Déjà vu

Capítulo 2


Minha noite tranquila de sono foi interrompida três horas e meia depois com um acidente envolvendo dois caros e uma moto, resultando em uma fratura exposta no fêmur do motociclista e uma lesão de primeiro grau na vértebra T12 de um dos motoristas.

Demorei quarenta minutos para entrar correndo pela porta do hospital e encontrei o paciente com a fratura já limpa, apenas me aguardando para a cirurgia que faria sua perna parecer novamente uma perna. Me apresentei e o acalmei como de costume, expliquei os procedimentos da cirurgia e disse que o faria dormir agora e quando ele acordasse encontraria alguns pinos em sua coxa que seriam importantes para que sua recuperação fosse perfeita.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Pedi ao enfermeiro de plantão na ala cirúrgica que o preparasse para o procedimento enquanto eu fazia o mesmo mudando minhas roupas, colocando luvas e toucas e higienizando as mãos. Com o paciente já sedado e anestesiado iniciei o processo de cortar, limpar, raspar, perfurar e parafusar os pinos em seu fêmur até que estivesse totalmente no lugar em que deveria.

Quando terminei, quatro horas depois, o sol de sábado já brilhava alto no céu e eu estava mais cansada do que nunca. Preenchi seu prontuário com informações relevantes para o pós-operatório e apontei as horas de trabalho em meu registro. Notifiquei a equipe de enfermagem que o paciente acordaria em breve e fui para casa dormir até três da tarde, horário em que eu deveria voltar para vê-lo e aproveitar o período de visitas para conversar com a família sobre os cuidados na recuperação.

Das cento e sessenta e oito horas da última semana eu trabalhei oitenta e duas, o que me deixava dezessete horas acima do limite máximo estabelecido. Isso resultou no chefe de cirurgia indo ao meu encontro no corredor para determinar que se eu ainda quisesse ter um emprego iria embora nesse momento e voltaria apenas para o plantão noturno da segunda-feira.

Quarenta e oito horas de folga. Me senti perdida, até mesmo quase desesperada, com tanto tempo livre para ficar em casa sem ninguém.

A primeira coisa a ser feita, e prioridade na vida de qualquer pessoa da área da saúde, era dormir. No caminho para casa comprei um almoço reforçado e depois de comer uma refeição decente apaguei na minha cama até a manhã de domingo.

Acordei descansada e relaxada, mas precisando urgentemente ir ao mercado se não quisesse sair de casa a cada vez que ficasse com fome. Aproveitei o clima agradável e quente para usar um vestido leve de estampas florais e rente ao corpo e sandália rasteira. Desperta e disposta após a ótima noite de sono, dirigi os poucos quarteirões que me separavam do meu destino e cruzei a porta de entrada quando metade da cidade ainda nem havia acordado.

Passei direto pelas sessões de roupas e eletrônicos e fui à minha parte preferida: cereais e chocolates. Peguei os que eu mais gosto e coloquei dentro do carrinho de compras que eu empurrava à frente, e só então saí à procura de comida de verdade. Parei em frente à prateleira de espaguetes e olhei concentrada para eles tentando entender a diferença entre o número oito e o número nove, que para mim eram exatamente iguais, mas fui interrompida por uma voz já familiar:

—Três encontros completamente casuais e inesperados em menos de uma semana. Qual a probabilidade estatística de que isso aconteça em uma cidade desse tamanho, Dra. Weasley?

Virei para encontrar um Harry sorridente e lindo em uma bermuda, camiseta e chinelos, confortavelmente apoiado no meu carrinho de compras.

—É com certeza menor do que a probabilidade estatística de que você esteja me seguindo, não tenho dúvidas. - Respondi apoiando os braços no lado oposto a ele e me acomodando para a conversa agradável e provocante que eu previa dali em diante. - Como está o braço?

—Melhor, eu acho, pelo menos não senti nenhuma dor depois que você o quebrou novamente. - Respondeu casualmente olhando para o gesso apoiado na tipoia. - E como foi sua noite de sono?

