Sentimento Incompleto

Entre mentiras e escândalos


Len POV

Deixamos o quarto para trás e minha mãe atuou muito bem em fingir que nada demais havia acontecido, tanto que ninguém sequer nos notou no caminho. E então, sendo obrigado a segui-la, tive de ir até a sala de estar cumprimentar quem mais estivesse ali... e Willian, que me viu, levantou e veio até mim saudosamente falso e estendeu a mão.

— Olha se não é o herdeiro! – Senti cada músculo do meu corpo se retesar com a maneira como me chamou. – Espero que meu irmão não esteja errado em te querer de volta. Você resolveu voltar para colocar a cabeça no lugar?

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Percebi que o tinha deixado no vácuo por um tempinho, com a mão estendida, e tive de me esforçar muito para não deixar um sorriso sarcástico escapar. A simples ideia de contato com ele me deixava com vontade de fugir e me esconder. Minha mãe e Leon já me fitavam em desaprovação.

Engoli o orgulho e o cumprimentei de volta. Até consegui retribuir o sorriso.

— Vou muito bem, e você? – disse, bastou para que ele entendesse o recado.

— Não poderia estar melhor. – Ele com certeza estava mentindo. Se não fosse por mim, teria chances muito maiores de herdar a empresa do irmão. Ironicamente, ele não sabia que seu caminho estava completamente livre, já que eu não queria nada disso.

Entre os outros rostos, eu não reconhecia nem se me contassem: tias, primas e derivados. Me lembrava de poucos e passei por todas sem mais detalhes. Boa parte provavelmente ainda morava na Inglaterra e voltaria logo, presentes apenas para "comemorar" a volta da minha mãe e talvez a minha.

Um importante detalhe é que eu era um dos únicos homens na família em algumas gerações, e foi isso que me trouxe o "título de herdeiro". Leon, Willian, eu e um namorado deslocado (que mexia no celular e me ignorou, mutuamente) da filha de Maryann, um pouco mais velha que eu. Por outro lado, Rin era uma das únicas mulheres entre os Kagamine... que nada tinham em comum com os Smith. As duas famílias poderiam facilmente começar uma guerra por serem tão opostas. É só uma breve explicação do motivo de Leon odiar tanto meu pai... ou Yuuto e Reiko, ou sei lá. Não sei de mais nada. Nunca soube.

A desgraça da fita cassete de Reiko e tudo que deixei para trás voltando para me assombrar, me impedir de fingir que estava tudo bem e interagir com as pessoas na sala. Tudo o que podia fazer era torcer para que o almoço ficasse pronto logo enquanto confirmava coisas sem ouvir direito e ria sem ânimo de piadas sem graça durante as conversas. Demora tanto assim para preparar batatas e queijo?

Pelo menos descobri a senha do wi-fi enquanto ouvia a conversa dos pombinhos isolados no sofá do canto.

— Então, Allen – Willian pigarreou, aproveitou de uma brecha aleatória para mudar a atenção do assunto –, o quê aconteceu com a...

— O almoço está pronto! – Maryann interrompeu sem querer, aparecendo na sala de repente. – Arrumamos a mesa lá de fora para aproveitar um pouco o sol e o dia bonito, é uma raridade.

— Não me interrompa, mulher! Não viu que estava falando?! – Willian, o Neandertal, ralhou enquanto todos levantavam empolgados e eu fui o único incomodado com a grosseria. Típico.

— Ah... Desculpe. – Ouvi o murmúrio de Maryann. – Não vi.

O grupo seguia até a porta dos fundos na cozinha, que dava para uma área de estar coberta do lado de fora. Eu fiquei poucos passos para trás durante as distrações, enquanto Ann esperava formalmente todos passarem antes de ir também. O Neandertal foi o último antes de mim, e, para completar o horror do momento, alisou a esposa de baixo a cima ao continuar o caminho.

