Obscure Grace

Capítulo 16


De repente, tenho oito anos de idade outra vez, e acabo de ver um pássaro machucado na frente de casa. Um grito infantil escapa de meus lábios, e lágrimas brotam nos cantos de meus olhos. Levo as mãos gordinhas às bochechas quando elas começam a cair, num esforço inútil para tentar secá-las, sem perceber que é um escândalo muito grande por causa de um simples animal com a asa sangrando. Rafael corre pra dentro, provavelmente na esperança de buscar algo pra me animar antes que eu chore mais, mas não posso evitar.

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— Você está bem? — diz uma voz de menino, fina e irregular, enquanto um par de braços magros abraça meu corpo sem me dar chance de protestar.

— O passarinho... — soluço, começando a tremer. — Ele vai morrer.

— Quem te disse uma bobagem dessas? — Um Leo de onze anos me solta e se abaixa para envolver o bicho entre seus compridos dedos. — Vamos cuidar dele. Ah, oi! — Agora ele está se dirigindo ao pardal em suas mãos. — Não fique com medo, vamos ajudar você. Qual o seu nome? A partir de agora vai ser Cláudio. Lissa, fala oi pro Cláudio.

Ele é a única pessoa no mundo corajosa ou boba o suficiente pra me dar um apelido tão idiota.

Solto uma risadinha, e de um minuto para outro não há mais lágrimas.

— Olá, Claudinho — respondo, e me permito até um rápido aceno. Ele conseguiu fazer com que eu me sentisse melhor outra vez.

Então, em questão de segundos, o lugar muda. Agora é a laje do sobrado de Leo, que está segurando sorridente um filhote de pardal entre as mãos. Ele as afasta, e o pequeno filhote sai voando, abrindo caminho entre as nuvens cor de rosa características do fim do dia.

— Viu? — diz, me olhando pela primeira vez com seus brilhantes olhos verdes, e posso ver a felicidade por causa do gesto cintilando neles. — Eu disse que íamos cuidar dele.

De longe, posso ver Rafa nos observando. É minha visão pregando peças ou ele está sorrindo?

Sem aviso prévio, a cena muda novamente, e dessa vez é uma festa de casamento. Já tenho nove e ele onze, e estamos dançando a valsa que antecede a balada de um casamento do qual me lembro vagamente, no qual ele entrou com as alianças. É sem dúvidas o maior das cinco damas de honra: quatro meninas com três anos ou menos completamente adoráveis em seus vestidos amarelo-claros de fita rosa na cintura, e um magricela orelhudo enfiado num terninho que o deixava muito fofo.

— Você tá tão ridículo — digo de novo, e a risada que se segue é logo substituída por um gritinho quando ele pisa no meu pé. — Isso não se faz! Vou chamar o Rafa, ele vai te dar uma bela surra.

— A essa hora, ele deve estar dançando com a Priscilla, dez anos mais velha e dez vezes mais bonita que ele! — debocha.

— Meu irmão é bonito! — grito, pisando de volta no pé dele. — Agora estamos quites — resmunga ele, mas nem preciso olhar para ver que está sorrindo.

Depois disso, nossas mães nos arrastam para os carros porque já passa da uma da manhã; nunca fiquei acordada até tão tarde na vida. Ele é levado para longe de mim, mas não antes de lançar um sorriso e sussurrar:

— A janela.

Outro corte, dessa vez uma das muitas noites em que ele pulava minha janela e ficávamos conversando até o sono chegar, quando ele ia embora. Não consigo me lembrar do que estou rindo, mas as lágrimas arrancadas pelos risos contidos escorrem livremente por minhas bochechas enquanto meu irmão afunda o rosto numa almofada e nosso amigo prende a respiração. Há um barulho de tábuas rangendo no corredor, e ambos ficamos quietos como ninjas enquanto minha mãe passa. Ela não abre a porta do quarto, mas não é preciso outro aviso: Leo sorri e sai para a noite, e Rafa volta a seu quarto se esgueirando como um gato.

Meio segundo depois, mudamos para a primeira quimioterapia, e as cenas de tornam mais rápidas. Estou segurando sua mão. Rafa está lá fora, comprando algo gostoso e gorduroso que todos sabemos que Leo não vai comer inteiro, mas o que vale sempre é o sorriso em seu rosto quando vê um pedaço de chocolate.

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Leo em frente ao espelho, arrastando a mão por seus cabelos. Um grande número deles fica preso entre seus dedos e cai no chão.

— Parece a Quinze de Novembro no outono — provoco, comparando seu cabelo às folhas vermelhas que caem na praça depois de maio. — Tão romântico. Fez isso pra mim?

