À Espreita

Semblante monocromático e confusão de cores


— Rocha ou Mercedes disse algo sobre Camila ter saído? — perguntei para nenhum dos seguranças em específico, cruzando os braços enquanto olhava para a porta de madeira carunchada. Céus, que lugar era esse em que Camila vivia?

— Nenhum dos dois nos informou de nada, patrão — disse Garcia, observando a mim, enquanto Hernandes ficava atento aos arredores.

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Olhei para o lado, vendo que uma senhora nos examinava com os olhos, estando apoiada no batente da janela da casa vizinha à de Camila. Ela estava ali desde que chegamos. Parecia que todos estavam sempre me seguindo, como se sempre houvesse um par de olhos a me…

Um rangido seco e a porta foi aberta, nos revelando a figura de Camila, com os cabelos pretos presos em um coque, uma camisa cinza — ou talvez fosse outra cor, tendo desbotado através do tempo — junto de legging preta e um chinelo de dedo. Seus olhos eram adornados por olheiras fracas. Será que ela estava tendo problemas para dormir?

Seus olhos escuros se arregalaram e ela piscou por alguns segundos, talvez se acostumando com a claridade da luz do sol.

— Heitor? O que você está fazendo aqui? — Ela começou a olhar pros lados, os olhos varrendo todo o cenário. — Os vizinhos…

— Não é a primeira vez que eles me veem pelo bairro…

— Eu sei! — ela sibilou baixo, quase se assemelhando a um chiado. — Mas ninguém sabia que a gente… — ela deixou as palavras no ar e eu franzi as sobrancelhas. — Você sabe, eu…

— Eu sei, querida. — Aproximei-me dela e Camila se apoiou na porta que segurava, tirando um pouco a minha visão de dentro da casa. — Vim lhe devolver isso. — Estendi a mão e abri-a, mostrando a joia delicada em minha palma.

Camila pegou o anel em um ímpeto, colocando logo de volta no dedo.

— Onde você encontrou? — respondi sua pergunta, enquanto ela admirava a joia no dedo anelar. — Obrigada, querido. — Camila deu-me um beijo breve, permanecendo próxima a mim após isso. — Estava começando a sentir falta do meu anel.

— Não sabia que você o tirava do dedo — disse, sem pensar, uma dúvida de minha mente, observando seus olhos escuros, que adquiriram um tom de espanto em poucos segundos.

— Eu costumo tirar para pintar, não quero sujar uma joia cara dessas — respondeu minha pergunta, porém, isso não explicava o porquê dela tê-lo tirado naquele dia. Mas isso não era de importância para mim.

— Você está ocupada hoje? — perguntei, pensando em convidar-lhe para algo, sendo sábado, dia em que ela não vendia seus quadros.

— Estou adiantando algumas pinturas pra semana que vem. Tive um surto de criatividade hoje. — Ela olhou para trás de mim, talvez finalmente vendo os seguranças. — Os vizinhos estão prestando ainda mais atenção com esses dois atrás de você. — Apontou para os homens de preto e voltou a segurar a porta de sua casa.

Segundos de silêncio e ela parecia prestes a se despedir de mim e voltar lentamente para dentro de seu pequeno refúgio artístico.

— Posso observar você pintar? — As sobrancelhas de Camila quase se uniram ao pedido, parecendo confusa. — Apenas desejava passar algum tempo com você. — As sobrancelhas dela, além de quase unidas, se ergueram até o máximo que conseguiam. — Nós estamos tão estressados com toda essa situação — soltei em um desabafo, ainda sufocado pela pressão diária. De fato, o problema não era aquela gravata.

Camila pareceu ponderar por alguns instantes demorados, enquanto tamborilava as unhas com esmalte preto sobre a madeira carcomida da porta.

— Entre. — Abriu um espaço maior, para que eu passasse. — Eu só vou terminar o meu quadro e me arrumar. Depois a gente vai pra algum lugar.

Avancei e os homens comigo também deram um passo à frente.

— Creio que não precise disso, rapazes. Apenas vigiem os arredores — orientei-os, passando com o olhar a mensagem principal: fiquem de olho caso ele apareça.

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Entrei com Camila parecendo impaciente e ela finalmente fechou a porta.

Parei, observando sua casa. Móveis simples, parecendo de segunda mão, compunham o ambiente. As paredes brancas eram adornadas por quadros aqui e ali, entretanto, sem uma fotografia sequer. A decoração era mínima, com apenas dois vasos de flores, uma TV de tubo e um sofá bege de três lugares, fechando assim a imagem daquela sala.

— Pode ficar à vontade, querido. — Ela pegou o controle remoto do sofá e ligou a TV, colocando em um programa qualquer.

— Você colocou na concorrência. — Camila devolveu-me um olhar estranho como resposta. Minhas piadas eram horríveis, realmente.

