Iguais, porém opostos

Como humano e desumano


Com os cabelos tingidos de um negro nitidamente artificial e a pele mais pálida do que o normal, Min Yoongi estava sentado desleixadamente no meio do gramado da própria casa — uma enorme mansão onde a grande maioria da decoração era feita do mais caro mármore — sem olhar para nenhum ponto em específico da extensa área que havia nos fundos da casa. Assim que pusera os pés diante da mansão, Taehyung havia se deparado com Yoon Hee, que caminhava de um lado para o outro na varanda da frente. Ela correu até o Kim, a maquiagem borrada ao redor dos olhos e o cabelo bagunçado lhe conferindo uma aparência extremamente cansada e frágil, e avisou a ele que seu irmão estaria ali.

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Ela não parecia em nada com a Min Yoon Hee vista pelos corredores do Kobe Suwon, capaz de até mesmo enfrentar Bo Ra.

Na verdade, Taehyung não estivera muitas vezes na casa dos Min, mas sua memória invejável lhe permitia seguir o caminho até a bela área dos fundos sem nenhum problema. A porta de correr levava diretamente a uma varanda decorada com elegância e coberta por um telhado de madeira importada; quando o mesmo chegava ao fim, tinha início um extenso e bem cuidado gramado — e era lá que Yoongi estava.

Taehyung respirou fundo, como se a calma da qual aquela situação necessitava pudesse ser adquirida através do ar que absorvia. Yoon Hee havia lhe dito que Yoongi aparentava ter se acalmado um pouco, mas o garoto sabia que, caso aquilo fosse realmente verdade, seria apenas uma passageira.

E sua teoria só se confirmou quando Yoongi lhe avistou, deu uma risada sarcástica e apanhou com firmeza a garrafa de bebida ao seu lado.

— Você bebeu? — o mais novo indagou aproximando-se, ainda que a resposta para a sua pergunta fosse inegavelmente óbvia.

Yoongi encarou o Kim com a maior quantidade de desprezo que conseguiu reunir em seus pequenos olhos. Taehyung achava que era muito mais do que a sua cinzenta realidade, e Yoongi odiava isso nele.

— Dá para notar?

Sacudindo a garrafa de bebida já praticamente terminada, Yoongi riu amargamente. Achava engraçada a expressão de julgamento que Taehyung lhe lançava, como se ele fosse anos luz mais experiente que seu hyung e, por conta de toda sua experiência, pudesse julgá-lo como bem entendesse.

— Não. É quase imperceptível, na verdade. — Taehyung retrucou, sarcástico. — Eu só consegui perceber por causa da voz desesperada da sua irmã no telefone.

Os irmãos Min poderiam ter os mais diversos tipos de problemas entre si, mas havia uma regra entre eles sobre a qual nunca haviam realmente discutido, mas, ainda assim, era a mais sagrada de todas: cuidar um do outro, pois os dois eram tudo o que tinham na vida. Por isso, quando Taehyung resolveu mencionar Yoon Hee usando um dos seus piores tons de voz, ele sabia que machucaria o ego de Yoongi, o que era justamente a sua intenção — e, quando o mais velho se colocou de pé aos tropeços, o Kim teve a certeza de que havia atingido seu objetivo.

— Você acha que, só porque estava lá naquele dia, me conhece o suficiente para ter o direito de se intrometer na minha vida? — Yoongi cuspiu as palavras como se as mesmas ardessem o céu da sua boca. — Você não é nada meu, Kim Taehyung.

Não era como se os dois adolescentes mantivessem uma amizade normal e saudável, contudo, naquela brincadeira de quem conseguia atingir mais fundo o outro, Taehyung sentiu como se estivesse perdendo. Ele tinha claro para si que o principal motivo pelo qual mantinha Yoongi por perto era a sinceridade excessiva e sem limites do mais velho, então, ainda que estivesse sob o efeito de álcool, Yoongi não mentia ao proferir suas palavras; pelo contrário, era provável que estivesse desenterrando algumas verdades as quais mantivera escondidas durante tempo demais.

— Eu só estava tentando lhe ajudar. — Taehyung disse, a voz rouca quase não conseguindo deixar sua garganta. — Você sabe disso.

— Sei mesmo? — retrucou, no mesmo instante. — Então, deixe-me ver se consigo esclarecer uma coisa: desde quando você virou um maldito bom samaritano, Kim Taehyung? Porque, naquele dia, enquanto eu era arrastado para dentro da ambulância da clínica, eu não escutei nenhuma oferta de ajuda vindo de você.

