O Lobo-homem e o Feiticeiro Mestiço

As coisas estranhas da garota.


Nas margens de um riacho raso, porém largo e pedregoso, havia uma gruta que era um lugar seguro e longe de qualquer curioso que chegasse perto do velho castelo desmoronado. Deslizei a garota do ombro para a camada de areia seca e macia no interior. Apesar de Luahn estar com corpo de fêmea, menor e mais esbelta, havia pesado. Sentei-me ao seu lado e a observei enquanto esperava que acordasse. Era esquisito saber que era Luahn, pois seu corpo estava bem diferente, menos músculos aparentes, braços finos, curvas que não existiam e parecia frágil, mas não era tão desagradável de olhar. E também admito que no fundo estava aliviado de tê-la encontrado bem, pois meu acordo com a feiticeira ainda era importante. Assim, por estar relaxado, assistindo os movimento da respiração de jovem mestiça e seu rosto, o cansaço veio e nem percebi quando dormi.

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Acordei com um grito agudo e fiquei em alerta, sentando-me. As horas tinham passado e já estava de noite fora da gruta, onde havia o brilho da lua crescente atingindo a entrada. Observei tudo e não encontrei perigo, então me voltei para Luahn. Ela também estava sentada e com uma cara de susto, me olhou:

— Tive um pesadelo — contou-me ofegante. — Fui transformado em uma garota e... — ela pôs a mão no peito e ficou imóvel, gritou brevemente. — Eu ainda sou uma mulher! — ficou de pé, perturbada. — É tudo verdade! Eu preciso resolver isso logo!

A mestiça foi até o saco que trazia consigo, o vasculhou e foi separando alguns frascos e itens esquisitos.

— Fiel, eu preciso de uma fogueira, vai buscar alguns galhos — mandou e ignorou que eu não tenha gostado, mas sai da gruta ouvindo-a murmurar: — Eu me lembro... Os ingredientes... É estão aqui... Falta o... — e foi revirar o saco novamente. Parecia ansiosa, sempre jogando os cabelos longos, que iam até abaixo da cintura, e loiros para trás dos ombros.

Recolhi uma quantia média de madeira seca e retornei. Mal dei um passo na entrada e a garota surgiu pegando galhos de mim e reclamando da demora. Montou uma pilha, como sempre fazia, e buscou as coisas de seus bolsos, achando sua misteriosa pedra de fagulhas, mas não o outro metal necessário. De repente, virou-se para mim, olhando meu cinto com faca e espada, que eu passei a carregar, e se aproximou:

— O que é isso? — pegou a faca rapidamente e tocou a espada, mas me afastei antes que ela também a puxasse.

— É meu! Esse corpo de homem humano não tem garras, preciso de algo que corte.

— Está bem, mas... — ela encarou o punho da espada por um instante, curiosa, porém deixou quieto, levando a faca e conseguindo acender a fogueira.

Sentei-me num canto, apenas observando suas manipulações de ingredientes esquisitos, jogando num pequeno caldeirão posicionado sobre as chamas. Fiz uma cara de nojo com o que me pareceu ser um pedaço de dedo seco que ela jogou dentro.

— Isso é mesmo necessário? — questionei quando o vapor de sua poção passou por mim.

— Lógico! Meu corpo não é esse, Fiel — encarou-me séria, estava corada num misto de raiva e determinação. — Que lua nós já estamos? — Voltou a mexer nos seus itens, murmurando frases encantas de tempo em tempo para sua sopa estranha.

Olhei para fora, medindo o brilho da lua no solo.

— Acho que uns três dias para lua cheia — respondi e ao voltar a olhá-la, ela tirou o caldeirão do fogo, correu pegar um caneco do saco e voltou para sua poção.

Vê-la andar com pressa me divertia, pois a calça estava frouxa, arrastando a barra no chão e às vezes ela tropeçava, o que fazia a peça descer mais, e ela arrumava com um grunhido. Luahn virou um pouco de sua poção no caneco e me levantei:

— Vou ficar lá fora. Tente não morrer por causa disso.

— Não vai ficar? — interrompeu-me um pouco assustada.

— Acabei de dizer o que vou fazer.

— É, sei, mas... Eu não sei. Era muita coisa para decorar, os ingredientes, a seqüência, a pronúncia das palavras. Eu... — ela hesitou, segurando o copo entre as mãos e olhando o chão — Eu também acho que posso morrer.

— Então não faça. Não está tão mal.

Luahn me olhou nos olhos, não entendi o que ela tinha estranhado na minha fala e até corado um pouco mais.

— Não estou acostumado... — suspirou. — É muito estranho. E não gosto como me olham.

