Violeta

Prólogo


Charles e Peter se conheciam desde o primeiro ano do fundamental. Os dois, muito tímidos, brincavam sempre afastados dos outros. Foi Charles quem deu a Peter o seu primeiro carrinho, que antes brincava somente com os que haviam na escola. Foi Charles que, sendo filho de professora, aprendeu a ler antes e a contar livros de historinhas para Peter. Era pensando em Charlie que Peter ia à escola todos os dias, e era para ele que rabiscava desenhos com frequência, buscando compensar tudo que o amigo lhe fazia.

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Em dias ensolarados, escapavam da última aula para ir brincar no campo atrás da escola. Corriam e rolavam pela grama, subiam nas árvores e, quando um súbito desejo por aventura os tomava, iam para dentro da floresta brincar de se esconder. Peter sempre encontrava os melhores esconderijos e Charlie parecia nunca se cansar de ficar na contagem, feliz ao ver o amigo orgulhoso pela vitória.

Quando já era tardinha, caminhavam de mãos dadas pela rua do colégio até a de suas casas. Moravam muito próximos um do outro, de tal modo que Peter por tantas vezes acabava dormindo na casa de Charlie. Pela manhã, a senhora Morris, mãe do garoto, os dava bom dia e trazia café da manhã na cama. Ela, que havia parado de trabalhar logo após o pequeno Charles nascer, vinha desde então se dedicando a ser uma mãe coruja em tempo integral. Já o senhor Morris era dono de uma mercearia no centrinho da cidade, e fazia questão de levar Peter para casa quando ele ficava lá até de noite, dizendo que ele era o irmãozinho de Charlie.

Entre as noites que Peter passou na casa de Charlie, dormindo lado a lado, um segredo foi confesso entre os dois. Por debaixo das roupas largas que Peter sempre usava, marcas arroxeadas se espalhavam por todo seu corpo. Não foram necessárias explicações. Charlie sempre questionara a aversão de Peter ao contato físico, quando isso vinha de qualquer um que não dele, e ali parecia estar a resposta. Os dois eram ainda muito jovens na época, 13 e 14, e Peter o fez prometer que não contaria a ninguém. Charlie foi ensinado a nunca quebrar suas promessas.

As marcas não diminuíram com o tempo, e a cada vez que Charlie as via, a inquietação lhe tomava. Longos questionários foram feitos ao passar dos meses, sobre como, e por que e quando. Peter fazia questão de desviar de assunto em suas respostas, dizendo que não doía tanto e que não importava, mas não foram poucas as vezes que o viu chorando quando pensava estar sozinho. Tornava-se claro, para Charlie, que nada fosse feito, Peter nunca se recuperaria dos abusos.

Certa vez, quando Charlie e o pai se despediam de Peter à frente de sua casa, viram um senhor abrir a porta para recebê-lo. Era o pai de Peter, mas nenhum dos dois havia o visto antes. Na verdade, por tantas vezes Morris questionou ao jovem Peter se ninguém precisaria ser avisado quando passasse a noite fora – a resposta não era mais do que um inocente “Ele não liga”. Ele não liga, repetiu consigo mesmo, lembrando das palavras do garoto. Quando tentou se aproximar para falar com o homem, ele puxou o filho pela gola da camiseta e bateu a porta. Após chamar algumas vezes, insistindo para que a abrisse, Morris desistiu e foi embora. Pouco depois, Charles foi questionado sobre a estranheza do ocorrido. O pequeno, que não sabia mentir e não mais poderia ficar parado, falou do segredo que os dois garotos guardavam. Estava certo de que aquela traição significaria o fim de sua amizade.

Poucos dias se passaram até que o pai de Peter fosse acusado de abuso contra o infante e então efetivamente preso. Charles, contudo, não descobriria ainda o quão severo fora o tratamento que Peter sofrera. A cidade com pouco mais de mil moradores não tinha nenhum orfanato ou assistência social, argumento que se mostrou suficiente persuasivo para que os Morris ganhassem o direito de adotar Peter. Para a surpresa de Charlie, o garoto não estava zangado. Ele estava, na verdade, estranhamente satisfeito. Charlie nunca questionou como ele se sentia, já que Peter nunca deu indicação de querer falar, e para ele bastava que nunca mais repousassem marcas roxas sobre o corpo do amigo.

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Os anos seguintes passaram rápido para os dois. Rápido demais, dizia Charlie, que só olhou para trás quando já estavam no colegial. As brincadeiras foram substituídas por conversas sobre os livros e músicas que gostavam, mas a amizade, no fundo, permanecia a mesma: ainda caminhavam de mãos dadas até a casa, e Peter ainda lhe dava desenhos, agora não mais rabiscados, sempre que tinha oportunidade. Charlie lhe devolvia violetas, aquelas coletadas no campo em que brincavam quando pequenos.