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Taehyung encarou Yoongi, o peito subindo e descendo sem muito controle. Raiva. Era o que ambos sentiam naquele momento, porém cada um por suas próprias razões. Lembrou-se do dia em que tudo aconteceu, dia o qual Yoongi marcara em seu calendário como a maior traição de sua vida.

— E o que você queria que eu fizesse? — o mais novo indagou. Apesar do tom de voz ríspido, ele ainda falava mais baixo do que Yoongi e suas palavras descontroladas. — Me juntasse a você e começasse a usar drogas também?

Yoongi deu um passo para trás, sem saber dizer se fora por conta do desequilíbrio causado pela bebida ou pelas palavras de Taehyung. Ele sabia que não demoraria muito para o Kim querer relembrar toda aquela história. Quando conheceu, pela primeira vez, o mundo das drogas, Yoongi não tentou com muito empenho não se envolver no mesmo. Semanas depois, ele já estava pedindo demais para ir ao banheiro durante as aulas, e foi em uma dessas idas que Taehyung o flagrou.

— Você está certíssimo! Já fez muito em não ter me dedurado para a sua querida diretora. — o Min debochou. — Mas espere, no mesmo dia você foi correndo até os meus pais para fazer justamente isso, não foi?

Taehyung encarou seu hyung perplexo. Como Yoongi poderia culpá-lo por ter feito o melhor para ele?

— Eu repito a minha pergunta: o que diabos eu deveria ter feito? — indagou. — Você estava se afundando.

— Eu queria me afundar! — agora, o mais velho gritava. — Você acha mesmo que todo mundo tem o sangue de barata que é necessário para fingir ter uma vida perfeita? Se você tem essa droga, que ótimo para você, mas as coisas não funcionam assim.

Yoongi jamais havia se permitido chorar na frente de alguém, nem mesmo durante suas piores crises de abstinência, mas o álcool em seu sangue o tornava incapaz de controlar as próprias emoções. As lágrimas preenchiam seus olhos, e a única coisa que doía mais do que sua cabeça era o órgão que pulsava em seu peito. Contudo, ele não recuava — mantinha o máximo de firmeza que conseguia em seus pés.

Guardava aquele rancor de Taehyung há quase dois anos. Durante seu suposto ano sabático que, na verdade, foram meses e mais meses trancafiados em uma clínica de reabilitação, ele tentou se convencer de que o mais novo realmente fizera aquilo para ajudá-lo; contudo, o conhecia bem demais para conseguir sustentar essa ideia durante muito tempo.

— Confesse, Taehyung. — ordenou, agora um pouco mais baixo. — Você tinha medo de que a bomba estourasse nas suas mãos. Você era incapaz de me ajudar, então achou melhor me entregar para alguém que prometia que poderia fazê-lo.

Prometia. Como se os pais de Yoongi já tivessem lhe feito alguma promessa durante sua vida. Na verdade, no dia em que fora internado à força, o Sr. Min não estava sequer presente.

— Você quer a verdade? Então está bem, eu vou lhe dizer a verdade. — Taehyung já havia atingido o seu limite, cerrando os punhos e respirando de forma irregular. — Eu não queria ter de lidar com você. Não era questão de saber, de ter medo ou nada do tipo. Eu não precisava de mais um problema na minha vida, então eu o repassei para os verdadeiros causadores do mesmo.

Àquela altura do campeonato, já era tarde demais para se arrepender e tentar reaver as palavras ditas. A verdade era que aquele pensamento egoísta pertencia ao Taehyung daquela época, e o atual lutava com todas as suas forças para mantê-lo afastado. O Kim havia, de fato, mudado — e se descobrisse sobre o problema com drogas do amigo hoje, ele ainda teria feito o mesmo, mas pelas razões certas. O problema era que Yoongi jamais entenderia isso, então de nada valia tentar lhe explicar.

Se ele pedia a verdade, Taehyung não a negaria e estava disposto a dar a ele o que o mais velho tanto queria ouvir.

— Sabe, Kim, você não é nada melhor do que eu. A única diferença entre nós dois, é que eu não escondo o babaca que eu sou.

— Eu só fiz o que eu tinha que fazer.

