Déjà vu

Capítulo 44


Ao fim da segunda semana eu já tinha percebido que fazer parte de um “nós” com Harry era melhor do que muito bom, e ele parecia compartilhar dessa opinião, embora nenhum de nós dois tenha dito nada.

Para não ir até o hospital a toa, eu mesma tirei seus poucos pontos quando o corte já estava cicatrizado e refiz todos os dias o curativo, minimizando ao máximo o risco de infecções. Assim, sua única ida até lá aconteceu no décimo dia, quando Anne, que ainda era a responsável pelo pós operatório, o liberou dos retornos e só pediu que repousasse por mais trinta dias.

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Busquei na casa dele uma lista de coisas constituída basicamente em livros, com algumas peças de roupa específicas e a mochila com o computador e as coisas do trabalho, para que ele resolvesse caso algum problema urgente surgisse. Depois disso praticamente não saí de casa para nada.

Os amigos mais próximos vieram vê-lo nos primeiros dias, Mike e Lisa fizeram isso pelo menos duas vezes por semana, transformando minha sala num amontoado de pequenos brinquedos espalhados assim que Meg abriu a mochila rosa que trazia nas costas.

Me deitei atrás do Harry no sofá numa tarde um pouco mais fresca do que o normal para o mês de Fevereiro, e acompanhei enquanto ele assistia episódios aparentemente infinitos de uma série cujo nome me escapou. Enquanto ele se concentrava nos diálogos e ações na TV à nossa frente, me perdi pensando em uma coisa que eu precisava fazer até o fim das minhas férias: comprar um carro.

Enquanto Harry estava aqui e sem poder dirigir, eu usava o dele sem problemas, mas não poderia continuar fazendo isso quando ele retomasse sua rotina normal, o que aconteceria logo.

—Ursinho. - Chamei quando o sexto episódio seguido terminou.

—Uhn.

—Eu preciso comprar outro carro, vamos precisar dar uma saidinha.

—Você já tem uma ideia de qual?

—Vou comprar um igual o que eu tinha, mas o modelo novo. Só não pode ser branco.

Ele me olhou de canto, como se minha resposta fosse muito estranha.

—Você não vai nem olhar as opções? Não é uma calça, sabe, você não vai trocar amanhã.

—Eu gostava do meu carro. - Defendi minha escolha.

—Primeiro, você precisa de um carro automático.

—Eu não preciso, Harry. - Rolei os olhos, rindo da sua insistência.

—Quando tiver um vai ver que precisa, sim. Vai dizer que você não está super feliz usando o meu?

—Claro que estou, ele me leva aonde eu preciso ir. O meu também levava.

Ele sacudiu a cabeça, incrédulo, e se levantou com cuidado do sofá. O observei caminhar até a mesa de jantar e voltar com meu notebook, que estava ligado ali em cima, não sei por que motivo, porque eu mesma não o usava há dias.

—Vamos escolher direito isso. - Determinou, se sentando do meu lado.

Me acomodei no assento e respondi a um monte de perguntas, como quanto eu pretendia gastar, qual estilo mais me agradava, se eu tinha preferência de marca, entre outras coisas que ele precisou me explicar para que eu soubesse o que dizer. Depois de uma pesquisa muito mais extensa do que eu planejava inicialmente, cheguei a um consenso e escolhi meu próximo veículo.

—Você vai ver, Ratinha, automático é muito mais prático. - Comentou satisfeito, depois que cedi.

—Pensando por esse lado, quanto menos trabalho melhor.

Gastamos dois dias visitando algumas concessionárias, até eu fechar negócio em uma que ficava do outro lado da cidade, completamente fora de mão. Precisei de muita persuasão médica para proibir meu namorado de voltar dirigindo, quando na verdade ele não deveria estar nem fora de casa, e um dos vendedores nos acompanhou quando fomos até o apartamento dele deixar seu carro na garagem e voltamos para casa com o meu, que Harry pediu mais de uma vez para dar uma voltinha.

—Harry, você parece uma criança quando quer, sabia? - Perguntei a ele quando parei o veículo na minha vaga. Seu olhar despreocupado mostrou que ele sabia perfeitamente. - Quando você puder dirigir, fique a vontade, finge que o carro é seu. Ta bom assim?

