*Ivye

Foi como num sonho.

Eu já não tinha mais forças. Era o fim. Cerrei bem os olhos e abracei meu corpo. Prendi a respiração. Aguardei o pior.

As portas rangeram. As dobradiças foram cedendo, uma após a outra. Um segundo de silencio atordoado. E então uma explosão de movimento e barulho quando as centenas de Influenciados invadiu o restaurante. Aguardei, sem ter como me proteger. Senti as lágrimas queimando meu rosto. Eles se aproximavam. Três metros.

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Dois.

Um.

E então ouve uma explosão de luz entre eu e a multidão, e uma figura apareceu, cercada por um halo de brilho pálido. Cupido.

—Vão embora! O trabalho de vocês aqui acabou. –ele ordenou, os gritos da voz grave vibrando no ar. A multidão imediatamente obedeceu.

O restaurante estava novamente em silêncio. Cupido caminhou até mim e se abaixou.

—Você está bem? –ele perguntou, e mesmo esgotada, reuni forças para revirar os olhos e resmungar:

—Ah, não! Você não! Qualquer um, menos você. Deixa os malditos projetos de zumbi voltarem, são bem mais agradáveis.

O desgraçado riu.

—Encantadora como sempre, Ivye. –ele respondeu, balançando a cabeça.

O restinho de forças que ainda me restava foi se esgotando, e comecei a perder a consciência. Senti com um sobressalto que meu corpo estava se movendo, e percebi que Cupido havia me pegado no colo. Tentei murmurar um último “Cupido idiota, tentando ser gentil”, como nos velhos tempos, mas acho que apaguei no meio da frase.

Acordei com os gritos. Os gritos finos e estridentes, repletos de palavrões que eu nem conhecia. Olhei ao meu redor, atordoada, e meus olhos levaram um tempo para se ajustar a luz.

Então reconheci o cenário familiar ao meu redor. Estava mais uma vez no maldito escritório de Cupido. Os gritos vinham de algum lugar a minha direita. Minha cabeça doía com o excesso de pensamentos inacabados, então decidi me situar aos poucos.

Estiquei as mãos e senti uma superfície extremamente macia abaixo de mim. Lençóis. Estava numa cama. Tentei tocar meu corpo, mas um repuxão violento parou minhas mãos no meio do caminho. Abri os olhos completamente, e vi as malditas correntes envolvendo meus pulsos. Percebi então que estava em uma pequena cama estreita, daquelas que se encontram em hospitais, com correntes amarrando minhas mãos e pés às grades da cama.

Os gritos vinham de uma figura ao meu lado, que estava sentada numa cama idêntica à minha, mas suas correntes pareciam ser mais leves.

—SEU MALDITO MANIACO FILHO DE UMA... Ah! A donzela acordou! Será que pode me ajudar, por favor?! –a garota de longos cabelos castanhos gritou para mim. Eu a reconheci imediatamente.

Lucy?!—exclamei.

Ela revirou os olhos, e tentou cruzar os braços, mas as correntes a impediram.

—Sim, sou eu. Como você sabe? Quem é você? Sabe porque esse maluco nos trouxe para cá? Sabe quem ele é? Onde estamos? –ela disparava perguntas, uma atrás da outra, em gritos desesperados. A pobrezinha estava aterrorizada, é claro.

Me sentei, grunhindo. Não sabia por quanto tempo havia ficado apagada, o tempo funcionava de forma diferente aqui no plano superior, mas não havia sido suficiente. Me sentia disposta, mas dores reverberavam meu corpo inteiro.

Ergui o olhar e encontrei Cupido, sentado em sua mesa pomposa, do outro lado da sala. Ele me encarava com um ar divertido.

—Se minhas mãos não estivessem presas, eu iria enfiar essa corrente no seu...

—Epa! Será que nós podemos manter a cordialidade?! –ele pediu, fingindo estar chocado. –O que eu fiz para merecer duas donzelas de boca tão suja no meu escritório?

—O que eu fiz para merecer você na minha vida?! –gritei em resposta. –Mas uma coisa eu tenho que admitir: da última vez que me capturou, o tratamento não foi tão suave. Poderia ser bem pior.

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Cupido riu, e Lucy se virou abruptamente em minha direção:

—Esse maníaco te sequestrou antes? Você o conhece?!

Percebi que ela, obviamente, estava falando comigo, e meu queixo caiu. Fiquei, literalmente, de boca aberta. Me virei para Cupido.

Como... como ela consegue me ver?! –perguntei.

—O que?! Você quer dizer que eu não deveria estar te vendo?! Meu Deus, eu acho que vou desmaiar. –Lucy respondeu, muito pálida.

—Ela não poderia entrar no plano superior se ainda fosse humana. –explicou Cupido. –Então fiz algumas alteraçõezinhas básicas em sua essência. Nesse momento, ela é como um meio-cupido. Consegue estar aqui, e ver tudo isso, mas não tem nenhum poder real.

Revirei os olhos.

