Iguais, porém opostos

Como problema e solução


Bo Ra nunca, em ambas as suas quase duas décadas de vida, precisara cuidar de uma criança. É uma verdade praticamente universal que a grande maioria dos adolescentes que precisam fazê-lo, seja por gosto ou não, acabam o fazendo por terem irmãos mais novos ou, ainda, sobrinhos e primos menores; e a Kang não se enquadrava em nenhum desses casos. Na verdade, não que soubesse. Talvez, seu irmão já tivesse filhos, ou pelo menos um bebê e estivesse no construindo uma família. Teria primos? Ela também não sabia e, sendo honesta consigo mesma, não tinha certeza se gostaria de descobrir.

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A verdade era que já estava vivendo uma experiência parecida demais com a de uma babá para ficar se perguntando tais coisas — ainda com o agravante de que a criança da qual cuidava, na verdade, já havia atingido uma idade avançada o suficiente para saber muito bem como debater.

— Eu deveria ter gravado a voz do Dr. Kim lhe dizendo para repousar. — Bo Ra praticamente acusou em um resmungo, descendo os degraus com a certeza de quem encontraria sua avó tentando esgueirar-se silenciosamente até a porta da frente. — Talvez a senhora entendesse se eu repetisse a gravação algumas muitas vezes.

No fim das contas, a garota não poderia conhecer melhor sua avó. Prestes a alcançar a maçaneta da porta, trajando seu uniforme de governanta azul marinho e com uma expressão de quem fora pega no flagra pela polícia, a senhora Kang estava prestes a sair para o trabalho. Ainda de pijamas, Bo Ra posicionou-se no meio da sala de estar e levou ambas as mãos até sua cintura, exatamente como costumava fazer quando era criança e estava prestes a cobrar alguma promessa da mais velha.

— Minha querida, o Dr. Kim me pareceu uma pessoa boa e sensata, é verdade. Contudo, ele ainda não percorreu nem metade da minha estrada. — a avó explicou, gesticulando calmamente. — Eu conheço o meu corpo mais do que bem, sei que já estou boa.

Se a pessoa com quem estivesse argumentando não fosse sua própria avó, Bo Ra, provavelmente, já teria se irritado àquela altura do campeonato. Todavia, ela caminhou na direção da mais velha até ficar bem próxima da mesma e, docemente, segurou seu rosto com ambas as mãos jovens e macias. As manchas da idade relativamente avançada já começavam a surgir, principalmente ao redor dos seus olhos de íris escuras, mas nada seria capaz de torná-la menos bonita e delicada. Bo Ra sorriu de um jeito terno, fitando os traços cansados da mais velha e perguntando-se quantos obstáculos ela já não teria atravessado completamente sozinha — em sua grande maioria por causa da própria neta.

Bo Ra era tão grata, que ainda não havia aprendido como expressá-lo em voz alta corretamente e por isso estava o tentando com ações.

— Por favor, vovó, me deixe cuidar de você dessa vez. — a mais nova pediu, o sorriso carinhoso desaparecendo gradativamente de seus lábios rosados. — Se eu não puder cuidar da única família que tenho, o que devo fazer com a minha vida?

A Kang mais velha não soube esconder o quão tocada sentiu-se ao ouvir a neta dizer aquelas palavras, felizmente para a tranquilidade de Bo Ra. Naquele momento, a jovem teve a certeza de que sua avó não teria argumentos contra a mais pura verdade e, logo, as duas já estavam caminhando juntas até o andar de cima. Bo Ra ajeitou os travesseiros sobre a cama da mais velha para que a mesma pudesse se deitar confortavelmente, e assim ela o fez.

— Bo Ra, eu posso lhe pedir apenas um favor? — perguntou, já deitada sobre o colchão macio e com roupas mais confortáveis. A neta assentiu positivamente com a cabeça. — Eu sei que você não gosta da família Kim, mas você poderia, por favor, ir até a mansão checar algumas coisas?