Yoongi costumava ter um pavio curto, contudo, quando bebia, a situação o encolhia até quase fazê-lo sumir. Por isso, no segundo seguinte ao que Taehyung fechara sua boca, fora acertado no lado direito de sua face por um soco dado com ódio. Yoongi chegou a perder o equilíbrio e cambalear para frente, mas sentiu-se satisfeito em presenciar o olhar chocado do Kim e o filete de sangue escorrendo de seus lábios.

Para um bêbado e viciado, ele tinha feito um ótimo trabalho com o punho.

— Você ficou irritado, não é? — debochou Yoongi. — Mas por que não demonstra? Por que você gosta tanto de ser um robô, Taehyung, programado para ser a vítima de uma sociedade aproveitadora?

Ainda se recuperando, não do soco em si, mas do impacto interno que o mesmo havia lhe causado, Taehyung não respondeu. Era torturante o modo como sua mente ordenava que ele ficasse calado, como se precisasse ouvir as palavras cuspidas por Yoongi.

Talvez ele precisasse, mas não calado como estava se obrigando a permanecer.

— Você consegue enganar muita gente com essa falsa frieza e os olhares ameaçadores, mas não a mim. Eu conheço o verdadeiro Kim Taehyung, aquele ser podre por debaixo das dezenas de máscaras que você usa. — Yoongi continuava, cada vez mais próximo de Taehyung e com mais ódio. — É por isso que todo mundo abandona e usa você, Kim. Isso é tudo o que você consegue atrair.

Durante anos, talvez por todos os de sua vida, Taehyung havia pensado e repensado suas ações. Calculado possibilidades e consequências, estratégias e argumentos. Tudo metodicamente planejado, como sempre acreditou que deveria ser. Contudo, no momento em que avançou na direção de Yoongi, ele não havia pensado sequer uma vez. Por já estar com o equilíbrio abalado, Yoongi logo produziu um som alto e oco ao bater com as costas contra o gramado bem cortado, enquanto Taehyung posicionava-se sobre ele. Um soco. Outro, mais um e mais alguns. O ofegante Kim só conseguiu parar quando já era quase tarde demais: havia sangue por quase todo o rosto alvo de Yoongi, seus lábios estavam completamente cortados e um olho sequer abria, de tão inchado.

Todavia, foi quando Yoongi começou a rir amargamente, engasgando-se no meio da ação com o próprio sangue, que Taehyung realmente não conseguiu controlar seu verdadeiro impulso: desabou a chorar. As lágrimas pesadas e salgadas se misturavam ao suor em seu rosto, o mesmo que colava vários fios de cabelo em sua testa, e escorriam pelas suas bochechas até caírem sobre a blusa preta de Yoongi. O garoto soluçava alto, deixando escapar em cada um de seus soluços tudo o que havia segurado durante anos, sozinho. Todas as suas diferentes personalidades misturando-se em uma única e fugindo de dentro dele por todos os seus poros, esvaziando-o por completo e deixando para trás nada além de suas memórias desagradáveis.

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— Por que?! — exclamou em meio aos soluços, sem se importar com a sensação de que sua cabeça poderia eclodir a qualquer momento. — Por que você fez isso?!

Os pensamentos sumiam com a mesma facilidade com que apareciam na cabeça perturbada de Taehyung e, por isso, ele não fazia e mínima ideia do porquê de ter feito aquela pergunta. Yoongi, por sua vez, sorriu sarcasticamente e exibiu a gengiva ensanguentada.

— Eu estou lhe devolvendo o favor. — respondeu, com as poucas forças que ainda lhe restavam. — Você me disse uma verdade, então eu lhe contei outra.

O fluxo constante de lágrimas tornava a visão de Taehyung turva, mas não o suficiente para impedi-lo de fitar um Yoongi quase desfigurado sob seu corpo. Permitiu-se cair para o lado, tombando sentado no gramado e abandonando o corpo derrotado de Yoongi. Abraçou os próprios joelhos, como se assim pudesse encontrar o conforto que nunca tivera em toda sua vida, e permaneceu assim durante um período de tempo que não contou; mas que lhe pareceu uma eternidade.

Não sentia nada, ao passo que sentia todas as possíveis emoções de uma única vez. Era como se fosse um castelo de belíssimas cartas, mas que, naquele momento, estava desmoronando sem piedade.

Era como ser humano pela primeira vez.

***

O caminho de volta para casa nunca lhe pareceu tão longo e desconhecido. Taehyung fitava os pequenos detalhes das ruas, os quais nunca havia dado-se ao trabalho de reparar antes e, por isso, ele não conseguia reconhecer muito bem o caminho que percorria. Para alguém que se intitulava tão observador, ele havia deixado passar as mais diversas particularidades do trajeto pelo qual transitara por quase duas décadas, mas isso sequer o incomodava no momento.