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—Não bom como eu queria, mas está bom. - Respondeu sem se incomodar, se juntando a mim a caminho do elevador, os passos mais lentos do que o normal devido a sensibilidade que ainda sentia.

Nossos dias se dividiam entre conversas infinitas, nossos momentos carinhosos, cada vez mais frequentes ultimamente, brincadeiras, um cardápio diferente por dia e aquela leveza no ambiente que Harry trazia consigo quando chegava. Eu poderia facilmente me acostumar a ela sem interrupções, sabendo que ele sempre chegaria onde eu também estivesse.

Eu só tinha mais uma semana de férias, e embora ficar em casa fosse muito bom, eu já estava com um pouquinho de saudade da agitação do hospital. Apesar da teimosia, consegui fazer o Harry ficar de repouso durante esse tempo todo, mas para acompanhar eu acabava também não fazendo nada.

Estávamos em meio a uma partida de War, o tabuleiro sobre minha mesa de centro e cada um de nós de um lado, não que eu gostasse do jogo.

—Meu Deus do céu, você é muito ruim! - Harry reclamou com o rosto afundado nas mãos e me mostrou as cartas com seus dois objetivos. - Ganhei.

Peguei uma almofada atrás de mim e joguei na cabeça dele.

—Ai! Eu estou doente, Ratinha, perdeu o juízo? - Perguntou indignado, jogando de volta em mim e acertando a mão que coloquei como escudo.

—Não sou ruim, esse jogo é que é chato. - Me defendi e joguei as minhas cartas para ele.

—Não estava tão longe, Gin. - Tentou me animar, comparando meus objetivos com a disposição das peças no tabuleiro.

Olhei cética para ele, mas meu celular tocou eimpediu a resposta que eu queria dar.

—Oi, Ron. - Puxei o aparelho para mim e subi do chão para o sofá.

—Tudo bem com vocês?

Harry terminou de guardar as coisas na caixa e se juntou a mim.

—Estamos bem, e vocês?

—Também. Já almoçaram?

—Ainda não. - Respondi, me arrastando para o lado e dando espaço para o Harry se acomodar no meu colo.

—Vou aí, pode ser?

—Claro! - Falei empolgada, eu não o via desde que o Harry saiu do hospital.

—Não precisa se preocupar com nada, eu levo.

—Ta bom, até daqui a pouco. - Encerrei a chamada e deixei o celular de lado. - Ron está vindo almoçar com a gente.

—Então melhor eu me vestir.

Ele não fez uma cara animada em ter que levantar do sofá, mas foi até o quarto e voltou poucos minutos depois com um short e uma camiseta por cima da cueca boxer, única peça que usava até então, para se acomodar no mesmo lugar.

A campainha tocou minutos depois e um Ron em trajes confortáveis passou pela porta.

—Oi, Ron. - Me estiquei para alcançá-lo e dei um beijo em seu rosto.

Ele me esperou trancar a porta e foi comigo até o sofá onde o Harry estava sentado.

—E aí, moleque? Está se sentindo bem?

—Tudo bem, Ron? - Os dois se cumprimentaram e meu irmão se acomodou do lado dele. - Estou bem, ainda é um pouco incômodo quando me mexo muito, mas não dói mais já faz uns dias.

—Que bom. - Meu irmão esticou a sacola que trouxe para ele. - É yakissoba de frango, não é, o que você gosta? Igual o da Ginny…

—Isso mesmo, valeu.

—E o meu? - Perguntei olhando de canto para ele.

—Se troca, nós dois vamos sair. - Me convidou sem se mexer de onde estava. - Tudo bem ficar sozinho um tempo, Harry?

—Uhum. - Ele confirmou, mais preocupado em abrir a embalagem dos hashis e desprender um do outro. - Não se preocupe, Ratinha, não vou tentar descer os oito andares de escada nem fazer nada que me esforce.

Ron riu com ele, só revirei os olhos e fui até o quarto trocar meu pijama por uma roupa casual, no mesmo estilo das dele.

—Tchau, Ursinho. - Me abaixei na frente do meu namorado e trocamos um beijo rápido.

—Tchau, minha linda.

