Despertei na manhã seguinte com o mestiço andando pelo quarto com apenas a roupa de baixo. Seu corpo era esguio, pálido e quase completamente imaculado, a única coisa era a marca mais dourada e lisa em forma de estrela no dorso. Logo Luahn encontrou e vestiu seus trajes originais, que foram devolvidos limpos como Gil havia dito. Depois, enquanto colocava as coisas na mochila e pegava seu cajado do canto, falou seu plano de que devíamos vender a jóia do outro lado da cidade, de forma que Octavian não descobrisse tão logo. Por isso, partimos cedo da hospedaria.

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Ele andava silencioso pela cidade e parecia diferente, não fisicamente, mas algo nele não estava como antes.

— Está se sentindo bem? — questionei.

— Sim. E estou bem feliz agora — respondeu e distraiu-se, ficando quieto; e justamente sua mudes é que me deixava incomodado. Acreditava que estaria mais empolgado tendo seu corpo verdadeiro de volta e, no fundo, queria ouvir sua voz masculina juvenil e audaciosa novamente.

— Sabe o que lhe aconteceu? — incentivei a conversa.

— Tenho uma teoria — e ele observou as pessoas na rua, calado.

— E qual é?

— Ah, lembra-se de quando o feiticeiro queria corta-me no lombo, nos calabouços do castelo? — Perguntou, ficando mais atento a mim e desviando de algumas crianças sujas que corriam no caminho. Concordei. — Ele havia dito que eu possuía uma marca que continha a magia em mim e queria tomá-la pelo poder que acumulou nos meus anos de vida. E todo mundo sabe que a maioria, se não todos os nascidos feiticeiros, só atingem o uso máximo de sua mana quando completam dezoito anos, que é quando, teoricamente, se tem responsabilidade suficiente e o cérebro está apto a usá-la com clareza. Acredito que é por isso que mudei durante a noite, momento em que completei a idade.

— Você nasceu de noite? — Ele concordou sem nenhuma estranheza. — E sua poção de reversão não serviu de nada?

— Não sei. Pelo que aquele homem fez comigo era para ser permanente. Ele tinha um poder enorme e muita certeza do que fazia... Talvez... — estava confuso, mas um esclarecimento pareceu brilhar em sua mente de acordo com sua expressão, que chegou a um sorriso de descrença: — Talvez, eu não tivesse poder suficiente naquele dia na gruta! Assim, o feitiço reverso pegou em mim e ainda estava no prazo de ação — empurrou-me, empolgado com sua própria idéia — e quando a magia da minha marca foi liberada, o feitiço teve força suficiente para reverter!

— E se você gastou essa magia em estoque para fazer algo grande assim?

A animação dele se amenizou por um instante, mas:

— Ah! Então terá sido gasto em algo favorável, não acha? — Dei de ombros, escondendo minha opinião de que o preferia dessa forma. — Ei, não seja assim! Sei que está mais calmo por saber que Octavian não vai mais me querer. Você não é mais nenhum mistério para mim, Fiel — e riu travesso. — Posso imaginá-lo pensando: ‘ainda bem que acabou! Eu já estava prestes a matar por ciúmes! Grrr!’. — Imitou uma voz séria, quase ri e ele continuou: — ‘Esse garoto estava muito charmoso, ia perdê-lo se conquistasse alguém mais fiel que eu, e estava quase caído nos braços dele como mulher! Eu ia f...’

— Para! Já está estranho — avisei sério e segui caminhando, encarando a frente.

Luahn riu ao meu lado e depois me olhou surpreso:

— Só isso que vai dizer?! Então é verdade! Adivinhei tudinho! — ficou convencido.

— Cala a boca — disse e até desejei voltar a desconfiar de sua mudes do que ouvir suas falas com sugestões.

— Que rude! — rebateu, mas divertido.

Ignorei.

...

O dia passou mais rápido do que gostaria. A sensação de perigo cresceu e foi ficando cada vez mais pesada na medida em que o sol ia descendo no céu.

Luahn havia negociado sua jóia com um ferreiro que queria um presente para esposa, saiu com bastantes moedas e foi logo comprar as coisas que precisaria. Apesar de ele ter voltado a ser comunicativo como antes, algo nele continuava me parecendo diferente, e isso alimentava meu instinto de precaução e atenção contra ele e tudo mais.