Quase consegui visualizar a imagem do meu sangue fervendo e ultrapassando os limites de um termômetro. Só que ao invés de surtar, eu congelei em choque feito um completo inútil. Maryann não demonstrou nenhuma reação, além de desviar o rosto constrangida e seguir logo atrás.

Eu usei o que me restou de sanidade e alcancei Ann.

— Você pode se impor sempre que quiser. Não precisa aceitar isso – sussurrei ao lado dela. Recebi um sorrisinho piedoso e sem graça.

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— Não liga pra isso – respondeu baixinho, quase como se não entendesse a gravidade do ocorrido –, não foi nada.

Imaginei que Rin, no meu lugar, teria feito um escândalo imediatamente.

Invejei isso nela por alguns segundos no meu subconsciente. A coragem que ela mesma provavelmente não sabia que tinha e o quanto era boa. E eu não fiz tanto quanto poderia.

Isso entrou para a lista de coisas que vão me assombrar para sempre.

...

A mesa de fora é maior, e se me lembro bem, sempre que mais parentes se reúnem as refeições ou comemorações são feitas aqui se o tempo estiver bom. Não havia reparado antes no quanto o clima de São Francisco é nublado como o da Inglaterra. Coincidência ou conveniência, tanto faz.

Miriam, de má vontade, e Ann falavam do almoço. O arroz foi feito pensando no Japão (apesar do molho para acompanhar) e as batatas assadas com queijo foram "ideia minha". Acabei mais satisfeito com a minha quase escolha do que esperava, a comida estava realmente boa. Porém, no fundo, senti que estava sendo julgado pelo resto como culpado pela comida "sem graça".

— Lucy, me passe o molho, por favor – Ann pediu. Foi assim que descobri o nome, ou pelo menos o apelido, da filha dela.

Juro que nunca tinha visto a cara dessa menina até hoje, nem há muitos anos atrás. Ela e os pais estavam entre os que ficaram em Londres, e aposto que até hoje, Lucy nunca tinha vindo. Viajar e deixar os filhos para trás é coisa de família, pelo jeito.

Enfim, o almoço tinha potencial para ser o momento mais pacífico do dia, até que:

— Então, ninguém vai falar nada sobre os machucados desse moço? – Miriam abriu a boca, me encarando. – Acho que uma explicação nos acalmaria.

— Era isso o que eu queria perguntar e não consegui – Willian colocou lenha. – Se meteu em briga por alguma garota ou foi algum fã revoltado?

Os dois sorriram, de forma discreta, quase conspiratória. Minha mãe e Leon nos reprovavam e torciam em silêncio para que eu não falasse nada demais, me fitando nervosos. Lucy e o namorado me olharam rapidamente, o garoto revirou os olhos de forma suspeita e ela, pode ter sido paranoia minha, desviou com uma cara de nojo.

Nem todos aqui estão completamente alheios aos fatos.

As batatas perderam o gosto e eu demorei demais para mastigar de propósito, senti a pressão de todos os olhares.

— Você ainda sofre bullying na escola? É isso, não é? – Miriam continuou, me deu uma ideia do que responder.

— É, é isso. Ainda pegam no meu pé – foi tudo o que eu disse.

— Nunca fez nada pra revidar? – William quis saber. – Essas coisas acontecem mesmo no Japão? Achei que as pessoas lá fossem mais... pacíficas com essas coisas.

Ah, quem me dera se fossem mesmo.

— Eu tentei revidar, e foi assim que consegui uns hematomas – tentei resumir uma conclusão.

— Então que bom que seu avô te salvou. – Miriam sorriu, um sorriso cruel.

— Já chega – Leon encerrou, carrancudo, mas ainda paciente.

— Ainda é muito recente para falar disso, não é? Deixem ele se acostumar primeiro. – Maryann me defendeu. Trocamos outro sorrisinho em segredo. Dessa vez, um sincero.