Meu irmão tentou disfarçar a risada com uma tosse, mas não teve sucesso. Os dois se despediram e saímos. Já dentro do elevador, a caminho da portaria, ele falou depois de um momento pensativo:

—Acho que se a Mione me chamasse de Ursinho eu dava um tapa nela.

—Se você der um tapa em pessoas normais, vai levar outro, se der um tapa na Mione, vai ficar sem braço.

—E se der um tapa em você?

—Sem braço também, mas meu corte será cirúrgico, o dela provavelmente com a faca de carne.

Sua risada nos acompanhou até entrarmos no carro, parado bem próximo à portaria. Não consegui me negar a sensação estranha de entrar no carro, olhando para os lados mais de uma vez, mas ignorei propositalmente isso, fingindo que nada nunca tinha acontecido.

Nos acomodamos num restaurante que não ficava longe da minha casa e pedimos nossos pratos no balcão antes de ocupar uma mesa apenas para duas pessoas.

—Então, como você está? - Ron me perguntou sem rodeios, os cotovelos apoiados na mesa e me olhando no fundo dos olhos.

Eu sabia que esse momento chegaria, então me acomodei na cadeira, disposta a falar tudo.

—Estou bem, mas é um pouco difícil dormir.

—Pesadelos? - Perguntou e se afastou para os pratos serem colocados na nossa frente. - Obrigado.

Também agradeci o garçom e o esperei se afastar.

—Sim, eu sempre acordo com o barulho exato do tiro, o coração parece que vai sair pela boca.

—Como é que foi no dia, Gin? O que aconteceu?

Contei com o maior número de detalhes que consegui, desde sair do prédio até chegar no hospital em completo desespero.

—Eu não pude fazer nada, Ron. - Senti o nó na garganta voltando e o empurrei para baixo respirando fundo. - Anos de faculdade, mais tempo ainda de prática naquele hospital fazendo tudo por todo mundo e eu não pude fazer nada por ele. Justo por ele!

—Você conseguiria fazer, se pudesse?

—Não sei, minhas mãos tremiam tanto que eu não consegui desabotoar a camisa que ele estava usando.

Confessei isso num tom de desculpa que até a mim foi perceptível.

—Você fez o que deu, Gin, e no fim deu tudo certo. - Apertou minha mão por cima da mesa. - E eu fico muito feliz e aliviado que ele esteja bem e nada demais tenha acontecido, me preocupei de verdade com vocês dois.

—Eu perdi o chão, Ron, quando o Harry apagou na minha frente naquela calçada, sem nada que eu pudesse fazer, tudo sumiu. Eu não ouvi nem o barulho da ambulância chegar, só senti quando os paramédicos me tiraram de cima dele.

Ele ouviu como se quisesse de alguma forma tirar aquele sentimento de dentro de mim, apertando minha mão.

—As treze horas que ele dormiu depois da cirurgia foram eternas, eu acho que não vou esquecer disso nunca porque até hoje se acordo a noite eu preciso ver se ele está só dormindo mesmo do meu lado.

—Claro que vai esquecer, ainda é muito recente. - Me tranquilizou, colocando um nacho na boca. - E como você relacionou com aquilo?

—Aquilo? - Perguntei sem entender a princípio, tomando um gole do meu suco.

—Ele é o seu amor, Gin, e você quase o perdeu.

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Senti um incômodo frio por dentro ao ouvir a comparação com o que aconteceu aos nossos pais.

—Você quer saber o que eu pensei na hora do desespero? - Ele concordou com um aceno. - Pensei em com quem eu ia dividir a minha vida agora, porque eu realmente gosto de dividi-la com ele.

Seu sorriso satisfeito para mim indicava com todas as letras um sono “viu? Não há nada errado com você”. Se eu dissesse que ainda não tinha considerado isso, estaria mentindo, então sorri também.

—E como estão sendo esses dias com ele em casa?

—Estão sendo ótimos, estou realmente adorando dar essa parada na rotina, ficar na cama o dia todo, o Harry ali à distância de um grito. É gostoso ficar com ele o tempo todo…

—Mas? - Perguntou com a sobrancelha erguida, quando notou minha expressão de dúvida.