— Idiota — reclama, mas um sorriso denuncia seu humor. Me aproximo e jogo os braços em torno de sua cintura, apertando-o contra mim. O garoto que me abraça de volta, embora com apenas treze anos, não é mais aquele magricela.

Sinto o cheiro do perfume (Quasar) que ele usa todos os dias, não importa a situação, e tento ao máximo guardar a sensação de seu moletom quentinho de Monstros SA roçando na minha bochecha.

Mais uma mudança, e dessa vez foi com uma diferença muito grande de tempo, afinal já tenho treze anos e ele dezesseis, e estamos em um pequeno barco, pela segunda vez sem Rafa. Para meu desgosto, estou remando. Isso é muito comum: visitamos o rancho da família dele no interior e pegamos a canoa cujo motor nunca funcionou para ir até uma pequena ilha ali perto.

— Você tem noção de que isso vai contra toda a ideia de romantismo? — Reclamo. — Você devia remar enquanto canta uma música muito fofa.

— Posso fazer algo sobre a parte da música, mas o resto você se vira pra resolver. — Ele pega seu ukulele e começa a afinar as cordas, fazendo o cobertor que estava sobre seus ombros cair por causa dos movimentos. Paro de remar por um minuto para ajeitá-lo, sentindo o perfume dele preencher o ar ao redor. Tão rápido que não consigo assimilar, ele se estica todo e beija minha boca com um estalo alto, colando sua testa na minha logo depois. A cortina castanho-avermelhada me faz cócegas em todo o rosto, mas de repente me sinto triste.

Ele não vai à quimioterapia já faz um longo tempo, porque os médicos disseram que não adiantaria. O câncer já está por todo o corpo, corrosivo e doentio. Então ele vive cada segundo como se fosse seu último, pois pode mesmo ser.

— Mais uma coisa da sua lista? — murmuro, sem abrir os olhos. Leo tem uma lista de coisas a fazer antes do fim, tão cliché.

— Não, mas até que foi legal. — Não me afasto, e nem ele. — Não me mata, mas quero de novo.

Depois dessa, dou risada e pulo pra trás.

— Só se me pegar! — Mergulho no rio, e ele vem atrás. São seis da manhã de um domingo de julho, a água está gelada e meus dedos não param de tremer, mas continuo dando impulso para frente enquanto aguento. Nem dois minutos depois, sinto um puxão no tornozelo e sei que ele me alcançou. Leo envolve minha cintura com os dois braços e escapo facilmente, fugindo dele até que percebo sua dificuldade para nadar. — Vem, vamos voltar pro barco.

Faço-o subir e termino o caminho nadando e puxando o barco com ele, puro exibicionismo. As aulas de ballet me fizeram um bem incrível! Minhas pernas são fortes e meu fôlego é inacreditável. Logo que nós dois colocamos os pés na ilha, minhas panturrilhas queimam tanto que deito na grama para me recompor. Ele, por sua vez, sai calmamente do barco e me lança um sorriso irônico.

Natureza 1x0 Lis.

— Cansada de se exibir, é? — diz, se abaixando e me estendendo a mão logo em seguida. — Não acabou ainda, vem cá.

— Ficou louco? — resmungo. — Não vou levantar daqui antes do meio-dia.

Ele não espera outra resposta e me puxa de uma vez. Uau, um estranho comportamento para alguém no estágio terminal de uma leucemia. Sério, esse humor sádico tem que acabar.

— Dance comigo, Lissa — pede, e é mais forte do que eu. Começamos a dançar sem música uma valsa-salsa-falsa, errando muito e quase caindo várias vezes. Toda vez que isso acontece, gargalhadas cortam o ar, e tenho plena certeza de que as pessoas no rancho podem nos ouvir.

Quando ele segura meu rosto entre suas mãos e começa a cobri-lo de beijinhos, consigo identificar vários sentimentos no gesto. Ternura, amizade fofa, talvez uma paixonite imatura, mas acima de tudo urgência, que eu entendia muito bem.

— Tá me deixando tonta.

— Merda — pragueja ele. — Você não podia ter nascido uns dois ou três anos mais cedo, hein?

— Rafael teria me matado — retruco, rindo de novo, mas ele para de dançar e se senta. — O que foi?