—Não foi. - Respondi simplesmente e ele me olhou curioso. - Me ligaram no meio da madrugada para atender a vítima de um acidente com fratura exposta no fêmur. Passei a noite consertando uma perna quase destruída.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Achei graça de sua tentativa mal sucedida de disfarçar a cara de nojo enquanto eu falava e ri com isso antes de continuar a conversa.

—E a despedida do seu amigo? - Perguntei interessada.

—Foi muito divertida, mas devo dizer que o suco de melancia daquele bar é péssimo. Sugiro que peça o de manga, mil vezes melhor. - Contou satisfeito com sua sugestão.

—Então você seguiu minha recomendação de não ingerir álcool? Muito bem. - Elogiei e ele agradeceu com um aceno de cabeça.

—Para uma médica que vive ditando regras sobre o que não ingerir, você come muito mal. - Comentou avaliando descaradamente minhas compras. - Veja isso, só doces e calorias. Você deveria seguir seus próprios conselhos e manter uma alimentação mais saudável, quem sabe assim parasse de olhar para um simples espaguete como se ele fosse te morder.

—Trabalhei mais de oitenta horas na última semana, mereço uma trégua no meu dia de folga. - Justifiquei sem dar importância à sua observação. - Eles não iam me morder, mas eu estava tentando descobrir a diferença entre o número oito e o número nove, porque deve haver alguma ou então essa informação não estaria impressa ali.

—Aproveitando que você está de folga, posso preparar uma receita deliciosa de espaguete para você e te explicar a diferença entre eles durante o jantar. - Sugeriu sorrindo com charme.

—Acho que não vou correr esse risco. - Neguei, mas continuei onde estava.

—Gostei da moda praia, Dra. Weasley. - Comentou ignorando que eu havia acabado de dizer não a ele novamente e olhando minha roupa totalmente diferente das que eu vestia nas outras vezes em que nos encontramos.

—Quanto a você, prefiro a moda casual dos encontros anteriores. - Opinei sinceramente, fazendo-o rir.

—Vou fazer uma nota mental então de nunca mais me vestir assim. Devo incluir um terno na lista de preferências?

—Não, careta demais. Exatamente daquele jeito, estava perfeito.

—Ganhei um elogio. - Comemorou com um sorriso e um soco estranho no ar. - Isso quer dizer que mudei de status e posso ter seu telefone?

Gargalhei e arrumei o cabelo atrás da orelha, ele não desistia e isso tornava cada vez mais difícil continuar negando.

—O status infelizmente ainda é o mesmo, apenas uma relação profissional. - Afirmei, lamentando internamente ter prestado tanta atenção nas inúteis aulas de ética.

—Estamos em um mercado, Dra. Weasley, não vai me dizer que além de médica é operadora de caixa nas horas vagas? - Brincou com um sorriso de canto.

—Eu poderia ser, tem milhares de coisas que você não sabe sobre mim. - Mantive o tom provocante e brincalhão das nossas respostas.

—Como por exemplo você provavelmente ser uma ratinha muito pesada para um gato com a pata quebrada? - Questionou com malícia.

—Por exemplo. - Afirmei e sorri.

—Você é muito interessante, Dra. Weasley. - Ele falou como um elogio e eu quase me derreti com a sensação que sua frase me causou.

—Você também é um paciente bem interessante, Harry. - Devolvi a gentileza e ele negou com a cabeça quando me ouviu dizer bem claramente a palavra "paciente". - Foi bom te ver de novo, cuide-se.

Me despedi e ele desencostou do meu carinho para que eu pudesse ir embora.

—Bom te ver também. - Contestou quando comecei a andar e me chamou novamente antes que eu chegasse ao fim do corredor. - Dra. Weasley? - Me virei e esperei que ele continuasse. - Não vai levar o espaguete?

Não consegui conter o sorriso antes de responder:

—Desisti, é muito trabalhoso.