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Após conviver todo esse tempo com o garoto, sabia que era naturalmente simpático e conquistador com quem falava, e por concluir isso é que me espantei quando ele ficou irritado, batendo as mãos sobre o tampo de uma loja de condimentos, discutindo com o vendedor que nos expulsou de lá em seguida. O mestiço saiu pisando duro e reclamando baixo, quase se esquecendo de mim. Nunca o havia visto bravo.

Depois, durante a tarde, pareceu que a fome colaborava com seu novo silencio e impaciência, por isso começamos a procurar algo para comer ao chegar a uma feira. Seguia-o a uns cinco passos atrás, observando algumas coisas que eram vendidas e desviando de pessoas, quando um homem suspeito passou entre a gente e empurro Luahn para frente, levando sua mochila embora. O mestiço grunhiu de raiva, se pondo de pé, e foi atrás dele.

Perseguimos o ladrão magro por algumas travessas sujas e sombrias até que Luahn o alcançou, pegou-o pela gola da blusa e o jogou de cara contra a parede lateral. O homem caiu de joelhos com o nariz derramando sangue e o mestiço se aproximou enraivecido, o pondo de pé forçadamente e acertando um soco no seu rosto e outro no estomago, parecendo descontar uma raiva que nunca existiu nele. Tive que puxá-lo para que parasse de agredir o sujeito.

— Maldito! Vai pagar por isso! — gritou, parecendo outra pessoa ao tentar passar por mim e encarando o homem com ódio.

— Luahn! — chamei-o e ele me olhou, parando. Então notou que estava bravo demais para aquilo, estranhando a si mesmo ao observar o homem agonizando e sangrando no chão.

— Eu não... — murmurou incerto, relaxando o corpo e olhando o punho colorido de vermelho. — Eu não faria isso — disse a si mesmo, confuso e bem mais calmo.

O homem moveu-se trôpego e saiu correndo, largando a mochila ali.

— O que foi isso?

— Eu não sei! — respondeu, fazendo uma súbita cara de preocupação e mergulhando os dedos nos cabelos loiros cumpridos, respirando rápido. —... Também não me sinto bem, Fiel.

— Vai desmaiar? — Estava mesmo o achando mais pálido depois da raiva.

— Não, não desse jeito. Digo... — encarou-me atormentado — Há uma pressão dentro de mim Fiel, e ela não é boa.

***

Eu o perdi...

Havia passado apenas uma hora, Luahn tinha decidido ir para longe das pessoas e dos guardas que vigiavam o centro de Prata Leal, e o fim da tarde chegava com as sombras se estendendo cada vez mais longas entre as construções e escurecendo todos os cantos. Então, notar que o perdi gerou um desespero e fui logo rastreá-lo.

Após uma esquina encontrei seu cajado caído sobre as pedras e o levei junto, seguindo seu rastro no ar e notando que ele não estava sozinho. A pista me levou até bem próximo do fim leste da cidade, com construções para abrigar animais e cereais e casas mais grotescas.

Quando o aroma se tornou mais nítido e, de repente, estava junto com cheiro de sangue queimado, corri em direção a um corredor escuro entre algumas casas e dei de corpo com alguém. Colidimos e logo percebi que ele ia me dar um soco na cara. Abaixei-me e usei o cajado, acertando seu joelho. Só então notei a loirisse de Luahn, se afastando mancando.

— Onde você esteve! — perguntei, segurando-o perto. Apesar de confuso, o mestiço estava com seus pertences e bem. Ele me olhou e não me respondeu, inspirava rápido e assustado, encarando-me como se decidisse se ia contar. — Fala!

— Eles me sequestraram com uma faca na barriga e me arrastaram para lá — indicou o fundo escuro do corredor. Dei um passo, tentando ver melhor os vultos no chão e ele me segurou: — Não. — Havia preocupação em seu olhar. — Não veja aquilo, eu preciso fugir daqui.

Luahn tomou o cajado de minha mão e correu para longe, em direção a uma estradinha rala que levava para o mundo selvagem. Entre investigar o que ele fez e acompanhá-lo, foi melhor segui-lo. Eu compreendia que não havia muitos sinais de vida naquele lugar e era disso que ele fugia, esquecendo-se que os lobos poderiam ser mais perigosos e quase me deixando completamente para trás.