Estava cansado.

Pela primeira vez em muitos anos, ele não se preocupou em manter os ombros erguidos — afinal, para quem mantinha toda aquela pose? — ou o olhar frio. Quem olhasse diretamente em seus olhos poderia ver o quão quebrado estava, e ele agradeceu mentalmente pelas ruas estarem vazias ao ponto de não haver ninguém para fazê-lo. Quando cruzou a portaria do condomínio, assustando o porteiro que nunca havia o visto a pé, deu-lhe um boa noite que mal conseguiu deixar sua garganta.

Sentia-se fraco, sendo sincero.

Depois do ocorrido com Yoongi, Taehyung se levantara e deixara a mansão dos Min sem dizer sequer uma palavra, nem mesmo para a preocupada Yoon Hee. Ainda havia resquícios de grama em sua roupa e ele não tinha limpado o sangue que escorrera do corte em seu lábio inferior, o que deveria ter assustado as poucas pessoas que haviam passado por ele na rua e, talvez, até mesmo o porteiro. Quando finalmente alcançou a fachada de sua casa, ignorou por completo a porta da frente e foi direto para o quintal dos fundos. Estava prestes a alcançar a piscina e, assim, tentar por os pensamentos em ordem, mas deparou-se com algo que o fez para de caminhar pela primeira vez em algum tempo.

Alguém, na verdade.

Sentada onde ele deveria estar, Bo Ra tinha seus pés mergulhados na água gelada. Ela fitava distraidamente o reflexo da Lua sobre a água, como se sua mente estivesse longe, e não percebeu quando ele resolveu se aproximar. Taehyung parou próximo a ela e, ainda de pé, acabou atraindo sua atenção. Em silêncio, Bo Ra o observou enquanto ele se sentava ao seu lado, sem também dizer nada, e não reparou nas roupas sujas que ele usava.

Agora, ambos encaravam a água, os ombros rentes um ao outro e os pensamentos mal organizados.

— Até que a sua técnica não é ruim. — ela se pronunciou primeiro, deixando claro que tinha gostado de praticar a estranha mania do Kim de molhar os pés. Quando ele não disse nada, resolveu continuar. — Está tudo bem?

Taehyung respirou fundo, perdido em quase todos os sentidos da palavra. Uma pequena parte dele quis mentir, fingindo que tudo estava sob seu controle e que ele não se sentia extremamente ferido naquele momento, mas ela não tinha mais força para vencer a outra, que era maior e muito mais sincera.

— Não.

A rouquidão na voz dele fez com que Bo Ra virasse a cabeça para encará-lo e, quando finalmente notou o estado de Taehyung, se espantou. Ela se virou para ele no mesmo instante em que se deparou com o sangue seco em seu queixo, inevitavelmente aflita. Na verdade, o corte no rosto do garoto em si não era o preocupante, mas sim a expressão pesada que ele carregava.

— O que aconteceu com você? — Bo Ra indagou, instintivamente levando as pontas dos dedos até o queixo de Taehyung.

O Kim se assuntou com o ato repentino, contudo, a sensação de ter os dedos aquecidos e macios de Bo Ra em contato com o seu rosto frio e machucado era confortável demais para que ele recuasse. Antes de finalmente perceber o que estava fazendo e timidamente recuar sua mão para junto do seu corpo, a Kang dedilhou ao redor do corte nos lábios de Taehyung, como se o mesmo pudesse dar a ela a resposta que o Kim provavelmente não daria. Os dois ficaram em silêncio por mais um tempo, até Bo Ra resolver se pronunciar novamente.

— Fique aqui. — disse, levantando-se.

Taehyung teve a impressão de que a água da piscina movimentava-se tristemente enquanto os pés de Bo Ra a deixavam, como se, espelhando a luz do luar, pedi-se para que a garota não fosse embora. Na verdade, ele estava transferindo seus próprios pensamentos para a água cristalina. Os olhos atentos de Taehyung mantiveram-se fixos na figura distorcida pela noite de Bo Ra e, quando a mesma sumiu porta da casa anexa à dentro, eles ficaram lá, esperando que ela voltasse logo.

Quando havia tornado-se tão depende dela?

