáticas, cujos caules, pesados de milhares de folhas, caíam para ambos os lados. Algumas dessas plantas precipitavam-se da ponte e ficavam lá, muitos palmos penduradas, balançando àquele vento que soprava. Não bastassem as belas flâmulas verdes, aqui e ali se abriam flores brancas e cor-de-rosa, mínimas, mas em cachos perfumados ou em delicados buquês.

Um banco particularmente rodeado pelas plantas foi escolhido por Kyrion, quase na parte central da ponte. Havia poucos transeuntes, e uma ou outra alma pensativa nos bancos. Um casal aproveitava as flores como pretexto para ilustrar seu amor. Foi lá que a fera pálida se sentou, apoiou o instrumento sobre as pernas e começou a dedilhá-lo.

A voz do instrumento começou seu treino mavioso, baixinho, de forma que nenhum rosto se virou para procurá-lo. Na verdade, era pouco mais que o som do vento. Por alguns minutos aquela atividade envolveu o Kyrion, satisfeito com o bailar dos dedos, o vento acariciando seu corpo, a água correndo, o cheiro fresco e limpo. Ali era completo, era pleno. Nada faltava.

Mas dessa paz surgiu um sentimento, uma sensação que germinou lentamente. Mesmo enquanto embrião era diferente do resto, e trazia a angústia da necessidade. Mas não era um sentimento inerentemente mau, ainda que tivesse um lampejo de caos. Foi aos poucos crescendo, lançando raízes, sempre devagar, nunca a ponto de ser incômodo, mas tampouco seria ignorado. Em dado momento, ele estava tomando o corpo do músico, preservando-lhe ainda a mente. Em alguns instantes, todos os sentimentos já lhe pertenciam, e o corpo perdia a obediência de seu dono original, tendo agora novo mestre.

E esse sentimento cresceu, já poderoso, mas nunca terrível. Era tentador e belo, sem ser sufocante. Tendo posse sobre os dedos, foi aos poucos se infiltrando na música, e quando Kyrion percebeu, sua mente nada mais podia fazer. Seu espírito rendeu-se, pois o corpo, os sentimentos e mesmo a música eram somente expressão dessa nova sensação magistral.

Era um impulso, um instinto, uma fome. Era desejo de criar.

***

Imagens formavam-se na mente de Kyrion, dando rosto a sua arte, dando nome ao que produzia. A visão de uma praia foi tornando-se real em sua mente, tomando profundidade, adquirindo textura, uma clareza que em geral todos os pensamentos comuns carecem, e somente os grandes desejos possuem. O som da água das canaletas parecia aos poucos metamorfosear-se no remanso de ondas eternas, de um azul sublime crispado do perolado da espuma. O amarelo das pedras da ponte reduzia-se, rutilava, formando os grãos de uma areia fofa, densa. O vento trazia agora um novo frescor, um cheiro salgado, um sabor de oceano.

Kyrion via-se sentado em frente ao mar, que quase lhe alcançava com as ondas. As galerias, varandas, portas, todo infinito vertical da torre foi obliterado pela eternidade do horizonte que se estendia. O sol que ia se por logo lhe tocaria as águas, e já corrompia de dourado as águas azuis, como se nele lançasse joias. Tudo isso parecia claro ao Kyrion, como o lugar de pedras que ocupava até alguns segundos atrás. Era uma experiência que seu corpo inteiro desfrutava, em plenos sentidos. E mais do que isso: suas mãos, sobre o instrumento, compunham esse mundo cada vez mais.

Acima de todos os sons da praia, a música do Kyrion formava a realidade aos poucos; suas notas tinham o azul do mar, e o dourado do sol, e o tom de mel das areias. Tinha o sal da maresia, tinha o soprar de um vento que se encorpava, tinha o ruído de ondas se encapelando. As notas flutuavam, tornando-se parte da paisagem, no lugar certo, no momento certo. Seus dedos pareciam conhecer aquele poder, sabiam como formar o lugar. Talvez ele formasse a si mesmo, sendo o Kyrion apenas o veículo para sua manifestação. Pois este era mero expectador da arte que suas próprias mãos formavam, do desenrolar quimérico que lhe estava completamente fora de alcance.

A música erguia-se, vibrava. Não tinha o tom errático do aprendiz, mas a destreza selvagem do mestre que se entrega. Não, Kyrion não era bom músico. A música era sublime por si, e ele nada tinha com o processo. E como para provar isso, a paisagem aos poucos crescia, tornando-se mais impressionante, quase assustadora. Como um dragão, ela desdobrou asas imensas e hipnotizou com olhos de sonho, sendo monstro tanto quanto era bela. As ondas ficavam mais altas e tonitruantes, o vento mais bruto.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

O sol já começara seu mergulho no mar, entregando o mundo nos braços escuros de sua irmã da noite. O céu fechava-se no breu com aterrorizante rapidez, enquanto as águas pareciam engolir aquele orbe flamejante por inteiro. As mãos de Kyrion batucavam, arranhavam e agrediam as cordas em grande velocidade, ao mesmo tempo empurrando aquele poente para baixo, e tentando, desesperadamente, prestar-lhe um último adeus.

O vento agora era frio, com o hálito puro do espaço. Borrifos de água atingiam o rosto do Kyrion, que podia senti-los, frios, escorrendo em seu rosto. As ondas agora quase trovejavam, como se a falta do sol libertasse nelas uma besta escondida. Começavam a molhá-lo, primeiro aos poucos, como se testassem nele alguma resistência. Mas então com mais e mais força, encharcando seu criador, completamente entregue a seu poder.

Kyrion fechou os olhos, talvez perdido, talvez assustado, pelo poder imenso daquele lugar, que existia por si, e era ao mesmo tempo puro som. Não conseguia ignorar a presença que o engolia pelos tons, gelava-o no vento, abraçava-o nas águas selvagens. Suas roupas agora pesavam mais, e seu cabelo caíra de onde estava preso, sacudido pela violência das intempéries. Mas nada diminuía o furor de suas mãos de músico, que anunciavam o clímax e o fim daquela canção.

Mas esta, talvez percebendo seu iminente desfecho, despediu-se do mundo onde surgira com suas notas mais ousadas, gritando significados perdidos que quase – por muito pouco – fugiam à compreensão. Esse esforço final foi também a despedida do Kyrion, exausto que estava, tomado pela dor que sentia no braço ferido, enquanto dedilhava os últimos tons cansados após o ápice.

Ao reabrir os olhos, a paisagem que se descortinava era tão surpreendente quanto a praia agonizante que a precedera. Nuvens pesadas, monstruosas, despejavam uma chuva torrencial e trovejante sobre Kadamon, agora já envolta no anoitecer. Kyrion pensou, num relance, que tudo aquilo que sentira poderia ser produto daquela chuva... o trovejar dando voz às ondas, o polvilhar do chuvisco como as gotas que lhe acertaram, o vento que se passou por sua irmã maresia. Fora tudo aquilo uma ilusão?

Seu rosto voltou-se para procurar um abrigo da chuva, mas se deteve ao encontrar expectadores, estáticos, boquiabertos e encharcados, de sua excursão e delírio.