—Mas a Anne tem razão, não é? Eu não sou a família dele. Não sou nada dele, aliás, só a namorada. - Encolhi os ombros ao final.

Meu irmão só manteve a pose pensativa por alguns minutos antes de perguntar:

—E você quer ser?

—Quero. - A resposta saiu automática, porque já estava na ponta da língua.

Ele deu uma daquelas respirações fundas que sempre soltava quando não sabia se gostava ou não de algo.

—Melhor você agir logo, então, se quer que ele seja sua família. - Aconselhou quase sério. - Porque isso eu não posso fazer por você, já sou casado.

Ao fim nós dois estávamos rindo com vontade.

—Sabe, eu gosto desse moleque. - Comentou casualmente. - Mas não conte a ele.

—Pode deixar, vou manter a sua pose. - Prometi irônica.

—E tenho quase certeza que você só não é a família dele, ainda, porque ele está esperando algum sinal seu.

—Você acha isso mesmo? - Perguntei com a sobrancelha erguida.

—Acho.

—Eu também, mas considerava a possibilidade de estar vendo o que eu quero.

Ele negou com a cabeça e riu rolando os olhos para mim, como se eu não fizesse sentido.

—Se joga logo no pouquinho que falta e vai aproveitar como você quer, não tem mais o que pensar nesse seu caso. Estão os dois perdidos.

—Uma vez eu disse pra Mione que o Harry estava bagunçando a minha vida e ela respondeu que uma baguncinha de vez em quando é bom. Preciso dizer a ela qualquer dia que ela tinha razão, mesmo sabendo que ela vai repetir “eu não disse?” por dois meses.

—Vai mesmo, mas diga porque ela vai ficar feliz e eu adoro a Mione feliz.

Olhei com o cenho franzido para ele e nós dois rimos.

—Podemos ir? - Olhei no relógio e vi que já tínhamos saído de casa há quase duas horas.

—Vamos, também deixei a minha criança me esperando. - Se referiu a Rose, mas aquele “também” nos fez rir outra vez.

Pagamos a conta e ele me levou até em frente ao prédio, na vaga destinada ao desembarque.

—Obrigada, Ron, por tudo. - O apertei em um abraço forte, de olhos fechados.

—Sempre que precisar. - Garantiu, me prendendo contra seu peito. - E vai me contando as novidades.

—Pode deixar, você será sempre o primeiro a saber. - Dei um beijo em seu rosto e saí do veículo.

Quando entrei em casa encontrei o Harry cochilando na minha cama, e não demorei nem um minuto para me juntar a ele e ficar pensando em tudo que o Ron tinha dito enquanto o olhava dormir. Para mim não havia mais dúvidas, para ele eu acho que elas praticamente nunca existiram.

Se esse acidente mudou alguma coisa o meu modo de pensar no que diz respeito ao homem dormindo tranquilamente do meu lado, é que as coisas mudam rápido demais para que deixemos de aproveitar o que temos agora.

Harry já estava bem melhor, sem os desconfortos do início e andando já quase na velocidade normal, então tomamos um banho pouco depois que ele acordou e fomos jantar em um lugar diferente. Eu sabia que ele achava irritante passar tanto tempo sem fazer nada, então usamos esse passeio para nos distrair bastante, sem a menor pressa de voltar para casa.

Resultado disso é que quando chegamos mal tivemos tempo de nos acomodar sob o lençol fino e o cansaço nos alcançou, me fazendo mergulhar em um sono profundo.

Eu sabia que estava dormindo, mas sentia a aflição aumentando, pressionando até eu me sentir sufocada. Continuei tentando lutar contra aquilo, mas era em vão, a única coisa que eu podia fazer era esperar e tentar respirar como pudesse com todo aquele peso em cima de mim. As cenas dentro da minha cabeça foram mudando muito rápido, entrando e saindo de foco a uma velocidade agonizante, até que veio o barulho, seco e alto, e eu abri os olhos.

O silêncio que encontrei ao acordar era reconfortante, embora meu ouvido ainda zunisse com o recente barulho dentro da minha cabeça. Ofeguei repetidas vezes, os olhos arregalados e fixos no teto, se adaptando à escuridão que aos poucos cedia com as luzes que vinham de fora.