—Você desiste muito fácil, eu sou bem mais insistente que isso. – Informou casualmente, mas foi o suficiente para me deixar ansiosa pelo próximo acaso que nos colocaria frente a frente.

—Bom saber disso, deve ser uma qualidade muito valorizada em um economista. – Não escondi o fato de que olhei seu prontuário e sorri ao fim da frase.

Ele também sorriu satisfeito e piscou para mim antes de eu me virar novamente e sumir de seu campo de visão.

Eu não gostava e não estava acostumada a ter tanto tempo livre e há anos me ocupava em preencher todos os que eventualmente apareciam contra minha vontade, o que me levou a ficar ansiosa e sem saber o que fazer quando mesmo depois de limpar a casa toda olhei para o relógio e vi que ainda tinha vinte e quatro horas de folga.

Enchi a banheira e me afundei na água quente com os fones devidamente colocados para preencher o silêncio. Tomei um banho demorado enquanto um ou outro pensamento desconexo ocupava minha cabeça e já sentia minha pele ficando enrugada quando minha cabeça foi invadida pela ideia de convidar minha amiga mais próxima e vizinha de andar para sair um pouco.

Me enxuguei e ainda enrolada na toalha caminhei até a cozinha usar o interfone, que era o meio de comunicação mais rápido entre os apartamento

—Olá. - Hermione atendeu casualmente, a voz um tanto abafada indicando que ela estava mastigando alguma coisa.

—Ei, tudo bem?

—Bem, e você?

—Também. Quer sair para algum lugar? Estou de folga hoje. - Convidei e aguardei sua resposta.

—Em pleno domingo? Ninguém se arrebentando pela cidade? - Perguntou também, ao invés de responder meu convite.

—Provavelmente sim, mas estourei as horas permitidas na semana passada, só posso voltar amanhã.

—Então vamos aproveitar. - Ela se decidiu empolgada. - Aonde vamos?

—Sei lá, pode decidir. Você tem mais prática nisso do que eu. - Deixei a cargo dela a escolha do lugar e me antecipei antes que ela falasse. - O que você estava comendo?

—Bolo de chocolate, quer?

—Quero. - Aceitei já ansiosa, porque se uma coisa ela fazia bem era bolo. - Vou me trocar.

—Eu também. Meia hora?

—Sim, é suficiente.

—Até mais. - Se despediu e desligou antes que eu respondesse.

Me vesti propositalmente evitando qualquer peça branca e a encontrei no hall na hora marcada. Mione estava trancando sua porta quando cheguei e me entregou uma vasilha cheia de um bolo aparentemente ótimo. Coloquei o que ela me entregou na geladeira antes de fechar também a minha casa e sair em direção ao local que ela havia escolhido, mas que eu ainda não sabia qual era.

—Aonde vamos? - Perguntei acomodada no banco do carona enquanto ela guiava tranquilamente pelo trânsito calmo de domingo à noite.

—Um barzinho legal que fui com seu irmão uns meses atrás, música ao vivo e ambiente aconchegante. – Respondeu tranquilamente, sem demonstrar nada além do que deveria para a irmã do cara com quem se sai de vez em quando.

Conheci Hermione quando me mudei para minha casa atual, seis anos atrás. Isso aconteceu logo que terminei a faculdade e decidi que era hora de deixar Ron em paz e morar sozinha. Por motivos completamente diferentes dos meus ela também tinha a casa só para ela, era o único ponto em comum entre nós, mas foi suficiente para que ela virasse minha amiga mais próxima.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Meu irmão entrou em sua vida mais ou menos junto comigo, mas demorou alguns bons meses até que saíssem pela primeira vez. Demorou mais ainda para que eu descobrisse, e nessa história toda já eram seis anos de enrolação mútua. Ela tem a mesma idade que eu e apesar de demonstrar pouco ou nada eu sei que gosta dele, mas Ron é dez anos mais velho que nós duas e não fala de sentimentos com ninguém, o que deixa a situação um pouco delicada para ela.