Quando retornou, a Kang trazia consigo uma pequena maleta branca. Sentou-se à beira da piscina novamente, mas, dessa vez, não colocou os pés dentro da água como antes, mas cruzou as pernas com o propósito de ajeitar-se de frente para Taehyung.

— Vire. — ela pediu, referindo-se ao rosto dele.

Ele não precisou fazê-lo, pois seu rosto já estava completamente virado na direção dela há algum tempo. A tampa da maleta fez um click oco quando foi aberta, revelando alguns materiais de primeiros socorros dos quais Bo Ra apanhou um pouco de algodão, álcool, esparadrapo e uma espécie de pomada cicatrizante. Em silêncio, Taehyung apenas a observava, sem sequer pensar em resistir ou recuar.

— Sua mãe vai surtar quando ver isso. — ela constatou, embebedando o algodão em álcool.

Taehyung deixou escapar uma risada baixa e fraca, mas o suficiente para ser ouvida por ela.

— Não é como se eu fosse encontrá-la pela casa agora. — disse. — Acho que quando isso acontecer, esse corte nem vai existir mais.

Aquilo não deixava de ser a verdade. O Sr. Kim nunca fora um pai muito presente, mas, pelo menos, ele gostava de trabalhar em casa todas as noite, incluindo as dos finais de semana; já a mãe de Taehyung raramente era encontrada em casa por conta de suas próprias prioridades banais. Compras, spa, academia, compras novamente... uma rotina interminável, na qual era muito trabalhoso incluir Taehyung. Às vezes, os dois chegavam a encontrar-se apenas três ou quatro vezes durante toda uma semana.

— Mas é melhor não arriscar, certo? — Bo Ra indagou num tom mais leve, tentando aliviar o clima.

Quando o corte de Taehyung foi coberto pelo algodão com álcool, o garoto puxou o ar entre os dentes. Apear de um pouco funda, a abertura não era grande e não parecia ser lá essas coisas — contudo, ardia como um inferno enquanto Bo Ra a limpava. Aos poucos, o corte estava livre do sangue seco e devidamente esterilizado.

Quando Bo Ra colocou um pouco da pomada em seu indicador e o levou até o lábio inferior de Taehyung, ele a fitou como se ela fosse a única coisa existente no mundo. Na verdade, se o quintal ao redor dos dois explodisse em chamas, ele ainda manteria os olhos fixos nos traços bem desenhados dela, no cabelo preso em um rabo de cavalo bem penteado e no modo como ela estava concentrada em passar a pomada apenas sobre o corte.

Ele nunca havia a enxergado daquele jeito.

— Por que eu não posso arriscar? — ele indagou repentinamente, quando ela acreditava que o assunto já tivesse sido encerrado.

Bo Ra o fitou, confusa. Taehyung parecia distante, como se estivesse se referindo a muito mais do que apenas ser flagrado pela própria mãe.

— Alguém me disse algumas verdades hoje. — continuou, sem esperar que ela perguntasse qualquer coisa. — Essa pessoa me chamou de robô e me acusou de usar máscaras, dizendo que é por isso que eu só atraio pessoas com segundas intenções.

— E isso lhe atingiu?

Eles ainda estavam próximos um do outro, por mais que ela tivesse pausado o que fazia para ouvi-lo.

— De um jeito, sim. Eu fiquei com raiva. Muita. — ele respondia, fitando diretamente os olhos castanhos dela. — Mas não dele. De mim. Porque a culpa de eu levar a vida que levo é completamente minha, e de mais ninguém. Mesmo com a criação que eu tive, ou ainda com a falta dela, eu poderia ser diferente. Tudo poderia ser diferente, mas eu me acomodei demais para perceber isso.

— Não é tarde demais para tentar mudar isso. — ela incentivou. Na verdade, Bo Ra estava gostando do que ouvia e prestava uma cuidadosa atenção nas palavras do Kim.

— Eu não sei se consigo fazer isso. — ele admitiu, fitando de relance a água cristalina da piscina. A luz refletida na mesma iluminava o rosto dele, revelando os olhos marejados. Doía admitir quem era. — É... difícil demais.

— Difícil? — ela indagou, abismada. — Difícil é guardar os segredos de um universo dentro de você. É viver se contendo e se privando de tudo, porque qualquer coisa pode se voltar contra você mais tarde. Difícil é ser quem você é hoje, Taehyung, não quem deseja ser.