Durante um momento, ainda que ela estivesse disposta a não negar nada que sua avó lhe pedisse, Bo Ra hesitou. Era verdade que ela realmente não gostava daquela casa, e todos naquela família já haviam notado isso, ainda que não soubesse ao certo o porquê — algo apenas tornava todo o ambiente desconfortável e pesado demais. Contudo, era sábado de manhã, o que significava que o patriarca da família Kim estaria fora a trabalho, como de costume, a matriarca em algum spa e Taehyung, como fazia quase todos os fins de semana, não estaria planejando sair do confortável abrigo que era o seu quarto nem tão cedo; ou seja, se o problema de Bo Ra com a mansão fosse os seus moradores, nenhum deles estaria por perto e ela poderia, com sorte, entrar e sair sem ser notada.

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Respirou fundo. Prometera que cuidaria de sua avó.

—Claro, vovó. — respondeu, por fim. — Só me diga o que eu tenho que fazer e volte a descansar, que eu o farei.

A lista de afazeres acabara saindo consideravelmente maior do que Bo Ra esperava, contudo, o olhar mais calmo de sua avó quando ela prometeu que daria o melhor de si fez com que ela se apressasse para cumpri-la logo. A mais velha valorizava tanto aquele trabalho e a ajuda da família Kim, que Bo Ra sabia como deveria estar sendo um enorme peso para ela não poder mais cumpri-lo tão bem quanto o fazia há alguns anos. Além do desgaste físico, havia também o emocional, que algumas vezes poderia ser muito mais debilitante e frustrante do que o primeiro.

Por isso, a Kang mais nova apressou-se em trocar suas roupas e partir na direção da casa dos Kim, ainda que tudo o que precisasse fazer para chegar até a entrada de serviço da mansão fosse atravessar o gramado sempre bem cuidado ao redor da piscina. Já de frente para a discreta porta de metal — talvez uma das pouquíssimas coisas que não chamasse atenção há metros de distância naquela casa, um fruto do gosto peculiar da senhora Kim para decorações e outras coisas — ela esperava firmemente que a família tivesse mantido sua rotina de finais de semana e, consequentemente, não encontrasse nenhum Kim pelo caminho.

Ainda do lado de fora, os traços faciais quase sempre rígidos de Taehyung surgiram em sua mente sem a sua permissão. Depois de tudo que o garoto fizera nos últimos dias, ela estaria sendo injusta em querer evitá-lo a todo custo, como costumava fazer antes? Claro, ações aparentemente empáticas de uma semana não anulavam todo o desgaste que ele sempre tivera o nítido prazer de provocar na vida dela, mas, ainda assim, ela sentia como se pudessem. Talvez, a sua mais nova revisão de preconceitos estivesse indo longe demais.

Não havia a menor possibilidade de rever sua relação com Taehyung.

Sentiu-se estúpida após tal pensamento e, de algum modo, como se estivesse regredindo na direção da antiga Bo Ra. As mudanças em sua personalidade e no seu jeito de ver o mundo ao seu redor ainda não eram exatamente radicais, contudo, a versão mais nova e sentimental de Bo Ra já vinha mostrando indícios de que estava disposta a dar a Kim Taehyung uma chance de mostrar-se menos pior do que aquele que ela conhecia. Só lhe restava descobrir se aquela era uma decisão sensata. Ainda era difícil conseguir equilibrar as duas versões de si própria, o que constantemente lhe frustrava exatamente como naquele momento.

— Está trancada?

A voz grave surpreendeu uma Bo Ra perdida em seus próprios pensamentos, ao ponto da garota não conseguir evitar virar bruscamente para trás, na direção de onde aquela pergunta viera. Os cabelos cinzentos e levemente bagunçados de Taehyung produziam uma sombra entrecortada no rosto de Bo Ra, que ainda não havia se recuperado do susto. O garoto franziu o cenho, perguntando-se o porquê de tamanho espanto diante de uma pergunta tão simples.

— O que? — Bo Ra indagou de volta, dando-se conta de que sequer havia entendido o que ele perguntara.

— Eu perguntei se a porta está trancada. — ele reforçou. — Você está parada diante dela há tanto tempo, que eu achei que estivesse tentando entrar e algo lhe impedia.