— Pelo menos me diz o que você fez.

Olhou-me por um momento, sua expressão denunciava algum medo enquanto não parava de caminhar rápido.

— Eu devia ter ficado com Mejen. Ele iria me explicar o que está acontecendo, talvez dê para voltar para minha cidade antes que mais coisas assim aconteçam.

O rapaz ficou quieto e parecia não enxergar como a noite tornava a distante linha disforme da floresta mais escura e perigosa. Apesar da lua cheia se erguendo, sua luz não mostraria nitidamente o que existia entre as árvores.

— Mas o que você fez lá?! — Eu estava nervoso pelos súbitos silêncios refletivos do mestiço.

— E-eu... — gaguejou inquieto, parou, inspirou e prosseguiu: — Eu os eletrocutei sem meu cajado! — Não entendi e Luahn interpretou minha expressão. — Normalmente, só posso fazer algo assim tendo ele em mãos, e foi mais forte do que podia imaginar, eles acabaram... Acabaram torrados! E se eu não tiver algum controle desse excesso de energia, vai ser perigoso para todos.

Isso explicava o cheiro de sangue queimado e porque ele continuava assustado. Luahn já tinha dito que desgostava ferir alguém e saber desse potencial involuntário o afligia.

***

Como a mãe do mestiço feiticeiro havia mandado, estávamos fora da cidade grande quando a noite da primeira noite de lua cheia chegou. Luahn não desanimou sua fuga, caminhava rapidamente e, mesmo quando a estradinha se emendou as árvores e desapareceu, ele seguiu abrindo caminho em linha reta.

— Se andarmos rápido durante a noite, manteremos a distancia entre nós e os lobos — havia dito.

Muitas vezes, o garoto quase se esquecia que eu o seguia na forma humana - levando minha espada e faca no cinto - e era engolido pela escuridão da floresta a frente. Em um momento, ele caiu, tropeçando em alguma raiz, e quando fui ajudá-lo, ele me repeliu com susto, depois confessou que havia se esquecido de mim.

A floresta não ficou silenciosa por muito mais tempo...

No princípio, notei que o vento estava contra nós, depois ouvi distantes sons de galhos e arbustos remexendo e, em seguida, uma rajada de brisa ao nosso favor me fez ter certeza: lobos vinham de diferentes direções, muitos deles. Meu coração acelerou na medida em que definia os cheiros cada vez mais próximos, os passos, as patas trotando e correndo, cada detalhe confirmando a aproximação determinada e rápida de um grupo muito grande.

— Corre! — avisei alarmado, pegando a mão do mestiço e o guiando na escuridão. Na verdade, percebi logo como aquilo era inútil. Íamos morrer, porque nós não daríamos conta de, talvez, vinte lobos adultos, e estávamos indo para lugar nenhum, sem abrigo. Era uma esperança idiota que eu tinha criado de correr para fugir e continuar vivo, meu lado lobo sabia bem que não havia fuga.

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Luahn percebeu porque corríamos tão desesperadamente de repente, ao ouvir um lobo uivar, alertando sobre nossa direção para um grupo possivelmente disperso.

Em pouco tempo, estávamos ficando sem fôlego e tínhamos arranhões de galhos e tropeços.

É inútil! Eu gritava para mim mesmo em pensamentos o tempo todo, mas só queria protegê-lo, precisava fazer isso! Por mais idiota que fosse correr de lobos e simplesmente não desistir de fugir, era minha única esperança de deixá-lo bem, mesmo que meu outro lado tivesse certeza de que não íamos conseguir. E compreender que eu não poderia evitar o ataque e a morte de Luahn, pois os lobos seriam mais fortes que nós dois juntos, me deixava alucinado numa esperança sem fundamento como correr. Eu não queria aceitar perdê-lo para sempre... E daquela forma...

Descemos um declive para uma clareira, onde a luz azulada da lua cheia iluminava uma pequena parte da floresta escura. Ainda segurava firme a mão de Luahn quando parei de súbito sob a luz. Nossos corações batiam rápidos, acompanhando um ritmo acelerado de respiração. Nem mesmo eu podia enxergar através das sombras a frente, depois da clareira, de onde mais sons da movimentação dos lobos vinham.

— Não pode ser... — falei entre as respirações, concentrado em achar a direção mais segura para fugirmos. — Não podemos ter dado a volta... Estamos indo em direção a eles também.

