A Seleção de Apolo

• 2° — Como se ter uma melhor amiga poliglota já não fosse o suficiente, o Olimpo resolve me presentear com um padrasto antissocial. É sério mundo, você já pode parar. Tipo, agora!


“Espero que saiba que você não pode fugir Cammy, mais cedo ou mais tarde nós iremos te encontrar.”

Me revirei na cama de novo. Eu vinha acordando e voltando a dormir de tempos em tempos. Agora, por exemplo, eram duas horas. Nada de mais, se não fosse às estrelas brilhando no céu, iluminando aquela imensidão negra. Bufei pela milésima vez. Até Urano parecia querer me punir, afinal de contas.

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Pegando um dos dez travesseiros socados em minha cama, coloquei um deles na cara e gritei. Pra caramba. Não queria ficar acordada. Já havia percebido há algum tempo que dormir me tirava daquele lugar maldito. Dava-me esperanças para continuar aquele jogo perverso e sádico, onde a cada dia mais me via afundando, como em uma verdadeira areia movediça. E foi por isso, que quando Flora e Francis vieram me acordar lá pelas nove da manhã eu as dispensei. Nada de café da manhã com semideusas burras que largaram tudo pra vir atrás de um retardado. Dormindo eu fico longe de toda essa falsidade. É o único refúgio que tenho agora, o que chega a ser irônico, já que eu sempre tive medo de sonhos.

— Camille?

Reconheci a vozinha de Flora.

Grunhi pra ela e tive a impressão que ela dera um passo pra trás, assustada. Isso me fez rir contra o travesseiro.

— O que é, Flora? Já disse que não vou sair dessa cama hoje.

— Eu sei, senhorita... mas é que – ela fez uma pausa, e eu ergui a cabeça pra encará-la. – Bom...

— Fala, Flora. O que?

— Você tem visita – disse olhando pra baixo. – Visita divina.

— Ah, não me diga que é o tonto do Apolo! Se for, pode mandar embora! Ou melhor, o mande ir...

Antes que eu dissesse algo impróprio (Flora estava com os olhos mais arregalados que a Lua) ouvi uma voz paternal e elegante chamar meu nome. Franzi as sobrancelhas, confusa. O que será que ele queria comigo? Aposto que era pra filmar como eu estava.

— Diga que já vou.

Flora fez uma reverência e foi pra porta. Revirei os olhos. O que tínhamos discutido sobre referências? E sobre o termo senhorita? Parecia que ela ficou tão assustada com o meu comportamento que esqueceu que temos intimidade.

Suspirando, levantei da cama e fui pro banheiro. É bom que Hefesto tenha vindo com o microfone e o cameraman mesmo. É hora de dizer umas verdades sobre Apolo e sobre todo esse circo. E se quiserem me matar por isso, que matem! Eu literalmente caguei pros olimpianos, especialmente minha mãe e aquele cabeça de bagre loiro.

— Ela já vem. Só um momento.

— Obrigado.

Hefesto é um dos poucos deuses que diz obrigado. Talvez ele tenha vindo por outro motivo que não seja me expor, mas não boto fé nisso.

Lavei o rosto e penteei o cabelo antes de sair. Quando o fiz, ele estava sentado na minha cama, conversando amigavelmente com Flora.

— É mesmo?

— Sim e...

— Hefesto – interrompi. Não havia microfone nem câmera man. - Pode falar. Tô aqui.

Ele me deu um sorriso triste. Flora saiu de cena.

— Olá, Camille. Notei que não apareceu no café da manhã hoje... Nem nos de dois dias atrás...

— Ah, notou? – Não resisti ao comentário sarcástico, eu era a Cammy afinal.

— Sim, hã... Eu vim pedir desculpas a você.

Okay, já era estranho o suficiente um deus vir me visitar em meu estado de auto-confinamento, mas me pedir desculpas por sabe-se lá o que? Ai já era doidera. Viagem. Efeito de dorgas sabe?

Eita, será que deuses fumam maconha? Em todo caso...

— Desculpa Hefesto, mas eu acho que me perdi. Você ta me pedindo desculpas? Ta doido? Fumou a pedra filosofal foi? – ele abriu um mínimo sorriso.

— Embora eu aprecie seu vasto vocabulário literário senhorita Camille, devo lhe informar que eu não fumei nenhuma pedra, muito menos maconha. – Arregalo os olhos. – E sim, você disso isso em voz alta. Na verdade, nós deuses somos proibidos de usar qualquer droga, lícita ou ilícita dos mortais, mesmo que alguns ainda não cumpram essa norma, já que isso pode acarretar em var...