Mentalmente, Bo Ra amaldiçoou sua mania de perder-se no fluxo de sua própria consciência. Pigarreou, imaginando há quanto tempo ela estaria enraizada diante de uma porta de metal e, para piorar, desde quando Taehyung havia notado aquela cena.

— Onde você estava? — ela perguntou, inconscientemente ignorando a possibilidade de lhe responder um simples "não está trancada".

Não agradava em nada ao gosto de Taehyung quando as pessoas respondiam seus questionamento com outras interrogações, contudo, aquela conversa lhe parecia tão repentina e ainda sem nexo, que ele resolveu ignorar aquele acontecimento. Com a cabeça, apontou na direção da piscina, que reluzia a luz do Sol da manhã logo atrás dele.

— Eu estava indo molhar os pés. — ele respondeu, simplesmente.

Na verdade, aquele não era um hábito muito comum e Taehyung sabia disso, mas também tinha a sorte de não precisar explicá-lo para Bo Ra. A garota crescera sabendo que, quando o Kim precisava pensar e espairecer, ele caminhava até a piscina, sentava-se sobre a borda e mergulhava seus pés descalços na água, não importando a temperatura da mesma. Estranhamente, era a única coisa capaz de relaxá-lo. Ela nunca achou aquela mania normal, mas também nunca o julgou por isso — era uma das únicas coisas sobre ele que a Kang incrivelmente sempre entendera.

— Sua avó está bem? — ele perguntou, optando por ignorar a conversa que tiveram até aquele momento e também o fato de que estavam na área de serviço da mansão.

— Sim. Ela está descansando. — na verdade, a própria família Kim havia concedido alguns dias de folga para a idosa, ainda que ela tentasse ignorá-los. — É por isso que eu estou aqui. Ela me pediu para checar algumas coisas.

Taehyung sacudiu a cabeça e não conseguiu evitar um riso descentre, o que confundiu Bo Ra. Mesmo que, nos últimos dias ela tivesse visto Taehyung sorrir mais do que em toda sua vida, aqueles momentos ainda eram escassos e raros e, sempre que aconteciam, surpreendiam a garota.

Na verdade, ele tinha um sorriso bonito de se olhar.

— Ela não deixa de ser cuidadosa nem quando é quem está precisando de cuidados. — disse, remoto. Voltou a encarar Bo Ra, que ainda estava tentando entendê-lo. — Vamos entrar, então.

— Espera. — ela o interrompeu mais repentinamente do que esperava, visto que ele já dava um passo a mais para frente. — Você não estava indo para a piscina?

Sendo franca, ela ainda se negava a dizer que ele estava indo molhar os pés. Enquanto tentava encontrar um jeito mais sutil de perguntar, Taehyung achou engraçado o modo como ela evitou ser direta. Encarou a garota, percebendo que tinha duas opções: sentar-se à beira da piscina para pensar com mais clareza, como pretendia fazer quando levantou-se naquela manhã e seu quarto lhe pareceu estranhamente sufocante, ou simplesmente seguir a causa da desordem que estava sua mente de volta para o interior da mansão. Ele sabia que a primeira opção era a mais segura, contudo, seu subconsciente achava a confusão de Bo Ra atrativa demais para ser ignorada.

Por isso, se estava disposto a entender aquele problema, que fosse mergulhando de cabeça no mesmo.

— Eu posso fazer isso depois. — respondeu, dando de ombros. — A porta está trancada ou não?

E lá estavam eles, de volta àquela pergunta que fazia Bo Ra se lembrar da facilidade com a qual perdia-se no seu próprio mundo.

— Não.

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Ela gostaria de ter sido mais rápida, mas seu campo de visão foi tomado pela luz do Sol quando Taehyung se movimentou. Ele facilmente contornou o corpo parado de Bo Ra e, mais uma vez naquele curto dia, para a surpresa da garota, girou a maçaneta da porta pela qual apenas funcionários sempre entravam e saiam e simplesmente entrou na frente. Bo Ra não soube explicar o porquê, mas naquele momento percebeu que, desde o começo daquela conversa, Taehyung exalava uma perigosa essência de problemas à vista.