—Que fascinante, professor! Vai cair na prova? –bufei.

Um baque surdo ao meu lado. Lucy havia desmaiado e caído de volta em sua cama.

Cupido se levantou e caminhou até os pés do meu leito.

—Ela vai ficar bem. Essa realidade é informação demais para a pequena mente dela.

Já de frente a frente, ele me olhou nos olhos e disse:

—Pergunte logo. Você sabe que quer perguntar.

—Por que me salvou? –perguntei, de uma vez.

—Você é uma moeda de troca valiosa com seu amiguinho, Daniel. –ele explicou simplesmente, dando de ombros.

—Você é desprezível. –disse, com todo o ódio que pude reunir. –Não precisava envolver Lucy nisso.

—Ah, eu adoro um pouquinho de caos. Achei que a essa altura você já sabia disso, pequena Ivye. Além disso, ela vai ficar bem. Só está um pouco abalada.

Me levantei novamente, e encarei Cupido com frieza.

—Você fica aí, dando uma de maioral, mas esquece que eu sei a verdade sobre você. –sussurrei. –Esquece que eu sei que, no fundo, você ainda é o mesmo garotinho chorão que morreu sozinho.

O lábio inferior de Cupido tremeu. Seu olhar endureceu. Eu previ o que estava prestes a vir, antes mesmo de acontecer. Num piscar de olhos, ele avançou. De repente, suas mãos grandes e fortes envolviam meu pescoço, e o ar abandonava meu pulmões. As correntes impediam minha mãos de alcança-lo, de impedi-lo. Senti minha consciência vacilar, e as lágrimas queimarem meus olhos.

—Aquele menino morreu. –Cupido rosnou, entre os dentes. O aperto cada vez mais forte. –Junto com qualquer traço de bondade que eu já tive.

Pontos pretos começavam a aparecer em minha visão. A única coisa que eu via era o rosto atormentado de Cupido por detrás das minhas lágrimas. Só consegui reunir fôlego para sussurrar:

Eu ainda acredito há bondade em você.

Ele piscou, o lábio inferior tremendo. E justo quando eu comecei a perder a consciência, quando achei que havia chegado no ponto final, o aperto cessou. As mãos de Cupido abandonaram meu pescoço e ele se afastou aos tropeços, segurando os cabelos com força, atormentado.

—Eu não acredito que fiz isso. Eu não aguento mais. –ele murmurava, sem parar. Caminhava freneticamente por cada canto do escritório, parecendo estar sentindo uma enorme angústia. –EU NÃO AGUENTO MAIS! –gritou, e todos os móveis da sala vibraram. Instrumentos delicados de vidro caíram das prateleiras indo de encontro ao chão, com estrondos. Cupido virou sua mesa, num surto de fúria, e centenas de folhas de papel e pergaminho flutuaram pelo ar. Seus gritos preenchiam tudo.

Eu ainda tentava recuperar o fôlego desesperadamente. Minhas mãos tremiam contra a minha vontade, diante de toda aquela cena. Naquele momento de desequilíbrio, finalmente percebi que Cupido era apenas cacos do que um dia havia sido um homem.

O q-que...?—tentei dizer, mas minha voz falhava, por falta de fôlego, por medo, por tudo.

O olhar de Cupido encontrou o meu, e ele parecia realmente atormentado. Socou a madeira da mesa tombada, e largou-se no chão. Eu só conseguia ver o topo de sua cabeça, coberto pelos cabelos castanhos. Tremores tomavam seu corpo. Ele soluçava.

—M-me desculpe. –sussurrou. –Eu sou um monstro.

Eu não podia negar. Por mais otimista que meu coração fosse, ele também era realista. Cupido era cruel, e um colapso emocional não mudava isso.

—Sim, você é. –concordei. –Mas pode mudar, se quiser.

Ele negou, balançando a cabeça freneticamente. Como o escritório era conectado a suas emoções, a mobília, os livros, as esculturas do teto, tudo ia desmoronando aos poucos. Inclusive minhas correntes. As joguei de lado, e caminhei lentamente até Cupido. Não me aproximei muito. Ainda tinha um pouco de sanidade.

Eu não aguento, não aguento mais. –ele murmurou, novamente.

—O que? –perguntei, baixinho.

—Esse... esse cargo! E-eu estou enlouquecendo.

—Se servir de consolo, você é maluco desde o início. –eu respondi. –Mas... se odeia tanto, por que ainda faz isso?

—Já fui longe demais para voltar atrás. –ele murmurou, ainda soluçando freneticamente, puxando os cabelos. –Sou um monstro.

Monstro ou homem, Cupido ou maníaco, me aproximei dele. Posicionei uma mão muito trêmula em suas costas. Não ousei fazer mais nada por um longo tempo. Lucy continuava desmaiada, o escritório continuava desmoronando um pouquinho aqui e ali.

Só quando os soluços de Cupido cessaram, ousei levar a mão até seu rosto e obriga-lo a me olhar.

—Você tem uma escolha. Todos nós temos.