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Soltei um pigarro. Ele ficou vermelho.

— Estou me embolando não é? Bom, peço desculpas senhorita, não sou muito bom nessa coisa de comunicação, prefiro trabalhar na minha oficina sozinho com os meus autônomos e projetos novos do que conversar com outros seres vivos.

— Nem me fale – soltei sem perceber. Por incrível que pareça, ela pareceu ficar mais a vontade depois disso. – Enfim, as desculpas são pelo que mesmo?

Hefesto se acomodou na cama, sentando-se de um modo mais elegante e sério. Eu tentei imita-lo recolhendo minhas pernas e ficando em posição borboletinha na poltrona, já que estava toda jogada antes. Ele soltou um suspiro.

— Veja senhorita...

— Não. Sem senhorita – interrompi. – Isso faz com que eu me sinta uma velha do século XIX, sem ter meus direitos de mandar todo mundo ir se fud... – me interrompo, vendo a merda que eu iria falar. – lascar, isso, se lascar. Onde eu não teria direito nenhum a mandar todo mundo ir se lascar. Pãozinho?

Merda Cammy, como se já não fosse ruim o suficiente correr de um deus enquanto tudo é filmado você ainda quer fuder tudo com o marido da sua parente divina que por acaso comanda o show bisness daqui? Contenha-se mulher! E pãozinho? Jura? Sério, não tinha nada melhor pra oferecer ou falar não? E você ainda tinha que enfiar metade dele na sua boca? Merda merda merda! Você é muito tonta, sua anta!

— Você tem um senso de humor bem peculiar, né?

Ah, quer saber? FODA-SE!

— E você não sabe mesmo como começar uma conversa, certo? Tipo, que tal você começar com um “Nossa Cammy, você parece feliz hoje” ou só um “Oi Cammy, como você tá?”. Se bem que o primeiro pode ser desconsiderado, já que eu tô só o bagaço hoje. Quer dizer, olha meu cabelo, ta parecendo um ninho de rato! Eu falo que esse é um penteado moderno só pra disfarçar que nem coragem pra pentear eu tive hoje, da pra perceber?

Ok talvez eu esteja começando a assustar um pouquinho o deus das forjas. Pigarreei.

— Desculpe, acho que extrapolei um pouco, às vezes quando fico nervosa não consigo mais calar a boca. Enfim, do que estávamos falando mesmo?

— Das minhas desculpas – ponderou ele. – Vou ser sincero, Camille...

— Cammy.

— Vou ser sincero Cammy, eu realmente não quero ter que expor as gravações dos seus... hã... últimos momentos do baile sem a sua permissão. Isso seria indecoroso, e acredite, eu não gostaria que alguém decesse a um nível tão baixo se isso estivesse ocorrendo comigo. – Ele para alguns segundos, parecendo indeciso, mas decide continuar. – Sei que muitas pessoas me julgam pelo que faço a Afrodite e Ares, mas isso é um caso diferente. Você pode me chamar até de hipócrita por estar falando e expondo sua mãe, mas...

— Não – o interrompo. – Acredite em mim Hefesto, aquela mulher não é a minha mãe. Não por ações, pelo menos. Sei que você a ama, pois sinceramente sinto isso, e sei também que é por isso que você continua aturando as suas traições descaradas. E acredite Hefesto, eu admiro muito essa sua força de vontade e fé de que algum dia ela vá melhorar, mas eu já não tenho o mesmo pensamente quanto a isso. Eu já suportei merdas demais dela, e não posso passar a minha vida mortal inteira esperando que ela melhore. Ela não vai melhorar nesse pouco tempo. E é esse pouco tempo de vida em que eu realmente vou estar viva, entende? Talvez até um pouco menos. Então sim, eu aprecio demais esse amor que você tem com ela, Zeus sabe o quanto eu queria ter de novo um amor desses pra mim, mas se eu fosse você eu já teria mudado de atitude há muito tempo. Muito tempo mesmo, Hefesto. E realmente, eu não me importo muito com o destino das gravações daquele baile, pouco me interessa se ele vai parar no seu programa ou no The Voice Brasil, eu só quero que isso acabe logo, e não é prejudicando seu trabalho que isso vai acontecer.