Não queria julgá-lo, mas eram raras as vezes nas quais seu instinto falhava.

Quando fechou a porta de metal atrás de si, ela esperou que aquela fosse uma. Agora, estavam ambos na cozinha desabitada e Taehyung olhava para o ambiente extremamente limpo como se tivesse o vendo pela primeira vez.

— Acho que faz algum tempo desde a última vez que estive aqui. — afirmou ele, correndo os dedos compridos pela bancada de mármore como se tentasse resgatar alguma memória da pedra.

Na verdade, quando não preferia fazer suas refeições em seu próprio quarto, as mesmas eram servidas na sala de jantar. Se tinha uma vontade incontrolável de comer algo, o que era raro, bastava pedir a uma das empregadas e ela logo traria. Não precisava ter contato com certos lugares da casa, por exemplo a própria cozinha, o que acabava gerando aquele tipo de estranhamento da parte dele — a última vez que estivera naquele cômodo fora para pedir um chocolate quente para a avó de Bo Ra, o que fazia por volta de uma década.

— Você não conhece a própria cozinha? — ela perguntou um tanto abismada, ainda que já devesse esperar algo daquele tipo vindo de Taehyung. Ele deu de ombros, fazendo com que ela entendesse que ele, provavelmente, nunca havia precisado preparar a própria comida. — Nossa, acho que eu morreria se não pudesse preparar meu próprio ramen. — concluiu, mais para si mesma do que na tentativa de continuar a conversa.

— Eu não como ramen. — ele rebateu. — Não gosto do tempero que vem naqueles saquinhos.

— O que?! — Taehyung deveria ser o único coreano que não comia ramen ou, pelo menos, era o primeiro que Bo Ra conhecia. — Você está brincando, não está?

O garoto não entendeu o espanto de Bo Ra por ele não gosta de um saco de tempero amarelado e industrializado e, por isso, balançou a cabeça num sinal negativo.

— Mas você nunca tentou prepará-lo com outros ingredientes, sem precisar colocar o tempero? — ela não conseguiu evitar a insistência. Quando percebeu o que havia acabado de sair de sua boca, teve vontade de bater na própria testa. — O que diabos eu estou dizendo? É óbvio que não.

— O que você quer dizer com isso? — ele indagou, nitidamente ofendido.

Descaradamente, Bo Ra permitiu-se rir do modo como Taehyung parecia uma criança com todo um mundo para desbravar, o que ela sabia que lhe deixaria duas vezes mais ofendido e, mesmo assim, não foi o suficiente para pará-la.

— Eu quis dizer que você não sabe o que está perdendo nessa vida. — ela afirmou no mesmo instante, ainda rindo.

Taehyung teria se contido — deveria, na verdade, pois estava nitidamente prestes a meter-se em mais um problema ao invés de resolver um — contudo, foi incapaz de fazê-lo.

— Então me mostre.

Bo Ra não soube dizer se fora por causa da voz grave do garoto, que vivia a colocar medo em outros até mesmo mais velhos do que ele, ou ainda pelo pedido repentino, mas o mesmo simplesmente a fez paralisar sua risada no meio. Ela o encarou, repentinamente desconcertada demais para saber o que fazer com seus braços e sua súbita vontade de escondê-los atrás de seu tronco.

— O que? — perguntou, já que aquela fora a única coisa relativamente produtiva que sua mente conseguira pensar.

E, então, Taehyung abriu um pequeno sorriso lateral. Não um daqueles sarcásticos e maldosos que ele costumava exibir para ela, como fizera ao vê-la encharcada na festa de Yoongi, mas um sorriso que lhe pareceu sincero, involuntário e, até mesmo, um tanto travesso. Bo Ra sentiu como se precisasse ficar mais alguns segundos naquele momento para conseguir processá-lo, contudo, Taehyung retomou a fala.

— Com certeza tem o macarrão na dispensa e você poderá usar os ingredientes que bem quiser. — Taehyung afirmou, dando um par de passos para frente. Eles estavam em lados opostos da larga bancada de mármore, no centro da cozinha, e aquele era provavelmente o único motivo pelo qual ainda mantinham a distância que sempre consideraram a mais segura um do outro. — Você está livre para me mostrar o que estou perdendo.