Quando eu já conseguia distinguir as formas dos móveis, olhei para o lado para observar Harry dormindo tranquilamente, mas me surpreendi com aqueles olhos verdes bem abertos, fixos em mim. Sustentei seu olhar por um tempo sem falar nada, ele também ficou quieto, exceto pela mão que saiu do colchão entre nós e pousou sobre o meu peito, o coração retumbando contra sua palma.

—Com o que você sonha? - Perguntou tranquilo.

—Você nota?

—Quase todo dia, mas nem sempre você acorda.

—O que eu faço?

—Você se mexe muito, resmunga, respira com mais dificuldade, depois de um tempo volta a dormir quietinha.

O encarei por um minuto inteiro sem dizer nada.

—Você quer mesmo saber?

—Se você quiser me contar, eu não ligo de dividir.

—Com você. - Tomei fôlego para dizer o resto. - Um monte de sangue, o desespero daquele dia e o barulho do tiro que sempre me acorda.

Ele não falou nada, só me acariciou de leve com a mão que estava em mim.

—Desculpa, Harry. - Pedi com a voz tão magoada que senti um nó na garganta. - Eu já me desculpei no hospital enquanto você ainda estava dormindo, mas preciso fazer isso de novo e direito. Eu não queria que nada disso acontecesse, só queria te ver, eu estava com saudade. Se eu tivesse sequer imaginado, não teria nem saído do hospital. Desculpa, por favor.

—Ei, Ginny, que é isso? - Me repreendeu e se equilibrou sobre o cotovelo para me olhar de cima, eu continuei deitada como estava. - Não há culpa nenhuma da sua parte para que eu precise desculpar.

—Eu já repeti tanto na minha cabeça as coisas que eu poderia ter feito diferente naquele dia, e que provavelmente não tivessem resultado nisso.

—Provavelmente. - Deu ênfase à palavra. - Ou provavelmente resultassem em algo pior, provavelmente fizessem você ser abordada sozinha, e essa possibilidade me gela até a medula, ou provavelmente evitassem mesmo tudo, mas quem é que pode saber?

—Mas eu ainda queria que você me desculpasse, porque eu me sinto culpada.

—Se é tão importante, eu te desculpo. - Deu de ombros, como se para ele não fosse um problema fazer isso. - Mas também agradeço, era só você, eu e mais nada ali, e você fez o que podia com muito mais calma que eu teria se você tivesse, sei lá, cortado o dedo.

Ri da comparação exagerada, mas ele se manteve sério.

—Não são os primeiros que você tem, não é? Pesadelos, eu quero dizer.

Neguei com a cabeça, sem falar nada.

—E o que te faz dormir melhor?

—Eles vão embora, uma hora, é só esperar. Não estar sozinha já ajuda.

Harry deitou outra vez de lado no travesseiro e abriu os braços para mim:

—Então vem cá, chega mais perto então.

—Fico com medo de te machucar.

—Não vai, você dorme bem quietinha assim. - Insistiu, sem margem para argumentos.

Me arrastei no espaço entre nós e me encostei nele, o rosto grudado eu seu peito e o ombro servindo de travesseiro, seus braços se fecharam à minha volta.

—Bons sonhos, minha linda. - Desejou e me deu um beijo na testa.

—Obrigada. - Devolvi onde meu rosto estava encostado.

A última semana passou rápido demais, e quando percebi já era domingo a noite, véspera do meu retorno ao trabalho. Harry ainda ficaria em casa por mais uma semana, e eu estava deitada de bruços na caminha cama, olhando com desagrado enquanto ele colocava na mochila as roupas que tinha trazido.

—Por que você quer ir embora? - Perguntei emburrada, pela quinta vez.

—Porque você vai voltar a trabalhar e eu já estou há um mês sem nem ir na minha casa, Ratinha. - Explicou de novo, a mesma coisa que já tinha dito.

—Mas você pode ficar aqui.

—Se eu vou ficar sozinho, prefiro ficar lá em casa, amor. - Falou enquanto empilhava os seis livros que estavam sobre a minha penteadeira. - Você não vai estar aqui se eu precisar de alguma coisa que tenha ficado lá.

