Violeta

I - Apesar das Consequências


À medida do sol nascer, uma névoa úmida se formava, encobrindo as ruas e as casas como se dessas fosse dona. Ofuscava a luz natural, impedindo-a acesso aos quartos e contribuindo às manhãs preguiçosas de inverno. No calor dos braços um do outro, Peter e Charles não encontravam dificuldade em permanecer deitados enquanto as horas seguiam, despercebidas. Uma batida à porta, no entanto, lembrava: era tempo de levantar.

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Charles logo se punha de pé, perdendo mais alguns minutos todas as manhãs para convencer o irmão do dever de acordar. Peter sempre acaba se dando por vencido e sempre pelo mesmo velho argumento. Após tantos anos seguindo essa rotina, o gesto lhes parecia mais como uma brincadeira mantida pela mera estética do costume do que por uma real necessidade. Rotina, entre eles, era a palavra chave. Escovavam os dentes sempre no mesmo horário, lado a lado, trocavam as roupas diretamente em frente ao armário e comiam exatamente a mesma coisa. Peter culpava Charles pela monotonia, dizendo que sua alma era velha; Charles respondia que a dele também deveria ser, já que eles faziam o mesmo. Seguiam então pelo familiar trajeto que lhes levava até à escola. Era uma caminhada silenciosa e íntima, onde, ao do toque de suas mãos, nada mais precisava ser dito. Esse gesto, no entanto, era o único elemento estranho à rotina: quando pequenos, foram repreendidos pela suposta insinuação que carregava, e não só até há algumas semanas, a pedidos insistentes de Peter, tomaram outra vez como parte do seu dia-a-dia. Ainda havia olhares, mas os irmãos seguiam a despeito.

Chegavam na escola pontualmente ao bater do primeiro sinal, indo sem desvios para a sala de aula. Não era raro que encontrassem Faith no caminho, conversando com uma de suas amigas do último ano. Faith era, assim como elas, um ano mais velha que os garotos, mas ainda estava no segundo como eles. Ela era uma garota de cabelos castanho claros e curtos que gostava de vir sem uniforme, a contragosto do diretor e às suspensões anteriores. Ela, como única amiga dos dois, estava bastante ciente do tipo de proximidade que os irmãos levavam. A essa altura, contudo, já não era mais tão grande mérito, com os boatos correndo soltos desde a última semana. Quando eles passavam, Faith aproximou-se e foi junto até a sala de história.

— Olá, garotos.

— Ei, Faith — disse Charles, no seu tom fatídico de todas as horas.

— Oi, Faith! — e Peter, espontâneo.

As aulas eram igualmente tediosas às idas e vindas, tornando o único momento memorável das tardes de segunda a sexta, o recesso. Os irmãos se sentavam num banco ao centro do pátio, por debaixo de uma grande e velha árvore que perdera suas folhas ao chegar do inverno. Lá, Charles lia em voz alta, com Peter a deitar sua cabeça ao seu ombro. Viviam pequenas aventuras juntos durante os intervalos, e há quem diga que os via sorrir genuinamente antes de retornar à classe. Tornava-se cada vez mais difícil, no entanto.

Uma bola de papel atingiu o rosto de Peter sem muita força, mas o suficiente para assustá-lo, desconcentrando do livro. Pegou-a após cair ao colo, sem entender, e procurou de onde vinha. Um pequeno grupo de garotos ria entre si, olhando de volta. Ele abriu a bolinha de papel, e lá estava mais um dos desenhos obscenos e palavras de baixo calão. Cena que se repetia dia após dia, como quem vai ao cinema esperando um filme novo e lhe dão uma Lagoa Azul.

— Charles, você me empresta uma folha? Estou ficando sem.

Charles já havia parado de ler, também tinha visto a mensagem.

— Você sabe que não adianta revidar.

— Mas não dá para ficar parado, Charlie! Se a gente não fizer nada, vai piorar. Sempre piora.

— Se nós fizermos, também irá — Charles o envolveu com o braço esquerdo — Só mais um ano até isso acabar. Eles não podem fazer nada.

— E se eles fizerem?

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— Nós vamos sobreviver. Você é forte.

Peter sorriu, aconchegando-se no abraço.

— Está bem, está bem.

Mantiveram-se naquela posição por alguns minutos, até o próximo sinal, então seguiram direto para a classe. Em todas as salas, sentavam-se lado a lado no espelho, mas não conversavam. Havia, a despeito ou em agravante ao enfado, uma grande seriedade em como cumpriam cada uma daquelas atividades tão repetitivas. Deslocados quanto pudessem ser, eram ainda os mais aplicados. Isso havia os salvado de maiores problemas até o momento.