Bo Ra piscou algumas vezes.

— Você está sugerindo que eu cozinhe para você? — ela tentou dar a ele uma chance de negar aquela ideia maluca, o que ele divertidamente não o fez. — E por que eu faria isso?

Taehyung riu, mais uma vez. Agora, um resquício do seu sarcasmos fazia-se presente, um resultado da rispidez na voz de Bo Ra. Era como se eles estivessem de volta aos velhos tempos, mas sem todo aquele ódio que os cercavam.

Era, finalmente, divertido, ainda que nenhum dos dois estivesse disposto a admitir tal barbaridade.

— Porque você jamais perderia a oportunidade de provar que eu estou errado.

Aquela frase. Taehyung sabia muito bem o que conseguiria com a mesma, ainda que Bo Ra soubesse que poderia estar percorrendo uma estrada problemática e sem volta no segundo que a ouviu.

Mesmo assim, ela não pensou duas vezes antes de seguir na direção da enorme dispensa da família sem dizer sequer uma palavra.

Não fugia de desafios, especialmente quando sabia que estava prestes a ganhar a um.

***

— Eu quero ouvir você dizer. — Bo Ra afirmava, com uma postura descaradamente vitoriosa. — Vamos, Kim Taehyung!

O garoto a fitou, segurando-se para não devorar a tigela de macarrão diante dele, ainda que saísse fumaça da mesma e provavelmente fosse queimar a boca se o fizesse. Na verdade, ele estava se divertindo com aquela situação, mas não pretendia alimentar o orgulho já inflado de Bo Ra.

— Até que não está ruim. — respondeu, dando de ombros.

Ela riu, debruçando-se sobre a bancada gélida da cozinha. Do outro lado, a cerca meia dúzia de palmos de distância, Taehyung permitia-se engolir mais uma porção de ramen e também parte do seu orgulho junto.

— Você prometeu que seria sincero. — ela provocou.

Sinceridade. Ele quis rir. Quando havia começado a fazer aquele tipo de promessa para a Kang, ainda mais por livre e espontânea vontade? Talvez estivesse ali a origem do problema que o mantinha acordado durante a noite e fazia com que sua mente vagasse até a casa anexa à sua: sinceridade. Quando estava com ela, o Kim tinha dificuldade em pensar antes de falar e agir, o que lhe deixava atônito e abria sua boca mais do que ele desejava — contudo, não o incomodava. Era apenas um jeito novo de se relacionar com alguém, o qual ele nunca havia tentado antes e que ainda lhe tomaria algum tempo para que se ajustasse ao mesmo.

Estava disposto a se ajustar.

— Tudo bem, eu confesso. — ele se pronunciou, atraindo por completo a atenção e as expectativas dela. — Eu nunca tinha experimentado ramen assim, que é bem mais aceitável do que o com aquele pó estranho.

Bem, aquilo não era exatamente o que Bo Ra esperava ouvir, mas ainda assim ela sabia que se tratava de um elogio. Taehyung sempre tivera um jeito torto de agir, e não era diferente quando precisava dar o braço a torcer e admitir que estava errado.

De repente, ela se pegou assistindo àquela cena em um completo e admirado silêncio. Taehyung usava uma blusa branca de manga comprida e de um tecido que parecia fino e confortável, uma calça preta que, apesar da aparência social, era feita de um moletom grosso e, por fim, um par de chinelos que a Kang sabia que custara mais do que a roupa completa que ela usava. Os cabelos cinzas não pareciam terem sido penteados naquela manhã, mas ainda assim estavam apresentáveis e caiam muito bem sobre os olhos castanhos e concentrados do garoto. Taehyung aparentava uma naturalidade tão grande, como o humano despreocupado que Bo Ra jamais imaginou que pudesse enxergar nele. Bem, ela sabia que a mente do Kim nunca descansava e as preocupações sempre a rodeavam, contudo, ele parecia confortável o suficiente para lidar com as mesmas do melhor jeito possível.