Mione é discreta, então os poucos detalhes que me contou da relação com ele foram suficientes para que eu saiba que não há compromisso nem cobrança, o que explica os curtos relacionamentos que ambos tiveram com outras pessoas nesse tempo todo. Eles poderiam ser classificados como amigos com benefícios, não fosse o detalhe de que nunca foram realmente amigos.

Por isso não questionei quando ela o citou e apenas assenti, aproveitando a sensação de sair com uma amiga e não ter responsabilidades por um final de semana inteiro. Conversamos banalidades e rimos bastante durante boa parte da noite, sentadas sozinhas em uma mesa de canto. Hermione não bebeu nada alcoólico porque estava dirigindo, mas eu me permiti desfrutar de um ou dois drinques.

Eu estava de costas para o resto do lugar e não conseguia me livrar da expectativa de mais um encontro casual com meu paciente mais insistente. Eu julguei estar sendo discreta com minhas olhadas por sobre o ombro, procurando seu rosto familiar que parecia ultimamente sempre estar no mesmo lugar que eu, mas isso não passou despercebido à minha companheira de noite:

—Quem você está procurando? - Mione perguntou enquanto eu inspecionava a nossa volta mais uma vez.

—Ninguém, por que? - Respondi olhando para ela e disfarçando.

—Está sim. - Constatou me olhando com suspeita. - Quem é?

Nem pensei em negar quando ela perguntou novamente, apenas apoiei meu copo na mesa e respondi:

—Um paciente.

—Paciente? Agora que a história fica boa. - Comentou empolgada. - Gostoso?

—Totalmente. - Respondi enfática para ela entender o quanto. - Ele quebrou a mão e eu o atendi na sexta-feira, depois disso nos encontramos casualmente no mesmo dia à noite em um barzinho e hoje de manhã no mercado.

—Olha, o destino trabalhando. - Zombou e nós rimos.

—Ele pediu meu telefone várias vezes, mas eu não dei porque isso é vetado pelo nosso código de ética.

—Bom, se é vetado então melhor assim, não é?

—Não. - Respondi rápido e ela me olhou com as sobrancelhas arqueadas. - Quer dizer, sim. Não sei. Se ele pedisse mais uma vez daquele jeito eu passaria até a senha do banco para ele. - Exagerei e ela riu, negando com a cabeça.

—Então deveria ter passado, oras. - Deu de ombros como se fosse simples.

—Agora já foi, não tem mais como. - Dei de ombros deixando o assunto de lado. - Quando nos encontramos hoje ele perguntou se eu queria jantar na casa dele, eu ri na hora e levei na brincadeira, mas passei o dia inteiro divagando sobre como seria se eu tivesse topado.

—Você sabe como teria sido.

—Sim, por isso fiquei imaginando. - Respondi obviamente e ela me acompanhou na risada.

—Vai que surge outro encontro casual, nunca se sabe.

—Seria coincidência demais, nem me animo com isso. - Dispensei sua sugestão. - Além do mais, ele ainda é meu paciente.

—Péssima hora para ser médica, não? - Brincou, sabendo que eu adorava minha profissão mais do que tudo.

—Sempre é uma ótima hora para ser médica, é uma péssima hora para ser responsável, isso sim. - Esclareci meu ponto de vista e ela concordou.

Pedimos algo para comer e continuamos nossa conversa por mais uma ou duas horas, só então nos acomodamos novamente no veículo e cruzamos as ruas até nossa casa. Fiquei boa parte da noite matando o tempo com a TV ligada e dormi durante o dia, assim não ficaria com sono durante a noite enquanto trabalhava.

Cheguei ao hospital e encontrei Colin no balcão do pronto socorro com uma pilha de formulários nas mãos.

—Boa noite, gato. - Cumprimentei quando cheguei ao seu lado e trocamos um beijo no rosto. - O que tem para mim?

—Olá, gata. Está bonita. - Me elogiou separando algumas pastas.

