A Porta dos Tempos

Lembranças


Relutante, ela conseguiu abrir os olhos. Estava de volta: o corredor se estendia a centenas, milhares de metros à sua frente e às suas costas. A cada repartição, uma porta ornamentada chamava a atenção de Elizabeth. Ela tocou uma maçaneta ao, finalmente, conseguir andar. Sentiu o frio correr os dedos e tirou-os dali. Por incrível que pareça, estava se sentindo bem, como se ali todo o sofrimento passasse. Algum presságio, talvez. Deu mais alguns passos e correu os olhos pelas outras portas. Perdera a conta. Eram todas iguais, mas cada uma dava-lhe um pressentimento diferente.

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Continuou andando e sentiu o mármore frio do chão dominar-lhe os pés, que estavam descalços. Era relaxante e exaustivo. Alguma coisa lhe chamava para o fundo do corredor, e queria saber o que era. Quanto mais se aproximava, mais sentia a cabeça pesar. Teve de se apoiar em uma das portas e acidentalmente destravou a maçaneta. O ar frio empurrou-a para trás. A porta aberta a fez assustar-se, mas tinha medo de demonstrar qualquer barulho. Ficou parada, encarando a trilha à sua frente: era cercada por pinheiros pequenos e grandes, tinha pedregulhos e alguns animais sobrevoavam o cenário. Durou pouco. Os pinheiros caíram em brasa, um pé gigante afundou as folhas e depois ribombou toda a planície, lançando a neve para o alto. Ela viu luzes e um corpo caído no chão, como se o gigante tivesse diminuído de tamanho. Tinha um rosto antipático e parecia nervoso, maluco. Ele marchou em direção à porta e, ao sair, trancou-a. Encarou fixamente Elizabeth e hesitou em falar com ela. Saiu correndo para longe e, pelo que parece, entrou em outra porta. Ela levantou-se e tentou segui-lo, mas tinha chegado a seu limite.

Quando tentou ultrapassar mais, sentiu a cabeça doer como nunca, a porta à sua frente era tão chamativa que ela jurou que podia ler abra-me entalhado na madeira escura. Domada de curiosidade, ela destravou a maçaneta e girou-a para o lado, estava em sua antiga casa. Conteve as lágrimas ao sentir o cheiro de cookies por toda a sala e entrou, como se desejasse durar para sempre.

As janelas abertas faziam as cortinas uivarem e rodopiarem. Ela desejou ver a paisagem, e correu para a janela: metros abaixo de seu apartamento, socialites passeavam com seus cachorros mimados. Alguns empresários atropelavam pedestres e checavam o relógio de segundo em segundo. Ela pôde até ver uma senhora tendo a bolsa roubada. Suspirou e puxou o ar, sentindo o cheiro da poluição local. Quando se virou, sua avó segurava uma bandeja de biscoitos. Algo em seu semblante estava errado. Seus olhos estavam arregalados e emitiam um brilho verde exótico e esquisito. Sua boca estava aberta, como se tivesse tomado um susto e, para assustar ainda mais Elizabeth, ela derrubou a bandeja e avançou. Agarrou a garota pelos ombros e uma estranha fumaça esverdeada ribombou de seus lábios. Tinha a forma de uma serpente, e entrelaçou o pescoço de Elizabeth como se quisesse carinho. Num bote, avançou por todas as suas entranhas e dominou seu corpo, empurrando-a para trás. A última coisa que viu foi sua avó caindo no chão, provavelmente desmaiada. Caiu metros a baixo de seu apartamento e podia jurar sua morte, mas algo a impediu. Uma penumbra acinzentada empurrou-a para a calçada e suas costas bateram num muro de concreto. Parecia doloroso, mas era melhor do que morrer. Quando acordou, não era mais a mesma.

Ela ouviu os passos no fundo da cabana e, numa fração de segundos, todo seu sofrimento voltou. Seus pulsos estavam cortados de tanto tempo presos às correntes. Sua garganta, seca. A cabeça estava caótica e os pensamentos, piores ainda. Fechou os olhos, buscando seu fiel parceiro: o otimismo que, para aquele momento, era a morte.