O silêncio baixou entre nós naquele instante e ela se afastou, indo para outro canto da casa.

— Posso te observar pintar?

— Eu prefiro trabalhar sozinha, Heitor — Camila respondeu-me quase no automático. Encaramo-nos por mais alguns segundos. — Venha. Eu só preciso de silêncio e prefiro que não me observe o tempo todo.

Assenti e segui-a em silêncio. Entramos na última porta do pequeno corredor, sendo aquela a única porta aberta.

Parei, observando aquele cômodo abarrotado de cores e tintas.

Camila, por fora, aparentava ser monocromática, com suas roupas sempre variando na cartela de preto e branco, a maquiagem pesada e o cabelo escuro ocultando o rosto. Ali, eu vi que ela também era cores, entretanto, apenas escondia isso, mostrando para o mundo somente um lado de si. Ali, rodeado por quadros e mais quadros de todas as cores, vi que Camila era além disso. Simples, com seu visual relaxado como eu nunca havia visto antes. Desprovida de qualquer maquiagem, sendo aquela a primeira vez que eu via seu rosto limpo de qualquer pintura. Em contraponto, ela pintava ferozmente a tela em sua frente. Para mim, formava uma imagem sem sentido. Apenas ela talvez soubesse o que aquilo queria dizer. Ela se entendia e parecia em casa ali, e isso era o que bastava.

Camila se afastou do quadro, observando sua obra. Aproximei-me dela, sendo o mais silencioso possível.

— É lindo, meu amor — sussurrei para ele e Camila sobressaltou-se, talvez tendo esquecido da minha presença ali.

— Acho que está bom. Esperava mais dele.

— Para mim está ótimo. Você é talentosíssima. — Dei um beijo no topo de sua cabeça e ela se afastou de mim.

— Cuidado para não se sujar com o meu pincel — advertiu e mergulhou o pincel em um copo com água. — Vou me arrumar para podermos sair. Me espera na sala?

Assenti com a cabeça e ela me deu um de seus raros sorrisos abertos.

Voltei para o corredor, observando as portas fechadas dos outros quartos.

Sentei-me no sofá, observando a TV que permanecia ligada. A temida música do plantão de notícias saiu do aparelho.

— Governador do Distrito Federal se entrega à polícia… — a jornalista anunciou, junto de um semblante sério e uma voz firme.

— Quer algo para comer, querido? — A voz de Camila perguntou-me da cozinha.

— Apenas uma água está bem — afirmei para ela, voltando os olhos para a tela, que mostrava imagens do homem sendo preso.

Camila apareceu, carregando um copo na mão. Ofereceu-me e comecei a bebê-lo.

— Isso de polícia me lembra uma coisa. — Terminei com a água e entreguei o copo a ela. — Nós não fomos à delegacia para você fazer o retrato falado, desde aquele dia… — Deixei a frase morrer, pois ambos sabíamos do que eu falava.

Camila tomou o copo de minha mão, apertando o vidro, ao ponto de quase machucar a própria mão com aquilo.

— Eu disse que não vou fazer isso, Heitor. — Lançou-me um olhar firme, causando-me certo temor com aqueles olhos escuros. — E-eu não me sinto bem em delegacias. — O copo começou a estremecer em sua mão. — P-por favor, não insista, eu não quero.

— Tudo bem, tudo bem. — Segurei sua mão com a minha, fazendo com que o copo parasse de tremer. — Sugeri isso porque é o melhor a se fazer. Mas tudo bem se você não se sentir à vontade. — Envolvi a lateral de seu rosto com minha mão livre. — Apenas desejo que você fique segura. Não quero que ele volte…

— Eu estou bem, Heitor. Eu não o vi mais depois daquele dia. — Sua voz voltou ao tom habitual, porém sua mão permanecia trêmula. — Está tudo bem, tudo bem. — Pareceu afirmar mais para si mesma, enquanto desviava os olhos dos meus.

— Por que não vai se arrumar enquanto lavo esse copo para você? Irá nos fazer bem uma saída para distrair. — Ela assentiu e trocamos um breve beijo.

Camila sumiu em uma das portas e eu levei o copo, voltando em seguida para o sofá, vendo que uma reprise de alguma novela tinha tomado o lugar do plantão.

Saímos da casa e Camila trancou a porta. Fiz sinal para os seguranças, que estavam sentados a alguns metros longe da residência, e eles se dirigiram ao carro.

— Para onde vamos? — Camila perguntou e nos aproximamos do veículo. Abri a porta para ela.

— Vamos ver um pouco mais de arte.

Camila entrou e sorriu. Fechei a porta e permiti-me observar os arredores brevemente. Nada suspeito, apenas vizinhos curiosos.

A vizinha de Camila continuava na janela. Lançou-me um olhar de gelar a espinha e finalmente entrei no carro, saindo daqueles olhares invasivos e permitindo-me finalmente relaxar.