Quando sentiu um olhar constante sobre si, Taehyung finalmente desviou os olhos da tigela de ramen quase finalizada ao erguer a cabeça. Ele não fazia ideia do que se passava na mente da Kang, nem mesmo de que ela se encontrava na mesma situação dele, e, por isso, apenas a fitou durante alguns segundos. Ela parecia, finalmente depois de dias, estabilizada. Taehyung não era tolo para pensar que Bo Ra já havia superado todos os acontecimentos das últimas semanas, contudo, ela parecia estar seguindo o caminho na direção certa. Ele sentiu-se mal e culpado ao perceber que poderia estar prestes a fazê-la parar de caminhar, todavia, não podia mais apenas fingir que não sabia de mais nada.

Por fim, entendera o que tinha que fazer.

— Bo Ra. — ele a chamou, ainda que ela já estivesse o fitando. Não sabia quando tinha sido a última vez que pronunciara o nome da garota, ao invés do modo implicante como sempre a chamava pelo sobrenome. — Você gostaria de encontrar o seu irmão?

De primeira, a garota não entendera a pergunta, de tão inesperada que a mesma era. Taehyung estava comendo uma tigela enorme de ramen no meio da manhã e, de repente, lhe questionava se queria encontrar um irmão que até alguns dias atrás nem sabia que tinha. Além de ser um irmão de um pai que ela agradecia por nunca ter conhecido, no mínimo.

O que diabos ele pretendia com aquilo?

— Por que a pergunta?

Ela não dava a mínima se ele não gostava de se respondido com outras indagações, ou se, ainda, ela também não. A verdade era que não sabia como respondê-lo, porque não sabia ao certo como se sentia sobre aquele assunto tão recente e sensível.

— Porque eu nunca lhe perguntei antes. — respondeu. — Eu lhe contei a verdade, mas não me preocupei em saber o que você queria fazer depois disso. — pausou, desviando o olhar na direção da tigela. O ramen começava a ser ensopado pelo caldo, a parte que ele menos gostava do prato. — E eu não me orgulho de admitir, mas, provavelmente, continuaria sem perceber isso se não tivesse encontrado o seu irmão.

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Bo Ra o encarou, as mãos repentinamente geladas.

— Você o encontrou? — ela indagou, um tanto atônita. — Quando?

— Não faz muito tempo. — foi o que ele disse, por medo de lhe dar uma resposta exata e ela acabar ligando um ponto ao outro. — Nós não conversamos, mas eu tenho certeza de que era ele.

Ela quis perguntar como ele poderia ter tanta certeza, mas essa não era exatamente a maior dúvida em jogo, muito menos a mais importante. Bo Ra respirou fundo, rapidamente revivendo as piores cenas dos últimos dias.

— Não.

Foi uma resposta curta da parte dela, porém que carregava consigo todo o significado que precisava ter. Aquela breve palavra, naquele momento, era mais do que um simples advérbio de negação — era como ela se sentia e tudo o que desejava.

— Você tem certeza? — ele sentiu a necessidade de confirmar. — Não quer sequer saber o nome dele, ou...

— E de que isso serviria? — ela o interrompeu, ainda que sem a intenção de ser grosseira. Soava um tanto vaga, na verdade. — Se eu soubesse quem ele é, acabaria indo atrás dele em algum momento. E então, o que eu diria? Que sou a filha do pai estuprador dele?

Sem pensar, Taehyung colocou-se de pé num único impulso.

— Você não é isso. — ele disse, firme. — Por favor, não se deixe ser definida por esse homem.

— Eu jamais deixaria isso acontecer. — afirmou. — Contudo, ainda pode ser essa a definição que o meu irmão teria. Poderia não ser também, mas eu não estou disposta a tentar descobrir.