— Não vou dançar uma valsa contigo na sua festa de quinze anos — solta, a voz transbordando raiva. — Não vou a nenhuma das suas formaturas. Chega de piqueniques na Quinze de Novembro, de planejar viagens de férias que nunca fazemos, de andar com você pra casa depois da escola, de ir à praia. Nunca vou te dar uma carona pra um encontro, nem socar a cara do idiota que te magoar, nem te levar pra ver os elefantes no zoológico de Ribeirão, nem encobrir uma mentira sua, nem ensinar seu filho a jogar PacMan! — Depois disso, fecha os punhos e bate os dois no chão.

— Para com isso — falo e suspiro, adotando meu tom de falar com o melhor amigo sem risco de tomar um soco. Sento a seu lado, brinco com o cabelo ainda molhado dele e o abraço. — Olha, sei que não é muita coisa, mas você tirou meu BV lá no lago. Vai ter essa honra pra sempre!

Ele morde o lábio.

— Desculpe. Não foi exatamente o primeiro beijo dos sonhos de uma menina, né? Mas eu não podia esperar mais, porque...

— Se você completar essa frase com "talvez não haja um depois" outra vez, vou te matar com minhas próprias mãos — ameaço. Isso o silencia instantaneamente.

— Isso não vem ao caso — argumenta ele, e dá de ombros. — Posso fazer outra vez? Mas agora vai ser direitinho.

— Bobo. — Deixo escapar uma risada e fecho os olhos. Isso será ótimo.

Tudo se resume a pequenos beijos nos cantos da minha boca e um mais demorado bem no meio, mas quando me sinto segura o suficiente para participar, ele se afasta.

— Não... Já chega — diz, brincando com um cacho meu. — Bem que você podia ter logo uns quinze anos.

Suspiro. Ele tem razão, e não vamos além de alguns selinhos e palavras sussurradas.

Os cortes seguintes não passam de pedaços de sonhos que tive com ele. Uma semana depois do episódio na ilha, meu amigo se foi. O trio de ouro passou a ser apenas uma dupla.

E, por mais que tentássemos, seria o mesmo. Acho que ambos sabíamos disso.

— Lis? Lis! — Will sacode meus ombros. Estou na cama de meu quarto na casa de vovó, mas a antiga ilusão de ser tudo um sonho não vai me afetar dessa vez. Levanto a cabeça e me sento. No meio do círculo de chamas, há um Leo maior e mais velho sentado com as pernas cruzadas.

— Não entendo como podemos ter trazido um mortal. — Tento não expressar emoções, mas é impossível.

— Ele tem sangue de anjo — Will sussurra. — Para o feitiço, é o que basta.

— Você disse que não era um feitiço.

Está lá de novo, um sorriso que me faz pensar se é com Will-ceifeiro-queda-dura ou com Liam-adolescente-quase-normal que estou falando.

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— Em todo caso — continua ele. — Sem a sorte do nosso lado, podia ser eu ali dentro, o que não nos ajudaria muito.

Então Leo levanta, e sinto que estou levantando também. É quase como se ele me controlasse. Caminho até estar a centímetros dele, que é consideravelmente mais baixo que Will e Rafa.

— Oi. — Seu rosto, antes fechado e carrancudo, se abre num sorriso depois de um tempo me observando. — Lissa?

— Oi — sussurro de volta. — Sentiu saudade?

— Não. O que faz aqui? — pergunta, dando um passo à frente, mas parece que uma barreira invisível o impede.

— É uma longa história... — O que ele faz aqui? Ainda mais usando uma camiseta branca e calça militar que o caracterizam como um membro da resistência de um filme que vi algum tempo atrás.

A expressão amigável que ele sustentava desaparece num instante.

— Você morreu. Sabe que eu vou matar você por isso, não sabe?

Will tosse, anunciando que ainda está ali, e fica de pé perto de nós.

— Precisamos de ajuda — começa, indo direto ao ponto como sempre. — De acordo com os meus registros, você faz parte da resistência, certo? Dos discípulos de Emmanuel. — Aí ouvir isso, Leo assente com um ar profissional. Opa, essa eu acertei! — Vocês tentam impedir a queda do último descendente de Raziel tanto quanto nós, ceifeiros. Algum de nós cometeu um erro enorme e trouxe sua amiga, mas não é certo que ela morra agora. Por isso, estou tentando ajudá-la a voltar, mas precisamos de você.

Se um dia eu imaginasse esses dois juntos, com certeza pensaria num clima hostil, mas essa ideia não tem fundamento: está claro que um simpatizou com o outro na hora.

Leo olha de mim para Will, e então para mim de novo.

— Desculpa, isso é tão estranho — diz, por fim. — Podem me soltar?

Não é preciso pedir duas vezes, libertamos meu antigo amigo e é como se o tempo congelasse. Tenho muita coisa a dizer.