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— Quem mais te viu assim? — estranhei, refletindo se o feiticeiro negro não era o único.

— Só você e o feiticeiro. — Espantei-me, não tinha como eu estar o olhando de forma diferente, sabia que era Luahn. — Não faça essa cara de desentendido, Fiel. Eu sei que sou uma mulher bonita e das boas — segurou seus seios por alguns breves segundos. — Mas é muito opressor estar tudo dos avessos tão de repente. Sinto-me meio enjoado com esse corpo...

Surgiu um silencio entre nós. E, de repente, Luahn pegou o caneco, bebeu tudo, fechou os olhos e se concentrou, assumindo uma energia de oração que pude sentir. Voltei a me acomodar no canto da gruta, observando-a por um longo tempo e não teve reações colaterais.

— Então? — abriu um olho e me focou, não reagi. Seu olhar castanho voltou-se para baixo e então abriu os dois olhos, jogando o caneco longe, frustrada. — AH! Mas eu fiz certo! Tenho certeza! Senti algo acontecendo aqui dentro... M-mas nada mudou!

A mestiça ficou de pé e andou pela gruta, perdida, depois veio e sentou-se do meu lado, cruzando os braços e com as pernas esticadas, ficando quieta e apática ao encarar um ponto distante.

— Fiel... — chamou-me com a voz baixa após as chamas da pequena fogueira diminuir. — Eu estou com fome...

— Ok — levantei-me, soltando o cinto com a espada ali, e fui atrás de alguma coisa assumindo a forma de lobo.

Retornei a caverna com dois roedores, era o que mais tinha por ali durante a noite, Luahn deu seu jeito para prepará-los no fogo, o que eu achava desnecessário se estava com fome. Assumi a forma humana quando ela terminou, entregando-me metade de nossa comida e sentando-se do meu lado. Por estarmos sem uma refeição por muito tempo, acabamos comendo quietos e rápido. Comecei a pensar em sair novamente para achar algo que preenchesse melhor o estomago, mas, subitamente, a garota olhou para mim e riu. Encarei-a.

— Você parece um pouco mais robusto agora — disse descontraída, com um sorriso. Não sei por que seu riso conquistou minha atenção. — Sabe... — desviou o olhar, limpando os dedos nas calças sem delicadeza alguma — aquele feiticeiro conhecia sobre minha mãe. Disse que ela é de linhagem de sangue puro de feiticeiros, varias gerações com magia mais apurada e poder. E fez isso comigo por que... — corou fortemente — queria ter filhos com herança pura — riu de forma forçada. A ideia do homem também me parecia bem esquisita. — Era louco. Eu nunca iria destruir esse corpo tão logo assim, ainda menos com ele que me sequestrou! ... Mas bem que eu não sabia o que ele poderia me obrigar a fazer se me colocasse num aprisionamento.

— Sua mãe?

Ao falar daquela mulher, me lembrei de quando a vi, de seus cabelos castanhos, suas vestes longas, sua energia poderosa e a instantânea caçada da alcateia contra ela ao senti-la em seu território. Aquela mulher que queria proteger o filho mestiço com lobo e para isso me aprisionou a Luahn.

— Sim, minha mãe. Não a vi muito depois dos meus cinco anos, quando fiquei com meu mestre de feitiçaria, mas ela é muito bonita, Fiel, e se ela quiser tem uma atração que pode arrepiar o homem com o coração mais frio da terra — comentou convencido. — Assim como eu!

Ri com seu sorriso torto e orgulhoso na ultima frase, desviando meu olhar para fogueira.

— Ah, que fofo! — Luahn exclamou, e vi que estava me encarando encantada. — É primeira vez que você ri, Fiel! Que fofo! Faz de novo! — ajoelhou-se, virando-se para mim só para me observar.

— Não seja idiota — levei a mão para empurrá-la, mas ela segurou e apenas a balancei. A mestiça continuou mantendo meu toque ali, perto da clavícula e ombro sobre a camisa de algodão larga.

— Está ficando previsível — riu de mim quando fiquei frustrado, mas logo notei minha mão nela. Nunca havia dado atencão em sentir um humano ou qualquer outra coisa com os dedos, era curiosa a sensação quente de sua temperatura, o pulsar de seu coração, o movimento de sua respiração e até mesmo a retenção dos músculos daquela área. Na minha vida lupina, o tato não tinha tanto significado como parecia ter no corpo de homem.