Bufei contrariada e me virei de costas no colchão, olhando para o teto ao invés dele fazendo a mala.

—Vá consciente que não estou gostando disso. - Alertei com o dedo em riste.

Harry riu e se inclinou sobre mim, a cabeça pairando sobre a minha.

—Também não estou, mas um mês acaba. - Deu de ombros. - Agora as coisas continuam como eram.

Me deu um selinho rápido e continuou o que estava fazendo.

—Amanhã você me deixa lá quando sair para o trabalho?

—Deixo. - Falei a contragosto. - Você vai mesmo ficar bem sozinho?

—Vou sentir falta do tanto que você me mimou, mas vou ficar bem. Estou com saudade de casa.

—Eu estou com saudade do trabalho, nem por isso vou morar no hospital.

Sua risada preencheu o quarto.

—Não me parece mesmo um lugar muito aconchegante para se viver.

—Se você for sair toma cuidado, ta?

—Pode deixar, mas não pretendo.

—E nada de ir para a academia ainda. - Alertei ameaçadora.

—Sim, minha doutora.

—E você me liga se quiser alguma coisa ou, sei lá, só falar comigo. - Pedi manhosa, arrancando dele uma risada.

—Só vou estar a sete minutos daqui, Ratinha, como sempre estive.

Ele tirou a mochila de cima da cama e se acomodou ao meu lado, me puxando para um abraço com o rosto no meu pescoço. Afastei o cabelo para sentir a respiração dele direto na minha pele.

—Vou sentir sua falta do mesmo jeito.

—Eu também. - Confirmou me apertando mais contra seu corpo.

—Estou odiando já ter que ir trabalhar.

—Está nada, amanhã quando você chegar lá e ver um monte de ossos de fora, os gritos agonizantes dos pacientes e tudo vermelho de sangue, seu sorriso vai até aumentar e você vai se perguntar por que ficou tanto tempo longe daquele parque de diversões.

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—Não vejo meus pacientes como parques de diversão. - Neguei com o cenho franzido.

—Nem quando eles estão anestesiados? - Me olhou com a sobrancelha erguida.

Ri da pergunta para a qual ele já sabia a resposta.

—Um pouquinho, mas não é no mau sentido.

—Eu sei, eles saem de lá funcionando e você feliz, todo mundo ganha.

—Estou com saudade do Colin e da Luna.

—Eles estarão lá amanhã?

—Sim, já combinamos de almoçar juntos.

—Você não vai se empolgar com eles e esquecer de mim, não é? - Fez manha também.

—De jeito nenhum. - Dei um beijo demorado em seu rosto para enfatizar minha negativa. -Além disso, vou ter tantos pacientes que nem vou ficar muito tempo com eles.

—Pior ainda, eu tenho que ser o paciente preferido.

—Você é. - Ele me apertou mais e aspirou o cheiro do meu pescoço. - Viu? Você também vai ficar com saudade, por que não fica aqui?

Harry riu da minha última tentativa, mas não falou nada. Passamos o resto do dia grudadinhos na minha cama, namorando, e nem percebi quando o sono me venceu, já mais de meia noite.

Quando meu despertador tocou no dia seguinte nós dois nos levantamos com tempo suficiente para tomar café juntos, mas trocamos a refeição por uma atividade mais gostosa que me fez sair de casa um pouco atrasada. Depois de uma despedida cheia de beijos e abraços em frente ao prédio dele, cruzei as ruas até o hospital para voltar à rotina de antes, aquela que eu não queria mais.

Andar pelos corredores do hospital com meu jaleco branco de novo foi reconfortante, eu estava mesmo com saudade daquele clima tão familiar para mim. Ficar em casa era ótimo, mas passar os dias ali era uma parte tão importante quanto para me manter feliz.

O primeiro dia já me presenteou com uma cirurgia de algumas horas logo no período da manhã, a adrenalina de correr do meu consultório à emergência me trouxe todo o ritmo de volta.

Quando saí do centro cirúrgico, encontrei Colin e Luna me esperando do lado de fora para um abraço triplo e cheio de risadas, todos nós livres para um almoço que achamos melhor fazer no shopping, assim eles poderiam me contar todas as fofocas dos meus dias de ausência.