Eu estava abalada. Realmente abalada. Eu não me abria assim há tempos, e só a Emmy que já tinha presenciado um desses meus pequenos surtos depreciativos. Bom, a Emmy e um deus olimpiano, agora.

— Me desculpe novamente. – pedi, depois de normalizar minha respiração. Chega Cammy, você não vai chorar agora na frente de um desconhecido né? É só se lembrar das técnicas de relaxamento que a Emmy te ensinou, expira, expira e não pira. Você já passou por coisas piores, de qualquer jeito.— Acho que é assim que uma garota reage depois de três dias sem contatos externos e sem a melhor amiga pra desabafar. – Dei uma desculpa esfarrapada, me levantando da poltrona em um salto. – Bom, eu acho que já estamos resolvidos não é? De qualquer forma, foi muito bom receber uma visita sua Hefesto, falando sério. – acabei me virando de costas, tentando abafar minha voz embargada com uma das minhas mãos. Eu não esperava que depois de tantos anos aquele assunto ainda surtisse esse efeito em mim.

— Cammy... – a voz de Hefesto veio muito hesitante. – Você... hm... você não precisa de nada? – neguei. – Tem... certeza?

— Só... Se encontrar a Emmy, peça pra ela vir me vir sim? Se ela realmente não estiver muito ocupada...

— Claro...

Logo após a porta se fechar, me permiti desabar.

***

Solitário, Solitário

Então você acha que me conhece

Como se fosse o único que sabe quem eu sou



Eu decidi aceitar que estou desmoronando

Todas as correntes no meu trono da imperfeição

Será que é tão fácil deixar pra lá?



Tudo o que você vê brilhando

Nem sempre é feito de ouro

Tudo o que você acha ser perfeito

Nem sempre é tão

Muitas vezes, muitas vezes

Eu não deixaria meus sentimentos à mostra

Tudo o que você vê brilhando

Nem sempre é feito de ouro



Você sabe que sou só humana, humana, humana afinal

Você sabe que sou só humana, humana, humana afinal

— Uou Cammy, isso foi... isso foi maravilhoso. Muito triste e tocante, mas maravilhoso. Você escreveu isso agora?

Coloquei o violão ao lado da cama, enquanto me permitia aconchegar mais no abraço de Emmy, me deitando ali mesmo. Estava preparada para soltar uma brincadeirinha, algo como os filhos de Afrodite ser sempre intensos em relação aos sentimentos, mas estava tão cansada de tudo... Acho que até a Emmy percebeu isso de certo modo.

— Não. Não tudo, pelo menos. A primeira e a segunda estrofe foram feitas duas noites atrás, depois do baile... – os braços da Emmy me apertaram um pouco mais. – O resto foi nessa meia hora que você demorou pra chegar.

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— Me desculpe mesmo Cammy, eu queria ter vindo correndo, eu sabia, sentia que algo tava errado... Mas ai veio aquele troglodita idiota e me esbarrou, e nem pediu desculpa...

Soltei um risinho. – Acho que nunca tinha te visto tão furiosa na vida. Pra falar a verdade, foi bom esse atraso. Eu consegui compor um pouco e de bônus ainda tive a chance de te ver descontrolada...

Emmy me deu um tapinha. – Você fala como se eu virasse uma espécie de demônio ou sabe-se lá o quê quando eu fico irritada. – revirou os olhos.

— E não é mais ou menos assim?

— Não é minha culpa se eu herdei o temperamento divino do meu pai ué.

— E os olhos. – eu ri desanimada.

— Ah é, isso também. – suspirou.

Há dez minutos, quando Emmy havia entrado arfando pela porta do meu quarto sem bater, com o rosto mais vermelho e feroz que eu já havia visto na vida, eu sabia que alguma coisa havia acontecido. E minhas suspeitas se confirmaram no segundo seguinte, quando ela passou a xingar Deus e o mundo em uma mistura de inglês, grego e espanhol, essa última sendo a sua língua de nascença.

¡Yo realmente no creo que eso sucediera! E o pior foi que o energúmeno ainda nem pediu desculpas, ficou colocando a culpa em mim acredita? Como se EU tivesse me esbarrado nele, e não o contrário. ηλίθιος ρατσκαλός, hijo de una buena madre. – gritou. - Eu não acredito nisso, realmente no creo en eso...