—Obrigada. - Agradeci vagamente, ajudando-o a procurar.

—Aqui. - Me entregou alguns deles. - Duas consultas na emergência, pós-operatório da cirurgia da sexta e por enquanto só isso.

—Você checou o paciente da cirurgia? - Perguntei passando os olhos brevemente pelas anotações.

—Sim e ele está super bem. Aliás, ótimo trabalho.

—Obrigada. – Agradeci outra vez, realmente satisfeita com esse elogio. - Bem, vou começar então. Jantamos juntos mais tarde?

—Que tal meia noite? - Sugeriu, olhando no relógio que marcava agora algo em torno das sete.

—Perfeito, até lá. - Lancei um beijo em sua direção e me virei para começar a noite longa.

Eu adoro quando ele está no plantão comigo porque somos um time e tanto, o que faz com que o trabalho que eu amo se torne ainda mais prazeroso. Entre as consultas pedidas e o pós-operatório recebemos algumas vítimas de um acidente de carro e o tal jantar foi adiado para três horas depois, quando já estávamos mortos de fome.

A correria fazia parte do meu dia e no fim eu estava tão acostumada a isso que o tempo passava devagar e tedioso quando eu não estava em ação.

Alguns dias depois quando saí de um turno longo que deveria ter acabado ao meio dia, mas me prendeu até anoitecer, precisei passar no mercado para comprar algo para jantar e ao passar pela sessão de massas percebi que fazia já duas semanas que eu havia esbarrado em Harry nesse mesmo lugar. Aparentemente as coincidências acabaram, pensei casualmente antes de seguir meu caminho em direção à área de congelados.

Fiz minhas compras com calma, inconscientemente olhando ao redor para me certificar de que realmente não havia ninguém conhecido em volta, e infelizmente cheguei ao caixa sem ser interrompida por um cara bonito insistentemente pedindo meu telefone. Jantei com Hermione e jogamos conversa fora por algumas horas enquanto alguns episódios de Friends passavam na TV, mas assim que ela saiu tranquei a porta e me forcei a dormir.

O dia seguinte era sábado, o que estatisticamente indicava que eu poderia esperar acidentes dos mais variados possíveis, porque as pessoas tem uma tendência incrível a usarem seus dias de folga para autodestruição, então tomei um café da manhã completo em casa e dirigi até lá preparada para um dia cheio. Meu turno começou durante a manhã, mas Colin chegaria apenas a noite, então quando me encostei no balcão de atendimentos da emergência fui atendida por uma enfermeira simpática e eficiente, mas não tão divertida, que me encaminhou imediatamente para uma paciente recém chegada.

Até o final da tarde não consegui parar nem por um minuto, e quando finalmente o fiz comi apenas metade do meu sanduíche antes de ser chamada novamente para uma consulta de urgência. Terminei meu suco, arrumei o cabelo preso em um rabo de cavalo e corri até lá.

—O que temos? - Perguntei para o enfermeiro com o prontuário nas mãos.

—Paciente se queixando de dor no quadril, pediu preferência por você. - Me informou caminhando apressado em direção à ambulância que chegava, me fazendo quase correr para acompanhá-la devido a nossa gritante diferença de altura. - Consultório nove.

—Obrigada. - Agradeci para suas costas e me virei na direção contrária para ir até onde precisava.

A Sra. Figg era uma velhinha muito amável que morava sozinha e por isso se machucava com uma frequência preocupante, e todas as vezes que isso acontecia ela pedia por mim para seu atendimento. Seu argumento era minha atenção e paciência, e ela dizia também algo sobre minhas mãos serem de anjo, porque sempre diminuíam sua dor. Na maioria das vezes os problemas eram as quedas, e nossos encontros eram sempre cheios de conversas bondosas e biscoitinhos caseiros que ela trazia para mim.