Virei, ouvindo e observando atrás de Luahn, confirmando que havia os mesmos sons de lá. Estavam nos cercando. Desesperei-me e senti o aperto contra minha mão, olhei o rosto do mestiço e ele me encarava.

— Não temos saída, não é? — falou preocupado, mas não parecia ser consigo. Assenti, sentindo meu peito esmagar-se um pouco mais ao imaginar que os lobos feririam seu rosto e corpo, derramaria seu sangue e cessariam sua vida ali, e minha missão acabaria e eu seria incompetente. Luahn era o motivo da minha vida desde que fui salvo pela mãe dele. — Você tem que fugir — soltou minha mão bruscamente, decidido. — Eles não estão atrás de você, Fiel. Você pode sobreviver. Vá e arrume outra coisa para fazer da sua vida!

Apontou uma direção qualquer da escuridão, me enxotando como faria com um cão de rua. Mas vi sua mão tremer e encarei seu rosto. Ele continha-se para fazer-se de decidido, suas palavras não eram nada diante do que eu interpretava de sua linguagem corporal. Eu o via sofrendo um pouco mais com aquela separação do que pela morte iminente através de dezenas de dentes em sua carne e ferimentos graves, eu o via desejar que eu vivesse.

— Seu idiota! — segurei seu rosto, enxergando seus olhos castanhos úmidos, tirando mais palavras que não dizia: Luahn não queria ver-me tentar lutar para salvá-lo, não queria ver-me sendo ferido por culpa dele, não queria ver-me do lado perdedor, não queria ver-me morrer diante dele. E era exatamente o mesmo que pensava, porque sentia algo por ele que estava tentando evitar todo esse tempo. — Eu nunca vou te deixar sozinho, por mais assustado que isso possa ser para mim! Nunca.

O mestiço juntou uma mão fria sobre a minha em seu rosto e sorriu de leve, depois me puxou na direção dele, soltando seu cajado, e me beijando. Deixei-me levar naquela sensação do toque aquecido e alheio em minha boca, permitindo que ele agisse. Naqueles segundos, lentamente, aprendi a corresponder e perdi o medo, com atenção no efeito quente que esparramava em meu corpo e na explosão estranha de querê-lo mais do que estava tendo, poderia até mesmo mordê-lo naquele momento apenas para senti-lo mais. Mas, de repente, ele me empurrou nos ombros com força, afastando-me completamente.

Observei-o confuso, algo nele havia mudado de súbito e alerto meu instinto de precaução instantaneamente. Ele grunhiu, se arcado sobre a barriga e então encarou suas mãos, notei estranhas garras curvas em seus dedos e senti a descida quente de sangue em mim, analisei meus ombros e encontrei cortes aonde ele havia me empurrado.

— Luahn? — chamei-o incerto e o olhei. Encaramos-nos surpresos e sem entender o que estava acontecendo. De repente, ele grunhiu novamente de dor e tampou o rosto por um tempo, em seguida se livrou da mochila, rosnando baixo, virou-se e fugiu para as sombras da floresta, me abandonando ali.

Fiquei estagnado, ouvindo-o se afastar e invadindo a floresta noturna, indo em direção a dezenas de lobos selvagens. Sentia-me confuso e com medo do que estava acontecendo, mas forcei-me a me mover quando ouvi um uivo distante, ganidos e rosnados, e me lembrando que disse que nunca o deixaria sozinho. Eu precisava ajudá-lo como podia.

Busquei sua mochila e cajado e entrei nas sombras. Próximo de uma rocha grande, cheia de musgo e pequenas plantas, que despontava no meio dos declives da floresta, escolhi uma árvore e joguei os pertences dele em um dos galhos, depois separei a espada do cinto e lancei o mesmo para o alto também, marcando o tronco da árvore com o meu sangue, que pingava dos cortes recentes causados pelo mestiço.

Antes de ir atrás de Luahn, parei por um momento, engolindo em seco e cheio de medo do que ia encontrar. Sabia que aquela noite não ia ter um fim calmo e bom como as muitas outras passadas, mas aceitei que daria minha vida para proteger o mestiço feiticeiro o melhor possível. Coloquei a lâmina entre os dentes, inspirei coragem e citei em mente: Lobo-homem. Assumindo a minha forma original.

CONTINUA...