Pensei na tia Ágata. No quanto eu já sentia falta dela mesmo antes de vir para cá. Mesmo fazendo menos de uma semana desde a última vez que nos vimos. Fui lentamente perdendo o apetite que já não era dos maiores e terminando de comer apenas para não fazer desfeita.

Tive de admitir para mim mesmo que de todo mundo, Ágata era a maior fonte de saudades e eu nem mesmo sabia explicar o por quê. Rin e os outros ainda tinham um calorzinho guardado comigo, recentes, como se meu cérebro não tivesse processado a nossa distância e queria acreditar que isso ia acabar logo.

Ágata... de alguma forma... Parecia já estar distante desde sempre. Sempre fazendo falta mesmo sem notarmos. Sempre tinha alguma força maior entre ela e Rin e eu.

Claro, era a mais diferente de todos os diretamente ligados ao nome da família. Boas influências aqui são ruins.

— Esses cortes da sua mão e da bochecha são do mesmo dia? – Miriam ignorou a ordem de Leon e continuou o assunto. – Ele tinha alguma arma ou objeto cortante?

O choque foi coletivo, ninguém tinha reparado ou questionado esse detalhe. Eu mesmo já queria abafar o caso por conta própria apenas para terminar de comer em paz.

— Estava, mas não foi nada demais.

— Eu disse já chega— Leon reforçou, um pouco mais rígido. – Não é assunto para um almoço.

Por acaso era um estilete?— ouvi uma vozinha bem baixa que ninguém mais ouviu. Vi um tapa discreto no ombro dele.

O namorado de Lucy.

Os dois realmente sabiam.

Lembrei que um dos cúmplices de Akihiro filmou toda a situação do começo da semana. O vídeo deve ter circulado por tempo suficiente para causar alguma polêmica antes de ser esquecido na imensidão da internet, com ajuda de denuncias e muito barraco online entre os mais radicais.

Não adiantava me importar com isso agora, e se aqueles dois quisessem criar confusão, já teriam feito. Provavelmente só queriam distância de mim, com uma provocação ou outra para não perder a emoção.

Passaram alguns minutos de silêncio quando Maryann se pronunciou de novo, depois que todos terminaram de comer.

— Fizemos um chazinho para encerrar a refeição. Vamos buscar...

— Ah, pode deixar que eu vou pegar a louça – William interrompeu.

Achei que iria fazer uma boa ação, mas não, nunca aconteceria. Quando levantou, pegou a própria taça vazia. Havia reclamado que o vinho estava no fim pouco antes, então só queria beber mais sem que ninguém soubesse.

— Você não vai conseguir trazer tudo sozinho. – Miriam se meteu antes que ele deixasse o local. – Ainda mais bêbado.

— Eu vou também, a louça é minha mesmo. – Minha mãe não deixou que isso continuasse e levantou antes de qualquer protesto. – Vem comigo, Allen, fazendo favor.

Parecia ruim, mas permissão para sair da mesa depois de assuntos tensos sempre é boa.

Exceto se existe possibilidade de bronca em seguida.

Por pura sorte ou sei lá, minha mãe parou na cozinha para pegar o chá enquanto pedia para que Willian e eu pegássemos a louça. Talvez ela só quisesse impedir que ele tivesse acesso a geladeira e as bebidas e não necessariamente ajudar, por mais que a louça fosse mesmo dela. Se me lembro bem, eram da mãe dela, Elinor, a avó que nunca conheci.

Willian e eu tirávamos peça por peça do jogo de chá antigo e bonitinho da cristaleira chique e colocávamos na mesa de jantar atrás de nós. Nenhum de nós sabia como levar aquilo em segurança sem demorar mais do que o necessário. Ele só estava enrolando, na verdade, enquanto eu tinha horror da ideia de quebrar qualquer coisa.