Apesar de concentrado naquilo, sabia que a mestiça continuou me encarando por alguns segundos até que sua expressão sorridente se suavizou quando tive um reflexo estúpido de pressionar os dedos apoiados nela. Surpreendendo-me, ela observou sua própria mão, sorriu marota, e, lentamente, deslizou o toque para baixo, passando por seu tronco, até parar apoiada em sua coxa. Havia algo no ar quando ela fez isso, meu coração reagiu batendo mais forte, e depois ficamos encarando o ponto final. Luahn inspirou e levantou o olhar para mim novamente, foquei seus lábios rosados e o rosto corado. Tentei entender o que é que ela estava fazendo, mas sua expressão não me explicava nada, com apenas um sorriso fino e sutilmente lascivo. A garota arcou-se na minha direção, tocando seus lábios nos meus e busquei recuar, afinal a ultima que fez isso pôs uma corrente no meu corpo, mas Luahn me impediu, levando a mão livre para minha nuca e me segurou naquilo até se afastar bruscamente, me encarar atônita e ficou de pé.

— Desculpa! Isso está errado — tampou o rosto e caminhou para o outro lado, sentando-se lá de forma esparramada. — Nem sei por que fiz isso... Não, sei sim. Voce teve culpa também, me deixou excitado, me olhando e... Ai, que estranho — lamentou-se, escondendo o rosto nas mãos e agora falando sozinha, mas pude ouvir de forma abafada: — Você nem ligou, claro que não tinha clima. Sou um idiota...

Continuei onde estava, sem entender o que foi aquilo, nem o que é errado e nem porque não houve um ardor em minha pele e novas runas surgindo. Na verdade, não parecia ter feitiço envolvido, então o que havia sido selado? Eu não entendia o que significava aquele ato e porque meu coração batera.

— Bom, é melhor irmos dormir! — Luahn exclamou depois de se silenciar. Olhou pra mim, parecia ter se controlado. — Amanhã precisamos achar algum vilarejo e arrumar um jeito de repor o que perdi.

— Vai tentar fazer sua poção de novo?

Liberou um suspiro, triste e frustrado.

— Por enquanto não dá. Vamos esperar uns dias, para ver se algo acontece com a que tomei hoje... Talvez eu não tenha poder suficiente para o encantamento. Aí, vamos ter que achar alguém para fazer a reversão.

Concordei e a garota seguiu até a fogueira, jogando um punhado de terra nas brasas. Em segundos minha visão se adaptou à escuridão com ajuda da luz da lua que batia sutil da entrada da gruta, vi Luahn se ajeitar no mesmo lugar, de costas e sem intenção de vir até mim. Peguei o cinto com espada e faca e fui até ela:

— Luahn? — virou-se para me olhar, confusa. — Pode carregar isso para mim enquanto eu estiver como lobo? — assentiu e pegou o cinto.

Depois voltei à entrada da caverna, desejando o corpo lupino, transformando-me. Deitei em um canto, vigiando e observando o córrego passar com uma distante linha de árvores sobre rochas. A lua crescente estava no alto, com metade de todo o brilho do astro, e adormeci atendo aos sons.

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No dia seguinte, encontramos uma estrada, apesar do capim crescendo parecia estar frequentemente sendo usado por carroças e cavalos. Luahn disse era um caminho importante e provavelmente nos levaria para uma cidade. Fiquei preocupado, pois haveria muito mais humanos lá.

...

O filhote de porco selvagem guinchou quando peguei sua coxa com os dentes, mas sua pele rasgou e ele correu novamente. Pude sentir o gosto do seu sangue e estava faminto o suficiente para continuar atrás dele. Era uma floresta estranha, com arbustos demais e sombras, mas mantive a noção de que Luahn ainda estaria seguindo a estrada, como combinamos pouco antes de eu sair para caçar como lobo.

De repente, ouvi trotes rápidos, um cavalo pesado e provavelmente bem alimentado estava se aproximando, estranhei, pois era acompanhado de um som metálico. Então acelerei a corrida atrás de minha caça até que um zunido passou perto do meu rosto e senti um corte arder próximo no meu maxilar e pescoço, logo saltei uma flecha cravada no chão, que tinha o cheiro de homem! Sai do caminho, me embrenhando nos arbustos e ouvindo pelo menos mais duas flechas que me erraram. Fiquei enfurecido ao perceber que o cavaleiro foi atrás de minha presa enfraquecida pela minha mordida. O amaldiçoei quando parei escondido e ouvi o porco grunhir uma ultima vez, com o homem rindo vitorioso em seguida.

— Que benção! — disse o humano longe e feliz, desmontando de seu cavalo. Pude ouvir o som de metal se chocando mais claramente. — Que dia bom! Um porco bem jovem de carne macia. Almoçarei bem hoje!

Frustrado e irritado, esperei. Era apenas um homem, não ouvi ou farejei outro, cogitei se conseguiria matá-lo e recuperar minha caça, apesar dele carregar flechas afiadas.