Como a maioria de vocês já deve ter percebido, eu não sou uma garota de ter medo. Eu tenho pouquíssimos, na verdade. Mas aqueles olhos... Aqueles olhos outrora castanhos agora estavam escuros, sem vida, em um breu infinito e maquiavélico, tão parecidos com o próprio Tártaro... Que tudo que eu consegui dizer foi:

— Emmy... os... os seus olhos...

E então ela os fechou. E eu pude respirar novamente. E ela se acalmou, me pedindo algumas – muitas – desculpas no processo. E então eu finalmente contei pra ela o que tinha rolado entre mim e Hefesto.

O problema é que desde que o deus das forjas saiu do meu quarto, eu me descontrolei. Estava mais que óbvio que eu nunca conseguiria falar da minha criação sem me alterar, e sabia por experiência própria que uma Cammy emocionalmente abalada era um perigo pra todos, ate pra mim mesma.

Entenda: quando eu deixo minhas emoções falarem por mim, seja por tristeza, alegria ou medo, o charme dos filhos de Afrodite começam a tomar conta. É algo meio automático na verdade, como se eles fossem passarinhos presos na gaiola ou algo assim. Você sabe que precisa os soltar, mas mesmo assim prende-os por uma razão qualquer. Quando eles se soltam, entretanto, é sempre quase impossível prende-los de volta, porque você sabe que precisa de uma gaiola ainda mais forte e resistente que a antiga para conte-los. E ainda tem essa própria escuridão interferindo em tudo, como se já não fosse muito difícil lidar com o charme sozinha...

Por isso, sempre preciso me controlar ao máximo, o mais rápido possível. Praticamente sou uma bomba pronta pra explodir, como diria minha irmã mais velha.

Suspiro. E com os recentes acontecimentos... bom, isso não estava sendo nada fácil.

— Elas sabem, não sabem? – pergunto depois de um tempo. – Sabem do que aconteceu entre mim e o Apolo no dia do baile, depois de eu ter saído correndo de lá.

— Na verdade não. Afrodite não deixou ninguém interferir, e ameaçou amaldiçoar os câmeramens se eles gravassem algo de você ou de Apolo depois da sua fuga. – me remexi. – É, eu também fiquei bem surpresa com isso, mas ela é a sua mãe Cammy, e ela te ama, do jeito torto e paranoico dela, mas ama.

— Emmy... eu não quero falar sobre ela. Você sabe de todas as merdas que ela já fez... eu só... não consigo. Não agora. E acho que nem nos próximos cinco anos. No mínimo. – decretei, tentando fazer graça. – Podemos mudar de assunto?

Foi sua vez de se remexer incomodada.

— Cammy... eu sei que é um assunto particular, e se você quiser não precisa falar... Mas o que você e o Apolo conversaram depois que você saiu do baile? Ele apareceu lá no salão tão triste... – começou a me fazer um cafuné. – tão... derrotado. E o olhar dele – ela me abraçou mais. – tava tão vazio...

Tentei imaginar a cena: um Apolo andando a esmo pelos corredores, com seus ombros antes eretos agora curvados, carregando um semblante vazio, o rosto desprovido de seu sorriso usual... Doeu imaginar isso, mas doeu ainda mais admitir que eu fosse a causadora daquilo.

— A gente brigou Emmy. – não percebi que minha voz estava quebrada até começar a usa-la. – Eu só me tranquei aqui e ele começou a jogar um monte de verdades na minha cara. A falar que eu me faço de burra em relação aos meus sentimentos. Que talvez, quando eu admitir que eles existam já seja tarde de mais... – a cada palavra que eu proferia Emmy me apertava um pouco mais.

— Ah Cammy... Não chora... Isso só foi, sei lá, um conflito de ideias... Logo as coisas se resolvem de novo... Shiiii.

Me virei pra ela. – O problema é que ele tá certo Emmy. Eu não demonstro meus sentimentos porque eu sei que mais cedo ou mais tarde eu vou me decepcionar em relação a eles. Todo mundo acha que é maneiro ser filho de Afrodite, mas sentir todos esses sentimentos ampliados por ser filhos de quem somos é um saco. O Apolo acha que me conhece, mas como ele pode me conhecer se nem eu mesma me conheço por inteiro Emmy? Eu to tentando... Eu juro que eu to tentando conseguir amar alguém com toda a força do meu ser... Mas da última vez que eu tentei não deu certo Emmy. E doeu. Doeu muito. Eu não quero que doa novamente.