— Estou tirando os pratos da mesa – ouvi a voz de Maryann na cozinha, respondendo alguma coisa que minha mãe falou instantes antes e eu não escutei. – Não se preocupe, pode continuar.

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Ainda sim minha mãe deixou o chá de lado e foi atrás de Ann, dizendo que já deviam ter feito isso antes. Willian imediatamente parou a tarefa, foi até a geladeira na cozinha e voltou com um copo cheio de vinho, reclamando da falta de opções que nunca encontraria na casa do "irmão metido". Bebendo e movendo o jogo de chá ao mesmo tempo pela bandeja, com apenas uma mão, quase tremendo.

Até que um quase realmente virou um desastre de um bule, um açucareiro e várias xícaras e pires espalhando cacos por toda a sala de jantar.

— Opa, acho que eu... – ele olhou nervoso para a louça despedaçada no chão. Riu de repente, mas parou logo que processou o que fez. – Não conte pra ninguém sobre isso, certo?

Essa frase... Essa frase, não...

Fitei a bagunça no chão sem muita reação, era óbvio que isso ia acontecer desde o início. Aquilo devia ser uma das únicas coisas que minha mãe se importa de verdade, mas o problema deixou de ser esse em poucos segundos. Olhei para a cara de deboche de Willian, que continuou bebericando sem saber o que fazer. Não havia mais o que ser feito.

Minha mãe e Ann voltaram para a cozinha.

Não pensei duas vezes.

— Mãe! – chamei – O Willian quebrou a louça da vovó Elinor!

E com isso, ainda com a expressão de desinteresse, virei as costas antes de ver o rosto chocado de Willian.

— Ou, ei, ei! – Ele me alcançou antes que eu chegasse à porta para sair. Me virou de volta pelo ombro e me impediu. – Espera aí!

— Tira a mão de mim! – reclamei. Me livrei da mão dele de uma forma um pouco mais grossa do que pretendia, minha paciência acabou de repente, e com razão. Nem queria que tivesse durado tanto tempo.

— Espera, calma! – insistiu, rindo. – Pra quê essa revolta? É só porque eu sou seu concorrente com a empresa? Hormônio de adoles...

— Eu não aguento mais te tolerar sem fazer nada – interrompi, tentei voltar ao normal. – E eu não quero nada dessa empresa, só me deixa em paz. Não quero mais ver a sua cara.

Riu mais uma vez, como se fosse inocente e tudo não passasse de uma piada. O nível de controle em mim estava rapidamente chegando ao máximo e eu não sei o que eu poderia fazer se continuasse assim... nem Akihiro conseguiu isso de mim tão rápido.

— O que eu fiz pra isso? É só por causa do que viu hoje? – ele ousou perguntar, simplesmente sem levar a sério. – Você é homem, relaxa! Não tem que se preocupar com isso, a Maryann é minha esposa. E você não é a sua irmã. E não precisa desse chilique com a sua mãe, vocês não são mais crianças.

Perdi a fala, totalmente em choque com a quantidade de merda dita em tão pouco tempo por uma única pessoa. Não importa se ele não lembra, se não tem noção do que fez ou se já faz muitos anos, as consequências de algumas ações são imutáveis.

— Exatamente, não somos mais crianças. Não somos idiotas e você sabe o motivo. – Fiz questão de dizer cada sílaba com o máximo de veneno que eu pude. – Você me da nojo.

Dessa vez ele não me seguiu, mas ainda sim deu de ombros e voltou a procurar o copo que largou por aí. Eu juro que tentei, mas não consegui relaxar. Minha mãe já entrou no cômodo irritada, tentou me impedir de ir até a escada.

— O que foi esse escândalo?! Que vexame, Allen! – reclamou, chocada. – Por que essa implicância?

— Porque eu não esqueci de tudo o que aconteceu nessa casa, diferente de você – respondi, desviando dela.

Não fiquei para ver o resto, continuei até o meu quarto. Não tinha mais como voltar até a reunião desse jeito.