O Kim acabou por fitá-la intensamente, mas Bo Ra lhe devolvia o olhar quase que na mesma intensidade. Sempre fora uma verdade incontestável para os dois que palavras nunca foram necessárias, porque, até nas situações de ódio, eles conseguiam se entender apenas com os olhos — e aquilo não havia mudado. A tempestade assustadora que habitava as orbes de Taehyung contrastava com a calmaria oferecida pelas de Bo Ra, como se ela estivesse lá apenas para compreendê-lo. Ele queria ser com os outros o mesmo que era com ela. Não sabia o que tinha acontecido, mas, em questão de dias, Bo Ra fora capaz de trazer para a superfície a melhor versão de Taehyung, ou pelo menos a que ele mais gostava de conviver. Não se tratava de uma máscara, mas sim do Taehyung mais verdadeiro que havia dentro dele.

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O mais humano.

— Como eu faço isso? — sussurrou, como uma súplica.

Bo Ra exibiu um pequeno sorriso, porém com tamanho suficiente para dar a ele alguma esperança.

— Eu bem que queria, mas não existe fórmula mágica para mudar quem você é. É um trabalho que leva uma quantidade absurda de tempo e paciência, no mínimo. — ela respondeu, tomando de volta a pouca esperança que acabara de dar a ele. — Mas acho que o importante é encontrar um jeito de começar. Vamos ver... — encarou a água, tentando lembrar-se de qual havia sido o começo para si própria. — Você pode finalmente fazer alguma coisa que sempre quis, mas continuava se privando seja por qualquer que fosse o motivo. Consegue pensar em algo?

Para ela, havia sido a carona. Depois de descobrir a verdade sobre seu pai e sua origem, Bo Ra passara por um processo parecido com o de Taehyung, o que fez com que ela se perguntasse exatamente aquilo. Passou a buscar algo que nunca tinha feito por puro impedimento próprio. Assim, quando Taehyung pediu que ela entrasse em seu carro naquele dia, ela pensou em recusar no mesmo instante — e foi exatamente por isso que aceitou. Por que diabos recusaria uma simples carona? Orgulho? Ela não estava em condições de continuar o conservando, por isso, o engoliu e entrou no veículo. Poderia parecer algo pequeno e inútil aos olhos de qualquer um, mas, para Bo Ra, fora o começo de uma mudança que estava lhe fazendo um bem extremo.

Já Taehyung, tinha o seu próprio começo.

— Tem uma coisa. — ele respondeu, por fim. A tranquilidade que os olhos dela lhe passavam era inebriante. — Não é algo que eu sempre quis fazer, mas minha mente está gritando para que eu não o faça agora, então acho que poderia ser um bom começo.

Bo Ra o fitou, curiosa. Gostava daquela versão do Kim, da que estava disposta a lhe contar coisas íntimas sem nenhuma amarra.

— Vá em frente, então.

Taehyung precisou respirar fundo e, mesmo tecnicamente autorizado, reunir um pouco de coragem. Seu dia, até aquele momento, havia consistido em fazer coisas por impulso, mas aquela seria uma que ele já vinha secretamente desejando. Secreto até para ele mesmo, na verdade.

Ergueu a mão direita, os nós dos dedos feridos por terem encontrado o rosto de Yoongi algumas vezes, e a levou até a face de Bo Ra. Primeiro depositou o polegar, e se surpreendeu quando a ponta do dedo tocou a bochecha dela e ela não recuou. Acariciou a região, enquanto a mão esquerda ia na direção do outro lado do rosto da garota. Segurou com cuidado o rosto da Kang, como se estivesse com medo de quebrá-lo a qualquer momento, e tomou alguns segundos silenciosos apenas para apreciá-lo.

E então, ele a beijou. Um ato intenso, porém igualmente terno, e que fora muito bem correspondido. Bo Ra não fazia ideia do porquê, mas, ao invés de recusá-lo, seu corpo praticamente implorava para que ela nunca mais se afastasse de Taehyung. Os corações dos dois batiam em ritmos fortemente descompassados, porém iguais entre si. Taehyung não conhecia palavras boas o suficiente para explicar a sensação de ter Bo Ra tão perto, em uma sintonia tão perfeita e só para ele. Era como se aquele breve momento fosse melhor do que todas as falsas felicidades que já vivera, juntas, e a respiração quente dela contra o seu rosto só lhe confirmava isso.

Naquele momento, Taehyung tomou uma decisão: seria Kang Bo Ra o seu começo, o pilar principal que lhe mostraria como ser humano.