Não aguentaria descobrir, dependendo de qual fosse a resposta de seu irmão, mas não queria deixar isso claro em voz alta. Bo Ra estava disposta a superar a origem conturbada que fora o começo de sua história, o que seria inimagináveis vezes mais difícil se mantivesse próximo de si algo que lhe relembrasse constantemente da mesma, como um irmão. Não sabia se estava tomando a decisão certa, todavia, tinha certeza de que era a menos dolorosa. Ambos haviam sobrevivido sem o outro durante todos esses anos e, com certeza, sobreviveriam por mais todos os anos que estavam por vir.

— Tudo bem. — o Kim disse, por fim.

Ele também não fazia ideia se aquela era a melhor escolha, mas a respeitava. Ele acreditava que havia feito o certo, considerando que no fim das contas nenhuma catástrofe acontecera, e, além disso, não hesitaria em contar a Bo Ra sobre o seu irmão se a mesma viesse a mudar de ideia — ela sabia que ele estaria lá, caso precisasse.

Por fim, ele havia solucionado um problema mais tranquilamente do que esperava. Poderia riscar algo da lista de coisas que o mantinham acordado durante a madrugada.

Apenas para substituí-la por outra, na verdade.

O toque discreto e suave do celular de Taehyung vinha do bolso da calça do rapaz, interrompendo o silêncio no qual ele e Bo Ra estavam e utilizavam para perderem-se em seus próprios problemas. Com um aceno de cabeça, ele pediu licença e se afastou para atender a ligação, cujo remetente não fazia parte da lista de contatos salvos no celular dele.

— Alô. — ele atendeu, a palavra soando como uma pergunta indireta.

Taehyung oppa? — indagou a voz feminina do outro lado. — É a Yoon Hee.

A menina soava chorosa, porém não do jeito manhoso que normalmente falava. A irmã mais nova de Yoongi parecia ter a voz pesada por conta de um choro sério e que já durava algum tempo. Geralmente, o garoto teria revirado os olhos e perguntado o porquê da mais nova estar lhe incomodado em pleno final de semana, mas algo havia despertado uma preocupação primitiva dentro dele.

— Aconteceu alguma coisa? — ele indagou, sem rodeios.

Yoon Hee hesitou, fungando algumas vezes.

É o Yoongi oppa. Ele teve outra crise, mas foi mais horrível dessa vez.

A postura de Taehyung tornou-se mais ereta, atingindo o limite do possível. Ele acreditava que aquele pesadelo teria acabado depois de tantos meses e do longo e cansativo tratamento ao qual Yoongi havia sido submetido, mas aquela realidade tornou-se uma utopia distante com apenas uma ligação.

— Vocês estão em casa? — perguntou.

Sim. Papai e mamãe estão fora da cidade e os empregados não conseguiram controlá-lo. — a mais nova contou, beirando o desespero. — Por favor, oppa, você sabe que só você consegue conversar com ele nesse estado.

Infelizmente, aquela era a mais pura verdade. Fora Taehyung quem convencera o mais velho a aceitar o tratamento no ano passado, quando até mesmo a família Min não via mais solução. Naquela época, ele prometera aos pais de Yoongi que estaria presente sempre que o mesmo precisasse, e não estava disposto a descumprir tal promessa.

— Eu estou indo até vocês agora mesmo. — Taehyung disse, firme. — Enquanto isso, fique longe dele, Yoon Hee.

A garota nada respondeu, um consentimento silencioso de quem sabia que, por pior que fosse, aquela era a única escolha que ela tinha. Taehyung encerrou a ligação e já estava pronto para sair pela própria porta dos fundos com as roupas que estava no corpo, mas conteve-se ao notar o olhar preocupado de Bo Ra sobre ele. O Kim queria lhe contar a verdade, mas não tinha tempo para isso; pelo menos não naquele momento.

Mas não era como se ele precisasse, pois nem sequer havia passado pela cabeça de Bo Ra questioná-lo sobre qualquer coisa quando ele parecia tão apreensivo.

— O que quer que seja, tome cuidado. — foi a única coisa que ela disse, porém com toda a sua sinceridade e que serviu para desacelerar um pouco o garoto.

Taehyung a encarou, dizendo com os olhos o que precisava ser dito. Em seguida, rompeu porta à fora na direção da casa dos Min.

Correndo diretamente pela trilha de mais um problema.