Eu estava abrindo seu prontuário enquanto caminhava para ver se já havia alguma informação prévia sobre a lesão, mas antes que eu tivesse tempo sequer de chegar à página de identificação fui parada por Luna, uma residente de último ano que estava se especializando na minha área e que gostaria de uma segunda opinião sobre o raio-X de uma paciente com fratura na clavícula.

Paramos no corredor em frente ao consultório onde eu deveria entrar e olhamos juntas a radiografia contra a luz forte do teto. Disse a ela que não era um caso cirúrgico, mas que eu recomendaria bastante fisioterapia assim que as imobilizações fossem retiradas, algumas semanas mais tarde, ou ela continuaria sentindo bastante dor no local sempre que fizesse movimentos mais exigentes.

Ela me agradeceu e antes mesmo de começar a andar para longe eu abri a porta atrás de mim e entrei, sem ao menos pedir licença e com o sorriso já aberto para a senhora simpática que eu esperava encontrar.

—Olá, Dra. Weasley, que bom vê-la novamente. - Harry me cumprimentou com um sorriso deslumbrante, deitado de bruços na maca de exame e apoiado em um dos cotovelos, o braço ainda imobilizado cuidadosamente posicionado à frente, mas sem receber peso, e sem as calças.

Eu não tive uma reação imediata para aquele encontro, então fechei a cara brevemente enquanto avaliava a improbabilidade lógica de que aquilo fosse mais uma coincidência e me encostei a sua frente com os braços cruzados para iniciar o que eu sabia que seria uma conversa animadora, meus olhos propositalmente concentrados em não encarar suas pernas a mostra.

—Olá, Harry. Estou ficando assustada com a frequência desses encontros. - Falei casualmente, achando aquilo tudo muito estranho, mas ainda assim sorrindo.

—Eu tenho que confessar que estou ficando feliz. - Afirmou também sorrindo, daquele jeito que me fazia querer olhar para sempre. - Como tem passado?

—Muito bem, e você?

—Ótimo também. - Respondeu, satisfeito com meu interesse.

—Fora esse outro acidente? - Questionei, indicando com a cabeça seu quadril e dando uma rápida olhada enquanto isso.

—Foi o enfermeiro que me mandou tirar as calças, eu planejava te esperar vestido com meu jeans, devidamente apresentado e com as roupas que você gosta. - Defendeu-se desconversando e desviando o assunto da maneira como se machucou.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

—Ele fez bem, de que outra maneira poderia te examinar? Depois você se veste para eu admirar um pouquinho. - Afirmei e sugeri, indo até o carrinho de acessórios para apanhar as luvas antes de verificar o local e o fazendo rir com satisfação.

—No próximo encontro pode ser você a estar sem as calças? – Perguntou esperançoso.

—Receio que não. - Neguei sem realmente me incomodar, apenas por hábito e para manter nosso assunto.

Ele suspirou de forma teatral enquanto eu colocava as luvas e andava em sua direção.

—Pelo menos eu posso me conformar com o fato de que essa sua calça branca é quase tão reveladora quanto. Você só poderia tirar o jaleco. - Sugeriu casualmente, como se ele estivesse me pedindo um copo de água.

—Minha calça branca é um exemplo de pudor, Sr. Potter, e meu jaleco é uma peça necessária no horário de trabalho. - Me defendi e levantei sua camisa quando parei ao lado da maca.

—Então agora eu estou ainda mais curioso para te ver em momentos despudorados, Dra. Weasley, e fora do trabalho também, é claro. - Eu ri com isso e comecei minha avaliação apalpando com cuidado a região e testando suas reações para ver se encontrava o foco da dor.

Também aproveitei que ele não podia me ver para correr meu olhar lentamente por suas costas e as pernas grossas expostas à minha frente.

—Que observação grosseira, Sr. Potter. - Falei em um tom proposital para que ele soubesse que eu estava brincando.

—Você poderia me dar seu telefone para eu passar a semana toda me desculpando, o que acha? - Tentou outra vez, me fazendo morder o lábio para conter a risada e a vontade cada vez maior de dizer o telefone, endereço e até o numero do meu documento se ele quisesse saber.