Aos finais de tarde, retornavam das aulas sob os últimos minutos de luz solar. Momento traiçoeiro, quando não tinham escolha senão caminhar entre os outros alunos até casa. Os dois estavam bem cientes de que eram seguidos no percurso, mas confiavam que o pior não aconteceria enquanto o diretor da escola, que olhava sobre os alunos, permanecesse à saída.

Os arruaceiros seguiam atrás, vociferando todo tipo de baixaria a fim de provocá-los. Peter segurava firme a mão de Charles, contido, e o irmão o trazia para perto com a calma e gentileza que a só ele oferecia.

— Ei, ei, Petra, você não vai falar comigo só porque está com o namorado? — um garoto debochava — Eu quero te conhecer!

Num coro, eles seguiam:

Petra veado, Charllote frutinha. Charllote afeminado, Petra garotinha.

Peter um tanto enrubescia com alguns dos termos utilizados, mas Charles parecia completamente oblívio.

— Petra, o seu pai sabe que você dá para o próprio irmão? Será que eu conto para ele ou ele é pederasta também? — os garotos gargalhavam.

Charles notou que o rosto do irmão se contorcia, choroso. Algo entre aquelas palavras o machucou mais do que o normal, isso lhe deixava impaciente. Puxou-o pela mão, apertando o passo e seguindo até em casa. Trancou o portão atrás de si e a porta ao adentrar o quarto, abafando quase que inteiramente as vozes lá fora.

Peter se sentou na cama, com lágrimas escorrendo pelas bochechas. Charles havia perdido o jeito com as palavras há muito tempo. Somente um abraço dava ao amado em seus momentos de angústia.

— Charlie, o que vai acontecer quando eles descobrirem?

— Pete... — acariciou suas costas por um momento.

— Falo sério, Charlie! Você não pode simplesmente ignorar a possibilidade de mamãe e papai descobrirem — pôs as duas mãos o sobre o rosto, curvando-se — Eles nos matariam.

— Ninguém vai matar ninguém, está bem?

— Mentiroso! — ele se levantou — Você sabe o que aconteceria. Como pode simplesmente não sentir medo?

— Nós precisamos falar disso agora? — ele o pegou pela mão.

— Sim, Charlie, nós precisamos. Agora. Eu não aguento mais isso todo dia, e eu... eu não suporto imaginar o que aconteceria com você.

— E o que você sugere, Peter? Não andarmos de mãos dadas? Fingirmos que a gente não... você sabe?

— “Você sabe”?

Um breve silêncio seguiu.

— Desculpe, eu sei que não tenho jeito para isso. Namoramos.

— É, eu entendo a confusão... acho que a gente nunca usou esse termo.

— Nós não precisamos. Não basta que continuemos sendo como sempre fomos?

— Ninguém parece satisfeito com o jeito que nós somos.

Nós estamos, Pete. O que mais importa?

Peter andou em direção à porta. Permaneceu de costas, em silêncio por um momento.

— Charles, por que nós lemos histórias?

— O que isso tem a ver com qualquer coisa?

— Nós lemos histórias juntos desde criança. Você lê, eu ouço. Você sabe a razão, você já me disse a razão.

Charles suspirou.

— Porque elas representam sonhos que nós temos... não é?

— Você não sabe? — Virou-se na direção dele — Essa frase é sua, Charles. Esses sonhos são seus, eu quis apenas fazer parte. E não só as histórias... tem tanto que você ainda quer fazer! Você quer sair dessa cidade, você quer ser escritor! Eu só não aguentaria que alguém te impedisse de fazer isso por alguma razão.

— Não se atreva! — levantou-se — Não se atreva a se excluir de nada disso. Tudo o que nós conversamos desde pequenos é nosso, não meu. Não há nada que eu queira sem você. E se for necessário escolher, eu escolho você.

Peter olhou para ele por um longo momento, quase sorrindo. As lágrimas já paravam.

— Eu espero mesmo que você nunca tenha de escolher, porque... — silêncio — Deixe para lá. Obrigado, Charlie.

— Pelo quê?

— Por se importar.

— Não seja bobo.

Os dois sorriram. Charles seguiu:

— Eu estava pensando...

— “...amanhã é sábado”. Sim, eu quero que você leia para mim. Até de madrugada.

O sorriso de Charlie assumia um formato unilateral, zombeteiro.

— Na minha cama?

— Do que você está falando? Eu por acaso uso a minha? — riram.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.