À Espreita

Devaneios


No dia seguinte não consegui me concentrar totalmente no trabalho, então comemorei internamente quando finalizei mais um dia do Cidade do Povo. Olhava distraidamente a paisagem pela janela do carro, alheio à conversa que Hernandes e García tinham sentados nos bancos da frente, e não reparei que estávamos parados em frente ao prédio onde eu morava até ouvir o motorista do dia me chamar algumas vezes.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— O senhor está distraído hoje, patrão – comentou García. – Aconteceu alguma coisa?

— Fora ter encontrado aquele maníaco tão perto de minha namorada, discutindo e encostando nela? Felizmente não. – Os dois olharam para mim com uma expressão compreensiva e um tanto triste. Suspirei. – Tem muita coisa acontecendo. Eu não esperava ter de lidar com algo desse tipo, há muito para se pensar.

— Tente relaxar um pouco essa tarde – me aconselhou Hernandes quando abri a porta do carro. – Sei que o senhor tem todos os motivos para estar ansioso, mas ficar preocupado a todo momento não resolve muita coisa, pelo contrário. Recupere suas energias para pôr a cabeça no lugar.

Respondi o cumprimento de Manoel quando passei pela portaria. Hernandes estava certo, eu precisava organizar meus pensamentos.

Abri a porta do meu apartamento, e a visão da sala bem organizada me transmitiu uma sensação de tranquilidade. Saber que ao menos alguma coisa estava em ordem na minha vida teve esse efeito. Meu apartamento. Que meu “fã” observava.

Depois de um banho, deitei em minha cama e fiquei a olhar o teto. Era uma ótima lâmpada aquela, mas estava desligada. A luz do sol entrava pela janela de vidro, deixei as cortinas abertas. Talvez um pouco de luz fizesse bem, me ajudasse a tirar pensamentos negativos da cabeça ou ao menos os suavizasse. Ficar amedrontado ou paranoico não faria com que eu entendesse o problema. Se é que tinha algo para se entender. Poderia ser apenas um fã que gostasse de mim da maneira errada, sendo possessivo. Isso explicaria ele ter discutido com minha namorada, não querer ninguém perto de mim além dele. Isso também explica a perseguição que sofro. Mas o fato de ele não se aproximar de mim para falar qualquer coisa não se encaixava nessa história. Quando nos vimos pela primeira vez, fui eu quem tomou a iniciativa de se aproximar e conversar. Seria timidez?

Ou talvez ele não queira me fazer mal, só evitar que alguém faça a mim. Por gostar muito de mim, talvez quisesse me proteger, e aí se encaixaria a perseguição, pra não me deixar correr riscos em nenhum momento. Vai ver ele achou que Camila me fazia mal, e naquela hora em que eu os encontrei ele dizia para minha namorada se afastar de mim. Bem, ela não é de demonstrar muito os sentimentos, mas não é uma pessoa ruim, e isso não a fazia parecer ruim.

A dor em meu estômago fez com que eu interrompesse meus pensamentos. Ninguém é produtivo de barriga vazia. Quando abri a geladeira, encontrei as sobras do jantar que eu tinha comido na noite anterior. Pus tudo num prato e coloquei no micro-ondas. Ah, que invenção maravilhosa.

•••

Quanto mais eu pensava sobre o assunto, mais confuso me sentia. Em minha mente, pensamentos e teorias formavam nós uns nos outros, e no final eu terminei com mais dúvidas do que quando comecei a refletir sobre isso, algumas coisas não se encaixavam.

Sentado no sofá, passei os olhos pelo ambiente e suspirei, percebendo que não iria chegar a uma conclusão do assunto, ao menos não sozinho. Ao mesmo tempo, preocupações sobre o estado de Camila me apertavam o peito. Não havia conseguido contatá-la desde que ela saiu de meu apartamento na tarde anterior, viemos aqui depois do ocorrido.

Mercedes me garantiu que ela estava em segurança, mas eu sentia a necessidade de ouvi-la dizer isso. Também me interessava saber seu estado emocional, toda aquela situação a deixou muito estressada e assustada.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Ao pensar nisso, o aperto em meu peito recebeu a companhia de um peso nas costas. Eu me senti impotente. Não importava minha vontade e esforços para proteger minha amada, ele sempre conseguia uma maneira de se aproximar de nós. Mesmo que eu tenha contratado pessoas para fazer nossa segurança, ele estava lá. Por quanto tempo ele estivera a fazer isso? Por quanto tempo acreditei estar seguro quando o perigo estava debaixo do meu nariz? Quanto tempo Camila e eu teríamos até que ele tentasse fazer algo mais sério?

Enquanto a realidade que eu passei a perceber me atormentava, vi um lindo anel de prata decorado com uma pedra preta em cima do rack. A joia delicada brilhava à luz do sol que entrava pela janela e atraía facilmente minha atenção, como se pedisse para ser usado. Como se quisesse voltar para o longo e esguio dedo de sua dona.

Aquele era o anel de compromisso que eu havia dado à Camila quando começamos nosso relacionamento.

Lembro-me bem dos seus olhos naquele dia, que brilhavam tanto quanto esta pedra quando a pedi em namoro entregando o anel. Agora ele estava lá, começando a ser envolvido por uma fina camada de poeira.

Sabia que era um objeto tão valioso para ela quanto era para mim, então não pude simplesmente deixá-lo lá.

— Indo ver a namorada, Heitor? – perguntou-me Manoel quando passei pela portaria, finalmente ele havia parado de me chamar de senhor.

— Dessa vez, sim – confirmei com um sorriso. – Ela esqueceu seu anel no meu apartamento, estou indo devolver. – Ouvimos então o som da buzina de um carro, que me indicou que meus seguranças haviam chegado. Eu sentia certa falta de dirigir, mas García me impedia com o argumento de que eu estava com coisas demais na cabeça para prestar atenção na estrada.

— Até mais tarde!

Acenei para meus dois seguranças, que ficaram mais tranquilos por causa da minha mudança de expressão. Como eu não ficaria feliz? Finalmente consegui um motivo para visitar Camila! Foram raras as vezes em que ela permitiu que eu a visitasse, e naquele momento, com o problema que enfrentávamos, a situação piorava.

Segurando firmemente o anel entre as mãos, focava a maior parte de minha atenção para a paisagem dos locais onde passávamos no caminho até Jardim Nova Lima, o bairro onde Camila morava. O cenário ia mudando gradativamente conforme nos afastávamos do centro da cidade, e logo a diferença passou a se tornar gritante. Suspirei em um esforço para não desviar a vista, eu precisava olhar para todo o cenário. O odor vindo de alguns bueiros entupidos mostrava o descaso da companhia de esgotos com aquela região. Em semanas anteriores eu havia visto os moradores reclamando da situação no jornal de um colega de trabalho durante a manhã, e pelo visto nada fora feito a respeito do assunto.

Uma ponta de esperança surgiu em mim quando o agradável som do rio a correr encheu meus ouvidos.

García guiava o carro em direção à ponte, finalmente reparada. Nem tudo estava perdido.

Depois que nós três descemos o carro, percebi que alguns curiosos começaram a surgir nas janelas e portas da rua onde eu estava. Sem demorar muito, posicionei-me à frente de uma pequena casa branca e com o nó do dedo médio bati na porta, mantendo o anel seguro na mesma mão que usei.