—Acho tentador. - Respondi vagamente. - Aqui dói?

—Isso é um avanço? - Questionou esperançoso? - Não, não dói.

—Infelizmente não. - Neguei, mas internamente pedindo que ele insistisse tanto que eu não tivesse mais como negar, assim seria mais fácil eu me convencer de que tentei de tudo antes de ceder. - E aqui?

—Infelizmente mesmo, assim você não me ajuda e eu preciso apelar para te ver. - Se lamentou. - Também não.

—Apelar? - Parei o movimento a meio caminho de apalpar a base de sua coluna, entendendo brevemente o que ele quis dizer com isso.

—Você sabia que já faz duas semanas desde que nos encontramos casualmente pela última vez? Fiquei apreensivo de que isso não acontecesse mais. - Se justificou e eu estreitei meus olhos para sua nuca, mesmo sabendo que ele não poderia ver.

—Harry, você ao menos está com dor? – Questionei concentrada em manter meu tom sério.

—Eu estava um pouco, sim. - Se defendeu, mostrando pouca ou nenhuma credibilidade.

—Onde? - Quis saber, ainda séria.

—Eu tenho gastrite, sabe, desde adolescente. - Afirmou inseguro e eu fechei os olhos incrédula, dividida entre a raiva pela perda de tempo e o ego por seu esforço em me ver novamente.

—Então você sabe que isso é no estômago, certo?

—Eu sempre soube que seria um péssimo médico, sou horrível em anatomia.

—Harry! - Exclamei exasperada e dei um tapa onde minha mão estava antes. - Mas que droga, qual o seu problema?

Me encostei novamente onde estava antes e cruzei as pernas, concentrada em transmitir toda minha indignação com seu ato. Seu semblante transmitia talvez um pouquinho de vergonha, mas nada de arrependimento.

—Não consegui pensar em outra forma de te ver, desculpe.

—Isso é meu trabalho e eu tenho responsabilidades, pessoas para salvar e ajudar aqui. Quando me pediram exclusividade eu pensei que fosse uma paciente que sempre faz isso, ela tem mais de setenta anos e mora sozinha, por isso está sempre se machucando. É dessas pessoas que você está me privando enquanto atendo ao seu falso machucado. - Fiz questão de deixar claro todos os pontos negativos do que ele havia feito.

—Eu sei que você faz coisas fantásticas aqui, e isso é só mais uma coisa que admiro em você. - Afirmou me olhando com convicção.

—Você nem me conhece. - Me esquivei mais uma vez.

—E só por isso estou aqui, se você me deixasse te conhecer eu poderia fazer isso mais sutilmente e com mais dignidade.

—Você não está levando as coisas a sério, não é? Já está escurecendo e só agora eu tive tempo para comer alguma coisa, era o que eu estava fazendo quando me chamaram, eu larguei tudo e vim correndo, sabia?

—Me desculpe por te fazer perder tempo, mas só por isso, não por forçar a situação de te ver novamente. Você não me deixou escolha. - A intensidade com que ele disse isso foi diferente, tocante, e mesmo contra minha vontade eu gostei.

Suspirei tirando as luvas e jogando no lixo e passei a mão no rosto antes de me voltar a ele. O tempo todo ele me olhou sério, me mostrando que por trás da pessoa brincalhona e descontraída que pediu meu telefone em meio a conversas informais havia um interesse sério e real.

—Prometa que não vai fazer de novo. - Pedi, mas internamente eu já sabia qual seria sua resposta.

—Então me dê seu telefone, caso contrário não terei escolha. - Justificou-se e eu ri, demonstrando propositalmente quanto aquilo tudo era incrédulo.

Ele riu da minha reação.

—E se eu não quiser dar meu telefone a você? - Questionei desafiadora. - E se o fato de você ser meu paciente for só uma desculpa?