Depois de ouvir sobre a enfermeira que estava grávida, o anestesista que foi afastado porque está doente e do residente que estava dormindo com uma cardiologista casada, o assunto se voltou para mim.

—E como está seu paciente VIP? - Luna perguntou, mordendo uma batata frita.

—Bem, ele voltou para a casa dele hoje, o deixei lá antes de vir para o trabalho. - Amassei meu guardanapo e deixei dentro da caixa do lanche. - A recuperação foi tranquila, me certifiquei de que ele ficasse quietinho em casa o tempo necessário.

—E você ficou com ele esse tempo todo na sua casa? - Colin perguntou com um sorrisinho sugestivo.

—Fiquei, eu não ia deixá-lo sozinho.

—E como foi o test-drive? - Luna se juntou à sua expressão.

—Melhor impossível, nenhum de nós tentou matar o outro.

Nós três rimos com a minha resposta.

—Vocês dois nem brigam, não vão se matar nunca. - Colin deu de ombros. - Eu teria arrancado os olhos do Ced, com certeza.

—Por que eu brigaria com o Harry, tadinho?

—Tão bonzinho, né, tadinho? - Luna zombou.

—Estou só imaginando como vai ser chato agora que ele voltou para a casa dele.

—Você se acostuma de novo. - Deu de ombros.

Enquanto minha amiga terminava seu refrigerante, Colin me olhou como se me lesse e negou com a cabeça, rindo. Sorri de volta, conspiratória, e mudei de assunto.

—E o Nev, está bem?

—Sim, está viajando a trabalho, volta semana que vem.

—E o Ced? - Me virei para o Colin, agora se atracando com uma torta de maçã.

—Lindo como sempre, renovando meu guarda roupa para o inverno, embora ele tenha feito o mesmo no inverno passado, e me deixando a par da vida amorosa de todas as costureiras que trabalham para o ateliê. - Comentou casualmente, enquanto nós duas ríamos. - Aliás, ele mandou beijos pro Harry e pra você.

—Obrigada, outro para ele.

—Ai, droga, preciso voltar. - Luna olhou a tela do celular com o cenho franzido e se levantou apressada. - Colin, pode terminar sem pressa, a Gin te faz companhia. Desculpa, gente.

Antes de respondermos ela saiu apressada em direção à saída e nos deixou sozinhos.

—Então… - Meu amigo se inclinou na minha direção com um sorriso cúmplice. - Como foi esse mês?

—Eu quero essa vida, gato. - Confessei sem me intimidar.

O sorriso dele para mim aumentou, embora ele não parecesse surpreso com o que ouvia.

—Claro que quer, só faltava mesmo a vida te dar uma pancada pra você acordar. - Rolou os olhos para mim. - Vocês dois já passam tanto tempo juntos e se dão tão bem, o que falta?

—Não falta nada, eu acho.

—Meu Deus, eu vivi pra ver Ginny Weasley de quatro por alguém! - Ergueu as mãos em sinal de agradecimento, completamente dramático.

Esperei rindo enquanto ele terminava seu agradecimento silencioso, as mãos para o céu.

—E você sabe de quem é a culpa, né? Sua, que achou que eu merecia um paciente bonito pra animar meu dia.

—Sou um ótimo amigo, gata, não direcionaria um paciente daqueles para mais ninguém.

—Nesse caso então só tenho que agradecer.

—O bom de vocês continuarem juntos é que de vez em quando ele aparece lá no hospital pra deixar meu dia mais bonito também.

—Ced que te ouça. - Ameacei com a sobrancelha erguida.

—Ele vai, no máximo, lamentar por não estar lá nessas ocasiões. Meu pavãozinho não é cego, gata. - Soou orgulhoso ao dizer.

Rolei os olhos para ele.

—Vamos voltar? Daqui a pouco nos chamam também, e tenho umas consultas a tarde.

Deixamos a bandeja no local destinado e fizemos o caminho de volta para o hospital enquanto eu ouvia como tinha sido o feriado que os dois passaram juntos numa cidade próxima, enquanto eu estava de férias.

—Tchau, gato.

Ganhei um beijo no rosto quando me estiquei para ele e tomei o caminho do meu consultório.