—Você quer. - Ele afirmou com tanta certeza, voltando ao seu tom brincalhão de sempre, que eu não tive como negar, então apenas o incentivei a continuar. - Eu posso não conhecer você, mas conheço bem o jeito que você me olha e principalmente a falta de vontade com a qual você nega todos os meus pedidos. E acredite quando eu digo que não estaria aqui se fosse ao contrário, sou o tipo de pessoa que respeita claramente os limites dos outros.

Neguei com a cabeça e continuei olhando-o sem dizer nada, travando minha batalha interna sobre o que fazer.

—Vamos, Dra. Weasley, será só um passeio. - Me tranquilizou sorrindo daquele jeito de novo.

—Passeio? Achei que era só o telefone. - Questionei com a sobrancelha arqueada em sua direção.

—Que vai levar a um passeio. - Afirmou e piscou para mim, me fazendo rir.

—Meu telefone não é uma informação que eu passe para qualquer pessoa. – Desviei o assunto de novo, ganhando tempo para me acostumar com a ideia de que eu quebraria as regras pela primeira vez.

—Eu não sou qualquer pessoa, esse já é o quarto encontro. – Argumentou com o dedo em riste. – Além do mais, quando eu...

—Ok. - Confirmei de repente, cortando sua frase no meio.

Meu argumento interno era de que eu estava evitando atendimentos clínicos desnecessários e essa era uma das funções de um bom médico.

—Ok? - Repetiu com os olhos arregalados, claramente surpreso.

—Sim, Ok. - Afirmei novamente, ainda parada no mesmo lugar. - Anota aí.

—Só um minuto. - Pediu e se levantou com pressa em direção à própria calça, apoiada sobre uma cadeira ao lado, de cujo bolso tirou o smartphone de última geração.

Observei seus movimentos sem me preocupar em disfarçar e ditei meu número para que ele anotasse.

—Estarei de plantão até amanhã ao meio dia, então não poderei atender. - Informei, secretamente satisfeita diante do seu sorriso feliz e realizado.

—Tudo bem, não tem problema.

Ficamos em silêncio um pouco e ele pareceu não entender o que havia de errado, até que eu ri e esclareci.

—Se vista, estou esperando para olhar. - Pedi e ele gargalhou com vontade diante disso.

Antes que alguma coisa fosse dita senti o aparelho de comunicação interna vibrar no meu bolso e o chamado da emergência surgir na tela.

—E faça isso rápido, porque preciso ir. - Exigi e ele levantou as mãos em rendição, da melhor maneira que o gesso permitia.

—Sim, Dra. Weasley, como quiser.

Olhei enquanto ele colocava sua roupa novamente, o que era uma imagem que certamente me faria ter sonhos indiscretos, e não falei nada enquanto isso. Ele terminou de calçar os sapatos e colocou a mão esquerda no bolso frontai, um gesto que eu já tinha percebido que ele faz com frequência, adotando uma pose terrivelmente sexy.

—Está bom assim? - Perguntou convencido.

—Ótimo. - Respondi sem demonstrar realmente o que achava.

—Já posso ir então?

—Nem deveria estar aqui. - Falei propositalmente ácida, mostrando que ainda considerava aquilo errado.

—Valeu a pena. - Deu de ombros sem se constranger.

—Vamos ver. - Comentei e me virei para sair. - Tchau, Sr. Potter.

—Foi um prazer, Dra. Weasley. - Ele respondeu para minhas costas enquanto eu ia até a porta, eu nem precisei olhar para saber que ele estava sorrindo.

Abri uma pequena fresta e a fechei de novo para me virar para ele e fazer um último pedido:

—Harry? - Ele estava me olhando atento, então continuei. - Nunca mais me faça perder tempo assim, por favor.

—Não farei. - Garantiu e sorriu de novo para mim.

Fiz questão de não retribuir e saí, fechando a porta atrás de mim. Corri até onde minha presença tinha sido solicitada, e apesar da minha expressão séria para Harry um sorriso ansioso brincou no meu rosto pelo resto do dia.